A entrevista a seguir, feita com Alexander Batthyány, foi concedida ao grupo de pesquisa “O vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.
Alexander Batthyány, PhD, ocupa a cadeira Viktor Frankl de Filosofia e Psicologia na Academia Internacional de Filosofia do Principado de Liechtenstein, e é Diretor do Instituto de Pesquisa em Psicologia Teórica e Estudos Pessoais na Universidade Pázmány de Budapeste. Desde 2012, Batthyány é também Professor visitante de Psicoterapia Existencial no Instituto de Psicanálise da Universidade de Moscou, além de ser Diretor do Instituto Viktor Frankl de Viena.
Os contatos iniciais com o professor Batthyány se deram por mensagens eletrônicas, em uma semana ensolarada de verão. Ele quebrou nossa formalidade depois de três ou quatro linhas, logo no primeiro parágrafo: “aliás, fique à vontade para me chamar de Alex”.
Autor consagrado, publicou mais de quinze livros sobre psicologia existencial, teoria da ciência cognitiva e reflexões sobre a morte e o morrer, materiais traduzidos para onze línguas. Alex recebeu com alegria a notícia de que os temas do vazio existencial, da busca de sentido na vida, as obras do pensador Viktor Frankl e o Existencialismo são fontes de pesquisas atuais aqui no Brasil, mais precisamente no LABȎ.
Por conta da distância geográfica e do fuso-horário, Alex concordou em gravar um vídeo respondendo a algumas de nossas questões. A ideia de disseminar e partilhar conhecimento sobre o legado de Viktor Frankl e da psicologia existencial entre Europa e América do Sul foi suficiente para entusiasmar nosso entrevistado, que pareceu à vontade diante das câmeras, genuinamente disposto a participar da discussão com nossos pesquisadores brasileiros.
A seguir, o leitor poderá conferir o resultado da inspiradora conversa.
Boa leitura!
Alex, obrigado pela sua participação, estamos lisonjeados. Vamos à primeira pergunta: Logoterapia (e Análise Existencial) é um sistema teórico-prático criado pelo psiquiatra vienense Viktor Emil Frankl, que busca, a partir de sua antropologia, abarcar uma visão de homem em suas dimensões biológica-psicológica-espiritual. É conhecida como a Terceira Escola Vienense de Psicoterapia, sendo a Psicanálise Freudiana a primeira, e a Psicologia Individual de Adler a segunda. Suas técnicas são amplamente conhecidas e utilizadas na comunidade clínica de Psicologia, com pacientes em terapia. Entretanto, para além da Psicologia, com seus métodos de tratamento clínico, qual a relevância do pensamento de Viktor Frankl para a Filosofia contemporânea?
Sou eu que agradeço o convite, que prazer estar aqui neste momento! Começamos logo com uma excelente pergunta! (risos). Para começo de conversa, não existe Psicologia como ciência, tampouco Psicoterapia como prática clínica, sem uma filosofia basal e implícita. Se olharmos para Freud e Adler, como você bem citou anteriormente, há claramente um entendimento em ambos do que constitui a natureza humana em si, o que significa “ser humano”, o que significa viver uma vida completa, o que é tríade mente, corpo e espírito; essas são todas reflexões que, falando estritamente, não são relativas às ciências empíricas (sendo a Psicologia obviamente uma dessas ciências) – são questões filosóficas.
O que quero dizer com isto é que, até Frankl, não podíamos olhar para tais reflexões empiricamente – tampouco analisá-las. Tudo que podíamos fazer era encontrar argumentos lógicos e fenomenológicos (ou seja, como as coisas parecem ser) para tais reflexões, e, a partir daí, tentar entender não somente como essas reflexões se parecem, mas o que elas são de fato.
A Logoterapia tem uma base filosófica forte e não difere de outras escolas de pensamento por ter tal fundação – ela difere por ser explícita, por tentar encontrar argumentos em favor de seu entendimento filosófico da constituição da pessoa humana, sentido de livre-arbítrio e assim por diante. Os professores de Viktor Frankl (Freud e Adler) não estavam muito interessados em explicitamente desenvolver a filosofia por trás de seus pensamentos; vemos, por exemplo, Freud escrevendo que foi após a Psicanálise ser criada como método de tratamento que ele começou a buscar as implicações filosóficas que pudessem fundamentá-la. Mas a verdade é que, na Psicanálise, a filosofia, a base filosófica, não veio em primeiro lugar – o que veio em primeiro lugar foi o método psicanalítico.
Então, os dois professores de Frankl não estavam inicialmente muito interessados numa análise detalhada da filosofia. Frankl é inovador no sentido de que o que ele fez foi combinar dois mundos: o da ciência e o da filosofia existencial – seu interesse era, em outras palavras, pensar sobre temas filosóficos relativos à natureza humana e chegar a algumas predições como resultado. E predições são testáveis! Testáveis empiricamente, cientificamente.
Pegue as predições resultantes de seu pensamento filosófico, estude-as como um cientista imparcial e aplique-as na vida cotidiana. Então a relevância de Frankl é alta porque ele é um dos primeiros psicólogos e filósofos existenciais que mostrou interesse na filosofia existencial, não apenas naquela que acontecia numa torre de marfim isolada do mundo real, mas naquela que você pode usar e aplicar na sua rotina – não apenas no trabalho clínico da psicoterapia, mas como um conteúdo profilático antineurose e em diversas outras áreas da vida.
Claramente, podemos deduzir que, se você entende como uma pessoa funciona, como ela é, como todos nós humanos somos, também é possível deduzir o que sai de você e de mim em termos de pensamentos, sentimentos e comportamentos, como lidar com outros seres humanos e assim por diante. Essa é a natureza radicalmente inovadora do pensamento frankliano.
Em uma entrevista anterior, você mencionou a importância de sermos cautelosos em relação à descrição de um conceito muito importante na obra de Frankl: o “Sentido”. Quais são as diferenças principais entre ter motivação na vida, buscar por sentido na vida e encontrar sentido na vida?
Eu acredito que vocês estejam se referindo a uma entrevista que eu dei um tempo atrás, na qual eu falei sobre diferentes tipos de instrumentos que nós temos na técnica de Logoterapia. Naquela ocasião, eu disse que temos de ter cuidado – veja bem, ao todo, temos em torno de 45 testes disponíveis que usamos no manejo clínico. O problema é que talvez você pense “humm, eu quero procurar pelo constructo ‘sentido’, por exemplo, ‘sentido da vida’”: se o sentido é único, porque eu precisaria então de 45 testes e não apenas 1?
A questão é que esses estudos, esses testes são cuidadosamente pensados, e muito delicadamente sintonizados, porque investigam constructos diferentes: um pode investigar se a pessoa ou o paciente já tem sentido em sua vida ou não. Então, existem instrumentos claros e diretos usados na clínica, porque geralmente sabemos quando nossas vidas são significativas ou quando as situações atuais de sua vida são permeadas por sentido. Isso não é algo que acontece inconscientemente, certo? Isto é algo que você já sabe e já experiencia, “minha vida tem sentido sim!”.
Às vezes, então, no campo da Logoterapia, você não precisa de testes supercomplexos para as pessoas revisarem algo sobre elas, porque muitas vezes elas já sabem aquilo. Sentido não é algo que você não sabe, não é algo que você não sabe se existe (ou não) em sua vida. Sentido na vida é algo que as pessoas sabem se tem ou se não tem.
Então, o que esses testes fazem é perguntar e pesquisar bem diretamente outros constructos na vida do paciente que não são tão óbvios, para que as pessoas possam então usá-los para revisar algo em si mesmas que talvez desconheçam. Por exemplo, o sentido (da vida) não é algo que você desconhece; se você está plenamente preenchido de sentido, geralmente está muito bem ciente disso. Portanto poderíamos pensar em testar o ‘propósito da vida’ para determinado paciente. Veja bem, são testes semelhantes por derivarem de um conceito, uma raiz única – o sentido da vida – mas visam objetivos diferentes.
Outras construções dentro desse campo não são tão óbvias: por exemplo, o teste SONG, que versa sobre a busca de um sentido que nem sempre é explícito. Como você pode se lembrar, Viktor Frankl por vezes disse que Freud, Adler e outros pensadores caíram na armadilha dos pacientes, porque seus pacientes não estavam realizados em termos de sentido em suas vidas e, portanto, buscavam algo mais fácil de obter, como sexo, poder, status, e assim por diante.
Esses pacientes estavam procurando sentido para suas vidas, sua busca foi malsucedida e, portanto, eles escolheram a segunda melhor opção, ou a terceira melhor opção disponível, que poderiam ser drogas ou assistir Netflix e nem ver o tempo passar, ou usar o Facebook, ou pular de relacionamento em relacionamento, enfim… Se você não está realizado, é claro que vai buscar algo que ao menos preencha o vazio que se abre em seu peito.
Portanto a razão pela qual temos 45 testes adicionais na clínica, ainda que todos derivem da mesma raiz relativa ao sentido da vida humana, é o fato de que nem tudo é sempre tão óbvio e consciente para que o paciente diga “minha vida é significativa sim e sei disto”. Esses testes existem para auxiliar o trabalho clínico de caso a caso, e acho muito importante responder que há diferenças entre eles – uma delas é a acessibilidade consciente, ou seja, uma das tarefas do logoterapeuta é ajudar alguém a entender que, talvez, um certo vício ou um certo hábito, que ele às vezes até percebe não ser muito bom a longo prazo, mas que mesmo assim tem dificuldade em parar, pode ser um substituto para o que realmente estamos procurando. Talvez o vício, o poder, o sexo e a Netflix existam não apenas porque nos sentimos bem por um curto tempo, mas porque têm uma serventia, basicamente de mascarar um sentido real para sua vida.
Bom, todos nós sabemos que Frankl disse existirem três vias principais, por assim dizer, para o sentido da vida humana: você experimenta algo (que lhe traga sentido), ou você cria algo (que lhe traga o sentido), ou você toma certas atitudes, especialmente se as circunstâncias em que você se encontra forem inalteráveis ou não negociáveis – e isso pode ser tanto em sofrimento quanto em momentos muito bons, algo como a fé.
Se o mundo é muito gentil com você, então você ainda tem que reagir, quero dizer, você pode ganhar na loteria e de repente ficar extremamente rico. Mas isso por si só não diz nada. Agora vem a atitude pessoal: o que você faz com isso? Você recebe o dinheiro com sabedoria, você guarda algo para seus filhos, ajuda outras pessoas ou simplesmente gasta loucamente? Os testes chamados valores atitudinais e um outro chamado “fonte de significado”, por exemplo, investigam exatamente se pode haver certos tipos de personalidade que talvez tenham mais coração e ouvidos abertos para certos tipos de atitude.
Alguns de nós somos personalidades mais ativas, por assim dizer. Por exemplo, essas pessoas muito criativas, que escrevem, cantam e compõem música… e há outros que são muito mais receptivos, empáticos, carinhosos. Há alguns de nós que são mais pensativos e gostam de refletir, outros que se atiram no mundo, e assim por diante. Acredito que a premissa importante aqui é a de reconhecer que estes diferentes instrumentos criados em Logoterapia se diferenciam entre si, apesar de sua raiz filosófica comum, e são usados de acordo com cada tipo de demanda que surge em consultório.
Victor Frankl foi o primeiro fundador de uma escola de pensamento que não questionou nem negou a religião. Quais são as suas opiniões sobre esse assunto e como a maneira de pensar de Frankl pode influenciar a Logoterapia?
O ponto aqui é que, se você observar a história da Psicoterapia, que é muito jovem e recente, verá que na maioria das antigas escolas, e talvez até os dias atuais, a religião era vista com certa desconfiança. E por quê? Os psicólogos estudam a experiência e o comportamento, e se você olhar para a religião sob a perspectiva puramente psicológica, você verá pessoas experimentando entidades transcendentes, uma conexão com o etéreo, anjos da guarda e assim por diante. Essas pessoas espiritualistas e religiosas fecham os olhos e, no íntimo de seu ser, falam com alguém que ninguém mais vê (eles rezam).
Todos nós sabemos o que Freud falou sobre a religião, que nada mais era que uma neurose em massa; também Adler, que pensava a necessidade de se ter uma religião essencialmente no tocante a sentimentos de inferioridade e superioridade – porque nos sentimos inferiores perante os problemas da vida, mortalidade e nossa limitação em comparação com as forças da natureza, precisamos dessa figura de um pai imaginário que contenha a natureza e nos proteja se falamos com ele – este é Deus, um pai todo-poderoso.
Você tem, portanto, várias ideias de todas as outras escolas de pensamento sobre o que é a religião, mas todas essas ideias, por mais diferentes que sejam, estão de acordo quando se trata da pergunta ‘o que é a religião’: a resposta é que ela não passa de uma grande neurose em massa, ou uma tentativa de lidar com a nossa finitude ou nossos limites como seres humanos – a religião como uma resposta à ansiedade ante a morte e assim por diante.
Então chega Viktor Frankl, com um pedigree muito bom (risos), quero dizer, o terceiro grande pensador logo após Freud e Adler, e diz algo completamente inovador: que o psiquiatra, o psicólogo, não devem ser reducionistas – isso significa que eles não são responsáveis por explicar tudo sob o sol, já que existem certos fenômenos que são irreduzíveis. Você não pode dizer que as orações são apenas um monólogo, tampouco pode, por exemplo, dizer que a música não passa de um amontoado de frequências físicas que produzem som.
Há mais na religião – e esse comportamento, que é ‘mais do que experienciamos com palavras’, é irreduzível. Em outras palavras, o psicólogo não está aqui para explicar Deus, para explicar a oração ou o sentimento religioso. É o mesmo tipo de debate reducionista que existiu por muito tempo na filosofia: ‘será’ que a teologia pode ser reduzida à filosofia ou não?’ – bem, os filósofos de hoje em dia sabem melhor que ninguém da importância de um departamento de teologia separado de um departamento de filosofia, que geralmente fica em outro prédio da Universidade (risos).
O que quero dizer é que a Logoterapia tem, é claro, uma certa afinidade com a religião, e isso se deve ao fato de os religiosos e respectivos clérigos finalmente verem que existia um pensador muito bom, para não dizer excelente, chamado Viktor Frankl, que fundou sua nova escola e que não está dizendo a eles que o que eles vivem é uma neurose em massa, mas que o que eles vivem em suas religiões pode ser genuíno. Veja bem, pode ser – ele não disse que é porque é ele um psiquiatra. E quem somos nós no campo da Logoterapia clínica para declarar que o que estava no Antigo Testamento ou na citação de qualquer livro sagrado não serve para nada por não serem textos psicológicos? São áreas diferentes e, como profissionais unicamente clínicos, não estamos equipados para julgar nada religioso.
Eu acredito que Frankl disse que a Logoterapia e a religião são como vizinhos: se você é um bom vizinho, não entra na casa do outro, sem permissão, e diz que tudo o que ele tem é seu; porque você também não permitiria que seu vizinho entrasse na sua casa e vivesse lá como se fosse a casa dele. Acredito que essa imagem seja importante para ilustrar que os logoterapeutas devem ter respeito pelas religiões, pelas pessoas religiosas e pelas crenças de seus pacientes, mas também pelos ateus e pacientes não-religiosos, pois negar a fé de alguém seria uma má prática na clínica, e impor sua fé a alguém que não é crente ou que não acredita neste momento também seria uma prática ruim.
Portanto, mantenho que Psicoterapia e Religião devem permanecer em áreas separadas, e acho que, se você observar os livros de Viktor Frankl, ele foi muito tranquilo ao falar sobre religião. Não há necessidade de explicar o quão religioso ele era, e sabemos dos arquivos privados e biografias que o próprio Frankl praticava sua fé em uma casa inter-religiosa, considerando que sua esposa, Ele Frankl, era católica, e esse respeito pela individualidade do outro funcionou tão bem em sua vida pessoal que transpareceu em sua obra. E acredito que, se você realmente tem uma certa compreensão básica sobre os limites da atuação psicoterápica, você pode então se permitir ser tão relaxado quanto Frankl acerca desse tópico.
Você acredita que as pessoas atraídas pelo pensamento de Viktor Frankl são pessoas verdadeiramente apaixonadas pela vida, ou seja, apesar do vazio existencial que todos por vezes experimentam, elas buscam um sentido maior, um motivo pelo qual valha a pena viver?
Ah, que bela pergunta! Muito bom! Então, em contraste com o vazio existencial, podemos dizer que sim, a busca por sentido é uma carta de amor à vida. Não gostaria de responder a essa pergunta, porque ela é realmente bonita, mas também é uma pergunta retórica. Quero dizer, a busca por sentido é sim tal qual uma carta de amor à vida, mas você sabe o que é ainda mais bonito? É quando o chamado pelo sentido chega e você responde.
Portanto, a busca por sentido na verdade é um convite para um encontro com a vida. Eu estou aqui, estou pronto, estou disponível, e quando você chegar, vida – seja em qualquer tamanho, forma ou aparência, coisas boas, coisas ruins, coisas entediantes –, onde quer que eu seja necessário, estarei lá.
Então, o que significa a busca por sentido? A busca por sentido é um convite para encontrar um lugar diariamente. Estou aqui, estou pronto, estou disponível, e quando há sofrimento e posso de alguma forma ajudar a aliviar o sofrimento não vou me afastar olhando apenas o que é bom para mim, vou olhar para o que sou ou para o que estou olhando, vou procurar ser útil e agir com responsabilidade.
Isso é a carta de amor à vida, mas também significa que vou responder à vida quando ela me enviar algumas cartas de amor, porque basicamente o fato de estarmos aqui e o fato de termos livre-arbítrio, nossas mãos livres, uma mente funcional e um corpo saudável já é um presente de amor enorme. Mas a pergunta importante é o que fazemos com isso. Se observarmos ao nosso ao redor, na contemporaneidade, e focarmos em nosso mundo… é um lugar fundamentalmente destruído, com vários desafios.
Há muito sofrimento no mundo, enquanto estamos conversando nestes trinta minutos, pessoas estão morrendo, pessoas estão ficando cegas, crianças estão ficando cegas e morrendo. Nao há nada pior do que isso. Então, se é um caso de amor, é um caso complexo, e somos necessários em meio ao caos. Acho que essa é a base do otimismo trágico, um conceito fundamental na obra de Viktor Frankl – a carta de amor à vida e a capacidade de responder, de pegar o telefone e atender ao chamado que a vida faz e contribuir no que lhe cabe em termos de sua capacidade, habilidade, responsabilidade com você mesmo e com os outros.
É possível expandir a ideia de que nossa liberdade como espécie não é concedida porque somos determinados, mas sim que nossa liberdade nos é concedida porque, apesar de determinados, ainda somos livres?
Sim, eu acredito que Viktor Frankl estava muito interessado em definir a liberdade de uma maneira muito especial, humana e humanitária.
Claramente, não somos livres de sermos predeterminados – eu nasci em determinado ano, não tive escolha; eu nasci nesta família, não tive escolha; me apaixonei pela minha esposa maravilhosa, não tive escolha. Mas isso por si só apenas estabelece as bases – é como o rascunho de uma ideia no papel de pão: o que foi escrito naquele rascunho lhe foi dado, cabe a você desenvolver a idea, transformar o rascunho na versão final, página por página. As condições lhe são dadas, determinadas, mas então o que você escreve no papel? O que você faz com o rascunho? Joga fora ou se dedica a ele?
Essa é a sua verdadeira escolha. Frankl disse que não somos livres das condições, mas somos livres para adotar uma postura ou decidir ante essas condições impostas. Em outras palavras, traduzindo para a vida cotidiana, tudo o que aconteceu até este exato momento está definido, dado.
Sabemos que não podemos retirar o passado do mundo, ele está eternamente seguro porque é passado e sua forma de existência está preservada por toda a eternidade. O segundo passado é determinado, porque estava acontecendo até agora há pouco. A partir de agora, do momento atual até o próximo momento, apesar de não sermos isentos do que aconteceu antes, somos livres para o que ainda vai acontecer, e para decidir o que vai acontecer a partir de agora.
Nesse sentido, essa é a ideia de liberdade da Logoterapia, que contradiz as descobertas na Psicologia em geral, que tende a ver a pessoa humana sob aspectos mentais bastante mecanicistas. Não apenas a psicologia cognitiva, mas a neuropsicologia, a psicologia biológica, a psicologia evolutiva, a psicologia social – todas essas áreas encontram fatores determinantes muito fortes em nosso comportamento, em nosso pensamento, e assim por diante – o que é verdade, mas não pode ser tudo.
Acho que é muito importante que os apreciadores da obra frankliana não travem uma luta com os outros campos do saber em Psicologia. Isso porque, conforme já discutimos anteriormente, nós aceitamos tudo o que foi encontrado em estudos empíricos, se os estudos empíricos forem bons e replicáveis, não há necessidade de lutar contra isso e teríamos de nos resignar. O motivo de não precisarmos defender a liberdade de ação com todas as forças ante o determinismo de outras abordagens clínicas é o fato de que não há um estudo empírico sequer no mundo que refute a ideia do livre-arbítrio.
Pelo contrário, existem alguns estudos recentes sobre o livre-arbítrio na Psicologia, feitos por Roy Baumeister e outros, que parecem sugerir, fortemente, que de fato temos uma quantidade considerável em nós mesmos do que filosoficamente chamamos de livre-arbítrio ou liberdade de escolha.
Pessoalmente, eu acho que a solução logoterapêutica é muito boa: em primeiro lugar, o que quer que seja dito empiricamente é dito empiricamente, quero dizer, está feito – portanto somos determinados, mas somos livres também, claramente determinados até agora, e somos determinados por aquelas coisas que não podemos mudar claramente: o sol está no céu, não podemos mudar isso, mas eu saio ao sol para me bronzear, ou o uso para fabricar painéis solares, ou decido que está muito calor e fico dentro de casa. Bom, essa é a minha escolha. Sim, é sempre um jogo ou uma dança, se você preferir esta metáfora.
Falando de cartas de amor, eu e os desafios que a vida me oferece são como um tango entre os fatores determinados que não podem ser modificados, e minha reação a eles, e também minha proatividade agindo em direção a algo que não faz parte do esquema do determinismo. E há muitas, muitas, muitas possibilidades criativas nisso.
Há certa controvérsia disseminada por críticos de Viktor Frankl, que dizem que suas ideias podem estar ligadas à autoajuda e à meritocracia, apenas porque o autor coloca o conceito de responsabilidade da vida no indivíduo. O que resta dizer para aqueles que acreditam na controvérsia?
Mas isso mudou, não é? Quero dizer, nas décadas de 1980 e 1990 houve uma nova onda na psicologia clínica, em que professores mais jovens tentaram superar a herança um tanto quanto emocionada (risos) das décadas de 1970 e 1960 – você sabe, hippies e um eterno questionar de “como você se sente”, e uma cultura de muitas drogas. Tais professores de 1980 e 1990 olharam para as décadas passadas e disseram ‘não, nós temos que estabelecer uma disciplina científica adequada’, assim como foi nas décadas de 1880 e 1890, quando William James e Cooper e outros disseram que precisávamos ter uma ciência adequada, caso contrário a psicologia nunca iria funcionar como uma ciência adequada.
Então, o mesmo se repetiu nas décadas de 1980 e 1990, cem anos depois; e havia Viktor Frankl, alguém realmente interessado em conduzir estudos muito bons, mas que estava trabalhando para um público pragmático e americano, e que escreveu um livro cuja tradução dúbia dizia que o título se chamava “O Homem em Busca de um Sentido”.
Sim, olhando retrospectivamente, todos esses fatores juntos podem até ter passado uma imagem de um saber que não era verdadeiramente científico, mais ou menos como autoajuda, sabe, psicologia popular. Mas são elementos circunstanciais.
Se você olhar no Manual Oxford do Livre-Arbítrio, este livro vermelho atrás de mim (aponta para uma estante atrás da cadeira onde se senta durante a entrevista), da Oxford University Press, há um artigo de Roy Baumeister sobre o conceito de sentido na Psicologia, e ele diz que sim, em 1986, havia essa voz solitária no campo da psiquiatria e psicologia acadêmica e clínica que dizia que precisamos levar nossos pacientes a sério, já que não é suficiente para eles se “sentirem bem”, porque se sentir bem é algo que pode mudar rapidamente.
Em um momento você se sente bem, e no momento seguinte algo acontece e você não mais se sente bem, sua vida desanda e, claro, tudo isso é legítimo. Não é apenas sobre se sentir bem o campo por onde trabalhamos na clínica, os pacientes querem saber para o que são bons, querem que suas vidas tenham sentido. Eles sabem que vão morrer um dia, assim como seus pais, a família… e eles querem saber se há sentido em tudo isso.
A vida é bonita, todos nós sabemos como a vida é bonita, mas a vida também pode ser muito, muito dolorosa. E se você entende que vai passar por momentos dolorosos em algum momento, se prepara para tal, você quer saber qual é o propósito, criar um para si. Esta é a função da responsabilidade em Frankl. À medida que envelhecemos, você se pergunta como foi que se saiu, e, se tudo terminasse agora, será que você diria: “Estou bem com o que deixei para trás?”
É um presente enorme quando você pode dizer que posso não ter feito tudo perfeito, mas acho que posso viver com o que deixo para trás. Mas isso só é possível quando há sentido na vida – sentido único, para mim apenas.
Em outras palavras, hoje em dia há uma enorme quantidade, David Goodman e eu escrevemos um livro sobre isso, inclusive, sobre estudos empíricos em Logoterapia e Psicoterapia orientada para o sentido da vida.
Existem mais de 600 estudos empíricos revisados por pares acadêmicos, a maioria deles não conduzidos por terapeutas, que mostram que nossos conceitos, os de Frankl, não são apenas populares na Psicologia como um todo, mas fundamentalmente na Psicologia clínica adequada. A Psicologia clínica esteve por algum tempo tão distante do que acontece na vida humana que se perdeu por um tempo. Acho que agora isso mudou.
Se você procurar hoje em dia no PsychINFO (um dos maiores bancos de dados acadêmicos de estudos empíricos) por Logoterapia e Frankl, você não vai encontrar nada relacionado com a Psicologia popular, mas encontrará muitos estudos sobre a Psicologia Clínica abordando a questão do sentido e assim por diante.
Eu até iria um pouco mais longe. Se você olhar para os livros de autoajuda da atualidade, acho que eles estão indo em uma direção muito diferente. Eles têm seu próprio pensamento positivo, o que é um conceito muito estranho para nós. Nós Franklianos, tentamos ser realistas, não usamos óculos cor de rosa para enxergar o mundo, para que tudo pareça bonito e perfeito, mas tentamos ser razoavelmente racionais.
Tentamos estar disponíveis como em um relacionamento amoroso, nem sempre feliz, mas você também se dirige à sua parceira ou parceiro e é realista, assim como eu sou pai de dois filhos e, nesse papel, você precisa ser realista. E se você é realista, está agindo de maneira adequada na vida, então seu relacionamento com a vida, sua família ou o que seja, o seu trabalho, está funcionando.
Os livros de autoajuda de hoje, para mim, parecem tão desconectados do que está acontecendo no mundo. Há a crise climática, a Covid esteve presente, e talvez esteja voltando, existe tanta pobreza, sofrimento, conflito, depressão e ansiedade, e nós temos soluções. Realmente temos métodos e uma mentalidade desenvolvida em pleno século XXI para dizer que não precisa ser assim, tudo o que não precisa ser assim pode ser mudado, e tudo o que pode ser mudado, se podemos mudar, deveria ser mudado.
Ainda é uma oferta, um papel que eu assumo, uma responsabilidade – sim, estou aqui se precisarem, e acredito que os contemporâneos da autoajuda muitas vezes escrevem sobre egoísmo e hedonismo. Para estes autores, não se trata de como nos sentimos bem juntos, em comunidade, não é sobre o ecossistema, é sobre o egossistema, é apenas sobre mim, e isso é o oposto da Logoterapia.
Portanto, eu diria que é verdade que Frankl centraliza a responsabilidade no indivíduo. Mas eu gostaria de perguntar: quem mais deveria ser responsável? Você gostaria de tornar suas condições determinadas responsáveis pela sua vida? Se fizer isso, você não terá mais a liberdade de fazer algo a respeito.
Sim, e se você disser que os governantes são os responsáveis, então você cai no territorialismo, entrega sua responsabilidade de mão beijada. Obviamente, precisamos ser responsáveis, como Viktor Frankl já dizia: o outro lado da liberdade é a responsabilidade. A linguagem é tanto bonita quanto assustadora, e acho que essa dualidade, bela e assustadora, também captura a essência do otimismo trágico. Eu poderia continuar e continuar, mas eu diria que, para essa pergunta, o que resta a dizer para aqueles que acreditam nisso, que acho que nos anos 1980 você poderia ter lido isso em algum lugar, mas não acredito que você leria isso hoje em dia.
O que você lê hoje é um ressurgimento muito forte, um renascimento incrivelmente forte da Logoterapia. Sempre penso em Elizabeth Lucas, minha professora, que disse algo muito sábio e espero manter esse pensamento sempre em minha mente. Ela disse que a Logoterapia nunca esteve na moda e, portanto, nunca sairá de moda. Isso é verdade, mas estamos vendo um renascimento muito forte do interesse na Logoterapia.
Você talvez saiba que ela está crescendo em ambientes institucionais, a Logoterapia está, eu diria, até mais forte hoje. Quando comecei a trabalhar no Instituto em Viena, acho que tínhamos, não sei, talvez 20 ou 30 institutos, agora temos 147 Institutos e o mais novo membro da família é o Instituto Ucraniano de Logoterapia. Mesmo em tempos tão difíceis, o interesse continua crescendo em muitos países diferentes, novos institutos estão surgindo, então talvez não tenhamos entrado na moda, mas talvez pesquisadores e psicólogos clínicos tenham descoberto que o que estamos fazendo e fazemos há muito tempo tem algum valor.
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