A Experiência Mística e o Conhecimento

O prego

Eis o Homem! Talvez mais santo que homem, dizem uns, contudo não entrarei no mérito de inflexões acadêmicas. Deixo tais rusgas a cargo dos competentes que a debatem calorosamente – postulo que sejam servidos de pão e vinho antes, ao passo que o problema torna ao relativismo usual, democrático, do cotidiano; oxalá tenhamos trigo e uvas suficientes para evitar uma guerra santa nuclear. O islamismo radical agradece tamanha abundância – as umbandas e candomblés também.

Em que pesem as dissidências de ordem religiosa que nutrem a oposição judaico-cristã, suspeito haver tido clara inversão de papéis no momento derradeiro, naquele instante que nenhum santo eternizou à moda do Homem: sob a indiferença e abandono do Pai, o Homem suspenso majestosamente pela atroz incumbência do Filho deixou-se fundir à infértil massa arenosa da qual doravante será o primeiro e único prisioneiro. Cristo germinou sua ressurreição para a eternidade, enquanto Jesus abandonou-se ao pueril esquecimento do deserto. Tolo. Morreu sozinho e lá permanece até hoje: que os homens tenham piedade.

Pelos rastros da pena sopesa-se a vida, sendo claro que a efusividade pública demarcadora de sua chegada à Jerusalém, a barganha e posterior debandada do Templo, a silente amargura de uma árvore sem Frutos, o dilaceramento do amor naquele obrigado a servir a vontade do Pai – este mesmo que se fez suspenso pelos próprios méritos – e o peso do corpo, fronteira intransponível entre o homem e o divino, suplicante e ajoelhado no Getsêmani, fizeram com que o cálice, a ser bebido luxuriosamente desde então, transbordasse de insolência, arrependimento e pecado: Jesus não queria morrer. Morreu por graça, piada cósmica. Ironia judaica antes mesmo da britânica. Alguns dirão que morreu por capricho. Se o Templo pudesse, de fato, ser reerguido em três dias, Roma não teria acesso a tamanho privilégio.

Iniciado na sagrada Lei de Moisés, meditou sob as ditas esferas a fim de compreender o duplo abandono que sofreria: se Kether é a Malkuth do imanifesto, concluiu que nada disso lhe serviu, como não lhe servirá. Sendo forma e substância, falhou como esperado. Não havia de ser diferente – tolo é o nobre que lhe conferiu distinto desenlace – haja vista que a reputação crística que lhe sucedera não tornou o burro de José santo, tampouco a placenta de Maria divina: a santidade do Homem reside exclusivamente no prego que lhe rasgou a carne. Jesus aceitou desvelar-se como pó e cinzas tal como um amante no seio do bem-amado. Seu imaculado trono permanece na alcova misteriosa na qual depositou seu sonho de continuidade: Maria Madalena guarda seu segredo e seu amor; nós não o merecemos.

Sensibilizado pela escatologia profética de quem era vítima, soube de antemão que lhe tornariam lembrança apenas pelo prego, pois, sendo filho de carpinteiro melhor desfecho não havia senão aquele pelo qual o Homem confidenciaria sua angústia à textura amadeirada da cruz que fez o trono de Cristo: as vigas sobrepostas no símbolo do sacrifício beberam o sumo daquele que suportou o peso de carregar seu cadáver às costas.

Jesus morreu como Homem. Morreu porque tinha que morrer; do contrário, se não morresse, toda a tradição depositada na cabeça do prego que lhe rasgou a carne perderia a possibilidade de existência. O fraquejo e o medo da punição tornados entraves para as mãos e braços do centurião foram solapados pela vontade de Deus. O Pai pregou o Filho na cruz para que a salvação pudesse nascer: tragédia judaica antes mesmo de ser um triunfo cristão. Não me admira Édipo ressentir e fazer-lhe a devida justiça evocando, com as devidas vênias, o paradigma babilônico cujo efeito nota-se pelos cegos e banguelas a desandar no mundo.

Diga-se: o único caminho para o encontro da alma com o Pai é a certeza da angústia. Jesus amargamente entendeu isso no Jardim, razão pela qual foi complacente com o seu destino. A angústia e o sofrimento são os dois lados de uma moeda cunhada no sangue do cordeiro – bem-aventurados são os que dizem que as linhas se encontravam retas antes do peso depositado na mão divina que escreveu a história dos Homens.

Após dois milênios acredito que somente Cristo tenha saído do deserto; ou quem sabe o deserto nunca tenha saído dele. Carregou por Gólgota o fardo de saber ser Graça, portanto pó, de saber ser carne e angústia, portanto pecado. Triste natureza de Homem. Angústia carnal de Deus. É preciso ser homem para sofrer na tomada de consciência do pecado, mas é preciso ser Deus para carregá-lo e redimi-lo: somos humildes porque não sabemos ser Deus. Trinta moedas foi o preço custeado a favor da redenção de Roma; também o foram para a redenção dos pecados. Ironia ou tragédia? Não sei, talvez Pilatos responda após lavar as mãos.

O impacto visual que tal efeito estético carrega condiciona rompantes extáticos do criador: o Pai goza com a natureza da morte do Homem; suas representações artísticas enternecem o coração de Cristo, mas é o canibalismo sacralizado de seu corpo que aquieta o coração dos homens. O sacrifício continuará inalcançável enquanto o supremo gesto de devoção servir-se do sangue como ápice de uma forma enrugada e egoísta de amor: Jesus, perdoai-vos, eles não sabem o que fazem.

Imagem: detalhe de “A crucificação de Cristo” (Jacopo Tintoretto, 1568)

Sobre o autor

Gabriel Luis Silveira

Advogado atuante nas áreas de direito contratual e tributário. Graduado em Direito pela Universidade da Região de Joinville/SC. Sacerdote Menor no templo Fraternidade Umbandista Luz Cósmica Universal - FULCOU. Pesquisador do grupo A Experiência Mística e o Conhecimento, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.