O Vazio Existencial na Contemporaneidade

O racismo está no ar

Sempre fico feliz quando entro em um avião, e não foi diferente naquele dia em que estava viajando de classe executiva, voo internacional. Fiz aquela foto tradicional com os pés sobre a mala, enquanto aguardava a hora do embarque. Quando ouvi, pelo alto-falante, o anúncio para formar as filas, porque o embarque ocorreria em breve, já me adiantei com os documentos e fiquei a postos, à espera da minha vez.

Então, o funcionário pegou meu passaporte, checou minha passagem, olhou para o meu rosto, voltou para a passagem, revisou o passaporte, tudo com um olhar incrédulo de que era mesmo eu que embarcaria na classe executiva. A vermelhidão que subiu pelo seu semblante denunciou o que ele tentou disfarçar: era como se quisesse encontrar alguma coisa, algum detalhe que me impedisse de prosseguir, mas não teve como. Com um sorriso largo carregando um certo sarcasmo de “é isso mesmo, meu caro, esta é minha passagem”, fui liberado e adentrei a aeronave.

Conto essa história para lembrar que o racismo pode se manifestar de várias formas. Nessa ocasião, não houve agressão física, nem uma palavra ofensiva, mas um olhar que apenas pessoas pretas como eu conseguem reconhecer: o olhar de surpresa, incredulidade e desconfiança não mente. 

Miradas dessa qualidade, que nos acertam todos os dias, são microagressões, uma espécie de desprezo racial, como se não fôssemos merecedores de ocupar determinados lugares. O racismo aéreo é uma realidade não só, mas principalmente, em nosso país.

Segundo Moreira (2020, p. 53), essas mensagens não verbais são microinvalidações, porque se deixa de dar relevância ao lugar e posição que se ocupa socialmente, tentando sempre diminuir a pessoa.

A atriz Samara Felippo, mulher branca, mãe de duas filhas negras, passou por constrangimento semelhante. Em uma viagem, conseguiu um upgrade de classe econômica para classe executiva na hora do check-in. Feliz porque poderia descansar com mais conforto no trajeto, foi reconhecida na aeronave e foi atravessada pelo comentário de um dos passageiros: “você é linda, mas agora só colocam pessoas pretas para fazer novela”.

Paralisada, ela conta que seu corpo começou a “queimar” e respondeu denunciando o racismo desvelado no comentário. Foi quando sua filha se aproximou para ficar com a mãe, e a atriz pensou que deveria expor a cena para o avião inteiro, ao mesmo tempo que queria proteger as filhas, que estavam absorvendo tudo aquilo.

Lamentavelmente, esse talvez fosse um dos primeiros momentos de racismo vividos por duas crianças. 

Caso semelhante ocorreu com a modelo Camila de Lucas, que embarcou na classe executiva, vindo de Nova Iorque para o Brasil, e foi questionada algumas vezes pela comissária se estava no assento certo. Curioso é saber que as pessoas que estavam ao lado (todas brancas) não foram perturbadas sequer uma vez.

O impacto nessas horas é muito grande. Muitas vezes gostaríamos que as pessoas se rebelassem, mas em algumas situações faltam forças para gritar – gritar para quem? Para quê? Sermos expulsos do voo? Calamos com a queimação amarga dentro de nós.

Por isso continuo escrevendo sobre esse tema, algo que está nas entranhas da sociedade, em todos os lugares, fruto de uma história escravocrata que persiste.

O negro que incomoda mais é aquele que possui uma condição financeira melhor. Novamente estou falando do lugar que a pessoa ocupa, do lugar que ela frequenta somado à cor da sua pele. Todos nós compramos nossas passagens, por que será que incomodamos tanto?

Os negros vistos como bem-sucedidos incomodam os racistas, não são muito bem aceitos. De alguma forma, sempre tentam nos diminuir, fazer com que pareçamos menores, inferiores, supostamente impedidos de transitar no “andar de cima”. E quando podemos, somos quase colocados como personagens de confirmação de um discurso inclusivo: “tá vendo como não somos tão racistas?”. Mas são, inclusive nessa disputa de narrativa da diversidade racial. São, porque não deixam seu lugar de privilégio para uma pessoa preta ocupar. Na aviação brasileira, por exemplo, não existem mulheres negras piloto; e apenas 2% são pilotos negros. Entre os comissários, o percentual sobre para apenas 5%. Onde estão a diversidade e a inclusão?

Existe um pacto da branquitude, como explica Cida Bento (2022), diretora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, e este processo sempre ocorre de forma narcísica, como uma maneira de autopreservação. O negro, que é visto como diferente, não pertence. É como se estivesse ameaçando o statu quo preestabalecido. Há um desconforto, como se as pessoas brancas fossem perder uma superioridade imaginária. Além disso, há um estereótipo de pessoas que viajam de classe executiva. Circular nesses meios é um desafio para as pessoas negras.

A ausência de negros na classe executiva é uma realidade socioeconômica, visto que estamos entre a população que mais sofre com situação de desemprego, subemprego e informalidade, circunstância decorrente de nosso passado escravocrata.  

Negros ricos ainda são vistos como algo fora do padrão. Não à toa, surpreendem-se quando alguém se destaca pela inteligência, pela fala articulada ou por ter “etiqueta”. Furamos a bolha das regras coloniais de convivência.

O mais estranho é que todo mundo reconhece, mas ninguém se coloca como racista.

Faço a minha caminhada como Fanon (2020), pois acredito que “não tenho o direito de me deixar enredar pelas determinações do passado”. Tenho muito orgulho da luta de meus antepassados que chegaram em navios negreiros.

Sigo o ativismo por escrito, em meus artigos, e também em aulas e palestras, na intenção de gerar reflexão sobre essa pauta para um maior número de pessoas; para dar a ver os absurdos que ainda hoje acontecem e para que possamos discutir livremente com outras pessoas, para criar uma consciência crítica cada vez mais afiada para encontrar soluções para esses problemas. 

Que possamos voar além das fronteiras e classes que nos foram equivocadamente designadas. 

Referências bibliográficas

Bento, Cida. O pacto da Branquitude. Companhia das Letras, 2022

Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora.2020. 

Moreira, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo. Editora Jandaira, 2020.

https://mundonegro.inf.br/carreira-negocios/pretos-que-voam-pretende-trazer-equidade-racial-para-aviacao-civil-brasileira/

Imagem: Pretos que voam/Coletivo Quilombo Aéreo

Sobre o autor

Francisco Carlos Gomes

Psicólogo Clínico e Logoterapeuta. Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Fundador e diretor clínico do Núcleo de Logoterapia AgirTrês. Coordenador do grupo de pesquisa "O vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ