(…) Prometeu, considerado comumente na Antiguidade o criador do homem. ‘Prometeu’ quer dizer na verdade ‘previdente’, mas também ‘preocupado’. Como quer que seja, estamos ante uma profunda verdade psicológica. Porque são o desejo e o projeto, e especialmente o projeto técnico, ‘prometéico’, que engendram a preocupação (HADOT, 2006, p. 166).
Pobre hipotálamo. Imagine ser diretor de operações de um bicho como nós: uma empresa cujo diretor executivo é falho em discernimento – embora graça-a-deus alterne, sabemos que tem por costume se apressar em escolher o “seis”, porque a “meia dúzia” lhe remete à ideia de menos. Nada mais coerente. Evidente que há exceções, mas quem, afinal, vai querer metade de alguma coisa?
Mesmo que nem chegue a ser próximo de uma metade – míseras quatro gramas de um cérebro de mil e duzentos –, de tarefas, o hipotálamo está cheio como um ovo: recebe e integra informações sensoriais de todos os arredores a fim de manter a homeostase[1].
De posse de tais relatórios, coloca em campo hormônios que influenciam a ingestão de alimentos, o consumo de energia, o peso corporal, a ingestão de líquidos, a pressão arterial, a temperatura do corpo, o ciclo do sono. Se o hipotálamo[2] se afastar por burnout, que ninguém lhe conteste o atestado.
Para um cérebro primitivo que vive na modernidade, a tecnologia é uma benção, no mínimo, ambígua. Mentalize o caos neurológico: a retina, uma das mensageiras do hipotálamo, declara há meses que a noite foi encurtada. Segue-se o protocolo: atrasa-se a melatonina[3]. Quando o sono chega, já é quase dia. Quando a noite acaba, o sono que sobrou dobrou o cansaço.
A amígdala, da equipe do sistema límbico (relacionado ao comportamento hedônico), segue lotando a caixa de e-mails do hipotálamo. São notas fiscais, códigos de rastreamento: produtos e mais produtos.
A área pré-frontal, que deveria dar freio a esse acelerador emocional que é a amígdala, justifica-se: é tudo vício em dopamina. Fornece a brilhante solução que, pasme, foi a amígdala que comprou numa noite insone: jejum de dopamina.
Seguramente a palavra “dopamina” não é estranha ao leitor. Como ela funciona? É a molécula do desejo, da perpétua insatisfação (LIEBERMAN & LONG, 2023) – não precisa nem de etiqueta para saber que é nossa, certo? A dopamina é orientada para o futuro. Dedicada à antecipação, incita-nos a possuir e a acumular, ou seja, a querer a mudança. Seu valor biológico está em nos fazer sair em busca de coisas melhores.
Como de polaridades a biologia também é cheia, temos moléculas do presente, do aqui e agora. Eis a listinha: serotonina, oxitocina, endorfinas e endocanabinoides. Essa galera proporciona prazer por meio de sensações e emoções ligadas à satisfação profunda e duradoura. Diferentemente da dopamina, as moléculas do aqui e agora têm aversão a mudanças.
Voltemos à empresa-cérebro: ela está por um triz. O faturamento não acompanha os gastos e a responsável pela fome descontrolada sugere jejum. Horas-extra resultam em privação de sono e alimentação ultraprocessada.
Podemos glorificar os workaholics – compreensível, visto que convivência curta não entrega todos os defeitos, e é bem descrito como todos os heróis vivem menos (a ciência confirma: privação de sono reduz estimativa de vida e aumenta o risco para várias doenças). Podemos, ainda, agradecer à comida hiperpalatável, mas os custos neurológicos são indiscutíveis.
A falta de sono deixa a amígdala farrear solta. Os funcionários do controle comportamental estão exauridos, a força de vontade respira por aparelhos. No cenário estendido, há todo um mercado que cria novos desejos em menos de um amém.
Mídia e redes sociais fornecem notícias e opções de compras. Algoritmos valem-se da repetição e da troca de desejos, conhecem como ninguém a receita do vício e do adestramento.
Calma que nem alcançamos o capítulo da catástrofe. Toda vez que há interrupção no fluxo de dopamina, o resultado é a sensação de decepção e ressentimento. Humor afetado distorce o pensamento. A perda do equilíbrio neurológico leva à perda do equilíbrio emocional. Tem quem tente comer para ver se melhora.
Dize-me com quem comes, dir-te-ei com quem votas (ASSIS, 2017, p. 31).
Agora que temos um panorama do estado da nossa empresa-cérebro, vamos à pergunta do título: o cérebro liberal é diferente do conservador? O que a dopamina tem a ver com isso?
Lieberman e Long, em Dopamina: a molécula do desejo, trazem o conceito de personalidade vinculada à quantidade de dopamina, ou seja, “personalidade mais ou menos dopaminérgica” como enquadramento para entendermos diferenças de comportamento – inclusive de comportamento político.
Se o leitor achou que a descrição tem tudo para ser muito superficial, na esfera política a simplificação não é menos acochambrada: dividimos campos ideológicos entre direita e esquerda, não é mesmo?
Num certo sentido, essa “economia” facilita o manejo das ideias: sistemas complexos nos embaraçam. Em contrapartida, é fácil reconhecer que a realidade não é simples, mas fatalmente ficamos confusos, pois somos seres tão aficionados pelo real quanto pela imaginação – e nem sempre conseguimos distinguir muito bem quando estamos usando um ou outro. No coleguinha achamos que notamos melhor, claro.
No livro de Lieberman e Long aparecem pesquisas sobre comportamento político que indicam que os liberais são muito dopaminérgicos, pois são voltados para mudanças e são idealistas. Os conservadores, entretanto, são do time das moléculas do aqui e agora: são desconfiados e suspeitam do idealismo.
Acontece que a política é um sistema altamente dopaminérgico, afirmam os autores. Digo mais: o circuito do desejo é quase um político, não cumpre promessas. É a fome com a vontade de comer – por isso que os liberais tendem a ser mais engajados em política.
Por falar em política, vamos a Daniel Innerarity, em Política para perplexos: o fim das certezas. Para ele, vivemos uma época de incerteza e estamos perplexos. Há um mal-estar difuso, até os fatos estão enfraquecidos (veja a “pós-verdade”), a autoridade dos especialistas é questionada, proliferam as teorias da conspiração. Eis o que ele escreve sobre a situação das sociedades: “exasperadas, ansiosas e irritáveis” (INNERARITY, 2021, p. 12). Qualquer semelhança com o fluxo de dopamina é mera profecia.
Innerarity relata que não temos novos conceitos para entender o que acontece. Parece-me que estamos diante da necessidade de uma explicação transteórica. Uso o prefixo trans no sentido de travessia, de deslocamento, a fim de termos um saber complexo e integrado. Porque, observe, Innerarity está muito alinhado com Lieberman e Long.
Segundo Innerarity a direita não vê alternativas, é objetiva, aponta limitações e escassez de recursos. A esquerda é crítica dessa ideia, vale-se de utopia e imaginação. A direita é aqui e agora; a esquerda, quer o futuro. Lieberman e Long encontraram exatamente essa associação: os liberais são mais dopaminérgicos e os conservadores bem menos.
Tem mais uma correlação interessante. Innerarity fala sobre a desregulação emocional. Partindo de um “exame da paisagem afetiva” (INNERARITY, 2021, p. 55), aponta que as redes sociais são verdadeiras bolhas emocionais onde os sentimentos têm a primazia sobre os discursos (INNERARITY, 2021, p. 56). A mídia infla nossas expectativas, amplia medos, oferece atenção aos provocadores – é ou não é a descrição de uma mídia altamente dopaminérgica?
Innerarity diz que enfrentamos enormes dificuldades em fazer acordos, que estamos diante de uma incapacidade de compreensão mútua (INNERARITY, 2021, p. 134). Lieberman e Long também dizem que as diferenças cerebrais atrapalham a conversa. O problema é que dois cérebros diferentes não formam um mundo comum – e isso faz uma falta imensa no campo político, segundo Innerarity.
Agora, se estamos formatando padrões neurais afetando o fluxo da dopamina, estaríamos afetando nosso comportamento político?
O ambiente é poderoso. Temos até um termo recente, cunhado por Merrill Singer: sindemia. Indica a prevalência entre interações biológicas e sociais, sendo que 70% vêm do meio ambiente e, os restantes, 30%, vêm da genética. Se o oráculo de Delfos tivesse acesso ao projeto Genoma, nunca mais faria uma previsão a partir dos nossos genes: genética não é destino.
O que fazer? Innerarity diz que “é sempre muito cedo para concluir; essa é a justificativa racional para o otimismo. O ruim é o definitivo, a provisoriedade sempre atua a nosso favor” (INNERARITY, 2021, p. 187).
A polaridade biológica que mencionei acima deve ser fruto exatamente dessa proposta: mesclar pessimistas para lembrar do passado e otimistas para nos mover para o futuro. Pena que, no campo político, eles não se sentam juntos nem para tomar um café – único ponto em que estão de acordo é que irão discordar.
Já a pesquisa sobre comportamento político e as neurociências concordam: a inflexibilidade cognitiva é democrática.
Referências
ASSIS, M. Máximas, pensamentos e ditos agudos. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
HADOT, P. O véu de Ísis: ensaio sobre a história da ideia de natureza. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
INNERARITY, D. Política para perplexos: o fim das certezas. 1ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2021.
LIEBERMAN, D.Z. & LONG, M.E. Dopamina: a molécula do desejo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2023.
Sobre o hipotálamo:
MACHADO, A. Neuroanatomia funcional. 2ª ed. São Paulo: Editora Atheneu, 2006.
MOLINA, P.E. Fisiologia endócrina. 5ª ed. Porto Alegre: AMGH Editora, 2021.
Sobre o sono:
WALKER, M. Por que nós dormimos: a nova ciência do sono e do sonho. 1ª ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018.
[1] É a manutenção do meio interno dentro de limites compatíveis com o funcionamento adequado de diversos órgãos.
[2] Quase todas as funções do hipotálamo encontram-se relacionadas com a homeostase. Ele tem papel regulador sobre o sistema nervoso autônomo e sistema endócrino, além de controlar vários processos motivacionais importantes para a sobrevivência (como comportamentos de fome, sede e sexo).
[3] Hormônio responsável pela sinalização de noite e dia.
Imagem: Prometheus Bound to a Rock (Pierre Thomas Le Clerc, séc. XVIII)