Os últimos anos foram marcados pela crescente presença do tema fake news no debate público. O interesse nesse fenômeno tornou-se especialmente notório a partir do final de 2016, quando o Dicionário de Oxford elegeu ‘pós-verdade’ como a palavra do ano.
Conforme o próprio dicionário britânico descreveu, o verbete significa “relativo a ou que denota circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influenciadores na formação da opinião pública do que apelos à emoção ou à crença pessoal”.
Exatamente um ano depois, em novembro de 2017, a editora Collins escolheu o termo ‘fake news’ como palavra do ano em seu dicionário. O sentido aqui é de “informações falsas que são disseminadas em forma de notícias, muitas vezes de maneira sensacionalista”.
Naquele ano, segundo a equipe da Collins, o uso da expressão aumentou 365% — crescimento impulsionado pela verborragia de Donald J. Trump durante a campanha presidencial nos Estados Unidos, em 2016 e no exercício de seu primeiro ano de mandato.
Não é que a mentira seja novidade em política — nos Estados Unidos ou em qualquer lugar do mundo. Pelo contrário. Campanha negativa sempre fez o maior sucesso entre candidatos e eleitores. Inclusive em terras tupiniquins.
Alguns anos antes dessas sistematizações conceituais, nas corridas eleitorais à presidência da República do Brasil de 2010 e 2014, a vitoriosa campanha de Dilma Rousseff usou meticulosamente táticas de desinformação e notícias falsas.
A ação mais famosa foi o vídeo contra a candidata Marina Silva, com a afirmação de que ela tiraria comida da mesa dos brasileiros. “Fake news não começaram com Trump, mas com Dilma em 2014”, declarou Marina anos depois, em 2018.
Naquele mesmo ano, no último dia como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Luiz Fux reconheceu que a propaganda de Dilma foi um “exemplo claro” de fake news. Não à toa, ‘estelionato eleitoral’ foi uma expressão bastante comum à época para se referir à campanha da presidente reeleita.
Era apenas o princípio das dores. Após a eleição de Trump, outros políticos ao redor do mundo aderiram à mesma cartilha. Em 2018, seu discípulo brasileiro, o candidato a presidente Jair Bolsonaro, importou quase integralmente o discurso trumpista. Foi assim durante a campanha e também ao longo dos quatro anos de seu governo — com direito a um ataque à Praça dos Três Poderes semelhante à invasão do Capitólio. Menos letal, mas igualmente vergonhosa.
Toda essa experiência ficou ainda mais inflamada pela evidente tensão entre Poder Executivo e Poder Judiciário durante a gestão Bolsonaro — além da inesperada e aterrorizante pandemia mundial de Covid-19. É relevante considerar que a Organização Mundial da Saúde (OMS), entidade que declarou o surto da pandemia na saúde pública, também foi a instituição que constatou a existência de uma problemática infodemia como resposta.
A imprevisível sequência desses eventos ajuda a explicar não somente o caminho até aqui, mas a razão pela qual a temática das fake news entrou de vez na ordem do dia da política brasileira. Talvez o marcador mais simbólico a esse respeito seja o alinhamento dos planetas na República do Brasil: Executivo, Legislativo e Judiciário discursivamente unidos para atacar o fenômeno que, no limite, representa uma ameaça ao regime democrático.
Cenário novo, conceitos novos — e controversos. Acrescentamos ao nosso vocabulário expressões perigosas como “desordem informacional” e “arco de experimentação regulatória”, cunhadas no seio da Suprema Corte brasileira pelos ministros Ricardo Lewandowski e Edson Fachin, respectivamente, durante a campanha eleitoral de 2022.
Desde então, os apetites cresceram. O atual governo Lula já disparou pelo menos três polêmicos tiros em nome de um suposto combate à desinformação: a Procuradoria de Defesa da Democracia (AGU), o Gabinete de Enfrentamento à Desinformação (Secom) e o “Pacote da Democracia” (Ministério da Justiça e Segurança Pública).
No Judiciário, o ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, enviou ao Congresso Nacional um projeto de regulamentação das mídias sociais. A proposta, aliás, havia sido objeto de conversa entre o magistrado e Lula em novembro de 2022, dias após a vitória do petista.
Já no Legislativo parece haver certa satisfação com o inovador — mas parcialmente obsoleto — Marco Civil da Internet, sancionado em 2014. Os parlamentares ainda estão se debatendo com os mais de dez projetos de lei, na Câmara e no Senado, para combater a disseminação de notícias falsas. Isso inclui o polêmico PL 2630/20, o Projeto de Lei das Fake News, que está parado na Câmara dos Deputados.
Uma lacuna no movimento orquestrado pelas autoridades brasileiras, em grande medida punitivista, é desconsiderar a camada mais profunda do fenômeno. Se por um lado é preciso examinar a ponta do iceberg da desinformação, é igualmente crucial refletir sobre as razões que levam ao consumo de notícias falsas.
Não há respostas fáceis, é importante notar.
Contudo, se somos atraídos pelo viés de confirmação (ou seja, acreditamos em algo porque queremos que aquilo seja verdadeiro), conforme demonstram vários estudos, em que tanta gente parece acreditar?
Aqui, os agentes públicos precisam, necessariamente, olhar para si mesmos.
O ambiente que torna possível o agudo fenômeno da desinformação é o cenário de crise das representações: do conhecimento (universidade), dos fatos (imprensa) e do poder (instituições políticas).
Isso acontece quando os cidadãos não se sentem representados pelo sistema político nem pelos “mecanismos de defesa da verdade factual” — como escreveu Celso Lafer —, a exemplo da universidade autônoma e do judiciário independente.
É dessa semente que os profissionais da desinformação se aproveitam para implementar terror, violência e um clima de instabilidade permanente. Afinal, crise de representação significa, em outras palavras, crise de confiança nas instituições. E o que é a democracia representativa senão um sistema de confiança?
De acordo com uma pesquisa da AtlasIntel, divulgada no final de janeiro deste ano, o nível de desconfiança dos brasileiros nos poderes está em patamares altíssimos: 57% dos respondentes não confiam no Congresso Nacional, 47% não confiam no STF, 45% não confiam no governo federal, e 39% não confiam nas Forças Armadas.
Esses indicadores deveriam deixar nossas personalidades públicas ruborizadas de vergonha e com insônia à noite.
Não é à toa que vários levantamentos sérios ao redor do mundo mostram que quanto menor a confiança nas instituições democráticas — incluindo a imprensa, além das mencionadas — maior a suscetibilidade da população aderir às fake news.
Ao olhar para a Finlândia, por exemplo, a bola da vez no assunto, isso fica evidente. O país classificou-se em primeiro lugar, no quesito resiliência à desinformação, entre 41 nações europeias. Pela quinta vez. Os dados são do Open Society Institute, divulgados em outubro de 2022.
Ao mesmo tempo, o mais recente relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostra que a Finlândia é o país do grupo em que os cidadãos têm a maior confiança nos entes públicos: 71% das pessoas confiam no governo central (a média entre os países é de 41%). Os altos índices de confiança também são compartilhados com o Parlamento, o serviço público, a polícia e a mídia.
Não será possível nenhum tipo de combate efetivo à desinformação no Brasil sem uma profunda reflexão dos agentes públicos em relação ao seu próprio ofício. O caminho passa, necessariamente, por um processo de reeducação.
Recuperar a confiança da população é uma tarefa que a elite do poder deve assumir ativa e rapidamente. Isso não se obtém na canetada.
Imagem: Post-truth Era (Heikki Leis, 2017 – heikkileis.com/photos-1/post-truth-era)