O Vazio Existencial na Contemporaneidade

Abraham Joshua Heschel e o sentido da esperança em Viktor Frankl

Resumir o pensamento de Heschel é uma tarefa difícil e, mesmo que fosse possível, seria um pecado imperdoável. Portanto, o que faremos aqui não se trata de um resumo, mas de um recorte para lidar com um tema extremamente importante para os nossos dias: sentido e esperança!

A primeira vez que li O Schabat, meu interesse era compreender como um povo de costumes milenares consegue manter vivas suas tradições num mundo que, cada vez mais, despreza o significado da existência, da criação, de si mesmo, do sagrado, do tempo e do espaço em nome do consumo e do controle. Na leitura que fiz para essa exposição, deparei-me com um Raio-X do adoecimento da sociedade moderna.

Heschel abre o livro dizendo:

a civilização técnica é a conquista do espaço pelo homem. É um triunfo frequentemente alcançado pelo sacrifício de um ingrediente essencial da existência, isto é, o tempo. O poder que alcançamos no mundo do espaço termina abruptamente na fronteira do tempo. Mas o tempo é o coração da existência. (p. 11)

Controlar o espaço à custa do desprezo do tempo resulta em coisificação. Ficamos atônitos com a grandeza das coisas no espaço e nossa imaginação é enfeitiçada pela pretensão de que podemos moldar todos os conceitos à nossa imagem.

Em nossa vida cotidiana seguimos, em primeiro lugar, o que nossos sentidos nos soletram: o que os olhos percebem e o que os dedos tocam. Realidade para nós, é coisidade, e consistem de substâncias que ocupam espaço; mesmo Deus é concebido pela maioria de nós como uma coisa. (p. 14)

Heschel traz alguns elementos da cultura judaica que são extremamente importantes para compreender seu texto, e justamente nesses pontos percebemos nitidamente vários ecos na logoterapia. Ele diz que “o judaísmo é uma religião do tempo visando a santificação do tempo” (p. 18), ou seja, o tempo é diversificado, cada hora é única e uma só, dada naquele momento, exclusiva e infinitamente preciosa; mas para o homem preso à espacialidade, o tempo é invariável, iterativo e homogêneo, todas as horas são igualmente desprovidas de qualidade e vazias.

Isso me fez lembrar uma fala de Byung Chul-Han, que parece corroborar essa ideia, está no livro Sociedade do Cansaço. Nele Chul-Han diz que

A perda moderna da fé, que não diz respeito apenas a Deus e ao além, mas à própria realidade, torna a vida humana radicalmente transitória. Jamais foi tão transitória como hoje. Radicalmente transitória não é apenas a vida humana, mas igualmente o mundo como tal. Nada promete duração e subsistência.

Na minha prática clínica, eu recebo questões dessa natureza com muita frequência. O vazio de sentido reflete a total obsolescência, não mais das coisas apenas, mas da própria existência. Existe algo mais disruptivo e capaz de produzir tédio ou desespero do que uma perspectiva de vida assim?

Há uma passagem no Livro Em busca de sentido em que Frankl escreve sobre “perguntar pelo sentido da vida” – o contexto era de um companheiro que lhe conta um sonho “profético” de que a guerra terminaria para ele (seria solto) em 30 de março de 1945… à medida que a data se aproximava e o sonho não se cumpria, ele ficava mais adoecido. No dia 29 de março, caiu em delírio, depois entrou em coma e morreu no dia 30 de março.

Ao notar que as pessoas estavam desistindo do “porquê” de suas vidas, e consequentemente de achar o “como” viver, Frankl relata que muitos companheiros perdiam a esperança e nenhuma palavra era capaz de lhes dar ânimo. Eles sucumbiam dizendo: “não tenho mais nada a esperar da vida”. Sobre esse aspecto, veja o que Frankl diz:

O que se faz necessário aqui é uma viravolta em toda a colocação da pergunta pelo sentido da vida. Precisamos aprender e também ensinar às pessoas em desespero que a rigor nunca e jamais importa o que nós ainda temos a esperar da vida, mas sim exclusivamente o que a vida espera de nós. Não perguntamos mais pelo sentido da vida, mas nos experimentamos a nós mesmos como os indagados, como aqueles aos quais a vida dirige perguntas diariamente e a cada hora – perguntas que precisamos responder, dando a resposta adequada não através de elucubrações ou discursos, mas apenas através da ação, através da conduta correta. Em última análise, viver não significa outra coisa que arcar com a responsabilidade de responder adequadamente às perguntas da vida, pelo cumprimento das tarefas colocadas pela vida a cada indivíduo, pelo cumprimento da exigência do momento.” (pp. 101-102)

Percebam que a questão que Frankl levanta não é a negação do tempo ou do espaço, mas a escravidão ao espaço represado pelo tempo como falsa pretensão de controlar as coisas. Às vezes, nós queremos coisificar até o tempo! Heschel diz que “não é uma coisa que empresta significação a um momento; é o momento que empresta significação às coisas.” (p. 16)

Para exemplificar, vale ressaltar um aspecto muito interessante da língua hebraica, no que diz respeito ao vocábulo “Davar”, que significa: fala, palavra, mensagem, relatório, notícias, conselho, pedido, promessa, decisão, sentença, tema, história, dito, declaração, atividade, ocupação, atos, bons atos, eventos, modo, maneira, razão, causa, mas nunca “coisa”. Para quem conhece um pouco de grego antigo, “Davar” tem seu correspondente grego na palavra LOGOS, que nos remete à Logoterapia.

O que o shabat, (o tempo), tem a ver com a esperança e com a falta de sentido?

Heschel introduz outro conceito muito significativo e absolutamente obsoleto para o mundo coisificado: santidade (codesh). Quando o mundo foi criado, “Deus abençoou o sétimo dia e o santificou”. Segundo a tradição hebraica, a primeira coisa a ser santificada não foi um lugar, uma montanha ou um templo religioso, foi o tempo, o sétimo dia, o shabat. É assim que os rabinos interpretam: a santidade do tempo vem em primeiro lugar, antes da santidade das coisas e até mesmo da santidade do homem.

Hoje em dia é muito comum ouvir dos coachs e terapeutas que é necessário parar, como profilaxia para os problemas de estresse, ansiedade, burnout e outros, mas eles concentram no espaço: ensinam as pessoas a descansar ou andar nas esteiras das academias com celular na mão… Heschel reforça uma premissa poderosa ao longo de todo o livro:

o significado do shabat é, antes, o de celebrarmos o tempo e não o espaço. Seis dias da semana vivemos sob a tirania das coisas do espaço, no shabat tentamos nos tornar harmônicos com a santidade do tempo. (p. 22)

Como encontrar esperança no mundo se não conseguimos partilhar do que é eterno no tempo; se ficamos presos aos resultados da criação e nos esquecemos de olhar para os mistérios da criação?

O shabat é um dia dedicado ao bem da vida. É um dia de descanso, mas não se trata só de recarregar as energias ou melhorar a eficiência de trabalho, porque o homem não é um animal de carga. “O labor é um ofício, mas o repouso perfeito é uma arte. É o resultado de um acordo entre o corpo, a mente e a imaginação.” (p. 27).

A santidade do shabat não está apenas no descanso semanal do corpo. Santidade é saber que o descanso não deprecia o labor, pelo contrário, ele o dignifica. Como? Separar um dia da semana e destiná-lo à liberdade é como disciplinar a liberdade da vontade; conceito antropológico que fundamenta a logoterapia e que foi sumarizado da seguinte maneira pelo próprio Frankl:

liberdade de um ser finito como o homem é uma liberdade limitada. O homem não está livre de condições (contingências), sejam elas de natureza biológica, psicológica ou sociológica; mas ele é livre para se posicionar em relação a essas condições, determinando sua atitude em relação a elas.” (A falta de sentido, pp. 100-101)

O shabat como expressão da liberdade é um dia em que não se usam os instrumentos que têm sido transformados em armas de destruição, um dia para estar consigo mesmo, separado do vulgar, de independência de obrigações externas, um dia em que se afasta dos ídolos da civilização moderna, um dia em que não se usa dinheiro, um dia de trégua na luta econômica contra nossos semelhantes e contra as forças da natureza. Heschel afirma: “existe alguma instituição que oferece segurança maior para o progresso do homem do que o shabat?” (p. 45)

Santidade do tempo está intimamente relacionada à liberdade, porque ela pavimenta o caminho para a esperança. No livro “A busca de Deus e o questionamento sobre o sentido”; uma conversa de Frankl com o rabino Pichas Lápide; eles concordam que a tríade do sofrimento, culpa e morte precisa ser substituída pela tríade do amor, esperança e do sentido da vida (p. 168). E Lápide, em outro trecho diz: “o sentido clama por ação e é na verdade irmão gêmeo da esperança. (p. 141)

Ainda sobre liberdade da vontade, Heschel diz o seguinte:

nada é mais difícil de suprir do que a vontade de ser um escravo da própria mesquinhez. Elegantemente, incessantemente, silenciosamente, o homem deve lutar por sua liberdade íntima. A liberdade íntima depende da criatura estar isenta da dominação das coisas, assim como da dominação das pessoas. Há muitos que adquiriram um alto grau de liberdade política e social, mas pouquíssimos não estão escravizados às coisas. Este é o nosso constante problema – como viver como pessoa e permanecer livre, como permanecer com as coisas e permanecer independente.” (pp. 127-128)

No judaísmo, a esperança não é um pensamento ou mera expectativa sobre o futuro, mas é desfrutar da dádiva do tempo sem se prender aos grilhões do espaço. Por isso eles promovem a vida como uma peregrinação ao sétimo dia. Eles deslocam a cobiça das coisas no espaço pela cobiça das coisas no tempo, ensinando cobiçar o sétimo dia, todos os dias da semana. Heschel coloca da seguinte forma:

É preciso estar intimidado pela maravilha do tempo para estar pronto a perceber a presença da eternidade em um único momento. É preciso que se viva e atue como se o destino de tudo do tempo dependesse de um único momento. (p. 109)

Existe um trecho na Bíblia cristã, Romanos (8:24-25), que sempre me pareceu de difícil compreensão. Diz assim: “Ora, a esperança que se vê não é esperança; porque o que alguém vê, como o esperará? Mas, se esperamos o que não vemos, com paciência o esperamos.” Esse texto parece corroborar a ideia de que a esperança é irmã gêmea do sentido da vida, porque esperança é para o que se vive agora, sem prisões ao passado, pois o que se esperava ontem não perde intensidade hoje porque não se realizou; e sem alucinações sobre o futuro, pois amanhã posso continuar sem ver o que almejava, mas persisto em esperar.

Eu concluo parafraseando Heschel (p. 71): a resposta para a modernidade é não fugir do reino do espaço, mas ser responsável pelas coisas do espaço e manter os olhos, numa postura esperançosa, realista e autotranscendente de paixão pela eternidade.

Referencias

BIBLIA SAGRADA ALMEIDA SÉCULO 21: Antigo e Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2013.

FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. 25 ed. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 2008.

______. A falta de sentido: um desafio para a psicoterapia e a filosofia. Campinas: Auster, 2021.

FRANKL, Viktor E. LAPIDE, Pinchas. A Busca de Deus e questionamentos sobre o sentido. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

HESCHEL, Abraham J. O Schabat: seu significado para o homem moderno. São Paulo: Perspectiva. 2004.

Imagem: Sundial Mold (1750) Metropolitan Museum of Art

Sobre o autor

Aender Borba

Psicólogo e teólogo, especialista em Gestão, Elaboração e Desenvolvimento de Projetos Sociais em Áreas Urbanas e em Experiência Elementar em Psicologia pela UFMG. Mestrando em Ciências da Religião pela PUC-MG, pesquisador do LABÔ (PUC-SP) sobre Viktor Frankl e sentido da vida, e no grupo de pesquisa sobre Religião, Ética e Epistemologia, na PUC-MG; é membro associado da ABC2 (Associação brasileira de Cristãos na Ciência). Tem experiência em psicologia social e capelania educacional e como psicólogo clínico. Pesquisador do grupo de pesquisa "O vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido", do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.