
Em uma manhã comum, despertamos de nosso sono pelo toque do alarme, que depressa nos alerta para um novo dia. Em seguida, tomamos um copo de água ou uma xícara de café, e, ao nos depararmos com nossa agenda, avistamos uma programação cheia: reuniões, idas e vindas, trabalho e estudos. Após um longo dia, retornamos para casa, nos alimentamos e, já cansados, repousamos para o amanhã seguinte. Em meio à estabilidade da rotina, podemos ser encontrados, repentinamente, pelo inesperado. Receber a notícia que o inédito aconteceu; que algo incalculável e imprevisível se tornou realidade; que fomos injustiçados ou traídos; são todos exemplos de acontecimentos que nos desnorteiam, nos contrariam e nos levam aos limites de nosso intelecto. Essa experiência, nomeada de “absurdo”, é inseparável da vida humana, pois, independentemente do que façamos para evitá-la, por certo ela acontecerá. O problema, contudo, são os efeitos que a experiência absurda pode gerar em nós: indiferença, ensimesmamento e vazio existencial. Baseado nisso, portanto, podemos nos indagar: Mesmo diante do absurdo, a vida pode ter algum sentido? Como podemos responder ao absurdo e viver uma vida significativa? Essas e outras questões serão discutidas neste texto, a partir de dois autores: Albert Camus e Viktor Frankl. Enquanto Camus abordou o absurdo como uma temática central de sua obra, Frank definiu o sentido como principal motor dos seres humanos.
Albert Camus foi um brilhante escritor, romancista e intelectual do século XX, além de ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 1956. Ele nasceu em 7 de novembro de 1913 na Argélia, durante a Ocupação Francesa. Desde pequeno, sua vida foi privada de ilusões[1]. Um ano após seu nascimento, seu pai morreu em um campo de batalha, durante a Primeira Guerra Mundial. Em seguida, ele e sua mãe precisaram se mudar para Argel, onde enfrentaram frontalmente a pobreza e a miséria. Mais tarde, mesmo com dificuldades, Camus conseguiu obter seu doutorado para lecionar; contudo, sua tuberculose se agravou, o que o impediu de realizar seu sonho de se tornar professor, ao mesmo tempo que quase o deixou à beira da morte. Em 1939, ele mudou-se para França e, por causa da invasão alemã em 1940, não pôde retornar para a Argélia, onde sua esposa, filhos e amigos estavam. Exilado de sua terra natal e sendo visceralmente conhecedor da escassez, da morbidez e da guerra, Camus foi capaz de discernir o espírito de sua épocae nomear o mal-estar que assolava a sua geração. Como resultado, em 1942, ele publicou dois livros: O estrangeiro e O mito de Sísifo. Enquanto o primeiro se tratava de um romance, o segundo lançava as bases para sua filosofia do absurdo. Rapidamente, ambos se tornaram best sellers e recursos para refletir sobre a experiência absurda que a todos atinge.
De acordo com Camus, a experiência do absurdo surge da comparação entre aquilo que esperávamos de uma situação e a dura maneira como essa situação de fato aconteceu. Essa quebra de expectativas dá à luz o absurdo. Uma de suas frases resume tal fenômeno: Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é propriamente o sentimento do absurdo[2]. Imagine estar vivendo um dia perfeito e, num piscar de olhos, ver a harmonia do presente sendo desfeita por conta de um infortúnio. Em ocasiões como essa, o sentimento absurdo que foi gerado é capaz de suscitar em nós dúvidas, contradições e estranhamento em relação ao mundo. Quando o mundo, por sua vez, torna-se um lugar estranho, sem uma lógica ou ordenamento aparente, onde tudo é questionado e em nada há uma resposta, estamos face a face com os perigos do absurdo.
A experiência do absurdo, como vimos, possui o potencial de tornar o mundo um local estranho, aparentemente sem ordem e sentido. Em um mundo assim, como Camus afirma, sentimo-nos como estrangeiros, privados de um lugar para chamar de nosso. Nessas condições, nas quais as expectativas que tínhamos do mundo foram canceladas, sentimo-nos sós. Se o mundo é um lugar estranho, agora, restou apenas nosso eu, o único local potencialmente seguro ao qual podemos nos apegar. O ensimesmamento, nesse sentido, torna-se uma alternativa viável diante de um mundo absurdo. A indiferença que surge disso nos anestesia para o nosso próximo, que é coisificado, e para o futuro, que é visto com desesperança. “O homem absurdo“, como afirma Camus, vislumbra assim um universo ardente e gélido, transparente e limitado, no qual nada é possível, mas tudo está dado, depois do qual só há o desmoronamento e o nada[3].
Por enquanto, vimos de que se trata o absurdo e o como ele pode nos desorientar diante do mundo, suscitando estranheza e a terrível indiferença. Frente a isso, retomemos a questão: Mesmo diante do absurdo, a vida pode ter algum sentido? Como resposta a essa questão, encontramos na vida de Viktor Frankl um homem que não apenas enfrentou uma das tragédias mais absurdas da humanidade, mas também desenvolveu uma solução transformadora frente a isso. Em 1942, enquanto Camus compartilhava seus ensaios sobre o absurdo em cafés parisienses, Viktor Emil Frankl, fundador da Logoterapia e Análise Existencial, era deportado para um campo de concentração nazista. No livro Em busca de sentido, Frankl narra sua experiência no campo de concentração em três fases: sua chegada no campo de concentração; a fase de vivência no campo; e, finalmente, a fase de libertação.
Na primeira fase, Frankl e outras 1500 pessoas eram transportadas de trem para um destino desconhecido. De modo geral, pairava a expectativa de que eles se dirigissem a uma fábrica de armamentos, onde seriam obrigados a trabalhar forçadamente. Contudo, ao avistarem uma placa que estampava Auschwitz, o sentimento de absurdo de imediato tomou conta do vagão. A visão de cercas de arame farpado, torres de vigilância e pessoas subnutridas, vestindo roupas rasgadas, denunciava a realidade nua e crua com a qual cada um deles, agora, teria que lidar. Frankl relata que, mesmo assim, ele e seus companheiros nutriam expectativas de que tudo isso poderia ser uma ilusão e que, no fim das contas, tudo acabaria bem. Os dias seguintes evidenciaram, sem sensibilidade e compaixão alguma, que não se tratava de uma fantasia. Nudez, frio, fome, humilhação, horror e incerteza privaram Frankl e seus companheiros de qualquer ilusão, e marcaram sua recepção em Auschwitz.
A segunda fase descrita por Frankl trata da vida nos campos de concentração. Sem delongas, a crueldade cotidiana obrigava os prisioneiros a se revestirem com uma indiferença e insensibilidade, com a finalidade de se autoprotegerem psicologicamente, em qualquer medida possível, do horror da realidade absurda. A desvalorização da vida; a inexpressividade emocional; a pessoa como nada-mais-que um número, desprovida de seu nome, história e quaisquer recursos básicos; são todos acontecimentos de uma fatalidade sem precedentes. A fim de descrever seu sofrimento em meio ao campo de concentração, Frankl afirmou que: a dor psicológica, a revolta pela injustiça ante a falta de qualquer razão é o que mais dói numa hora dessas[4]; isto é, além de encarar a dor física, havia um sofrimento articulado no absurdo latente.
Depois de ter vivenciado a experiência do Holocausto por cerca de três anos, enfim, Frankl foi libertado. Embora o confinamento no Holocausto tivesse terminado, as consequências disso, a curto e a longo prazo, permaneceriam como cicatrizes no corpo e na alma de cada sobrevivente. A sensação daqueles que avançavam em direção à liberdade, logo após terem sobrevivido, era de imenso estranhamento para com o mundo. Desaprendemos o sentimento de alegria[5], respondeu Frankl a um companheiro momentos após a libertação. Contudo, a pior experiência, como Frankl por si mesmo constatou, foi descobrir que os entes queridos com quem tanto sonhou reencontrar já não estavam mais vivos. Mais tarde, com profundo pesar, ele escreveu: Ai daquele que experimenta na realidade aquele momento que sonhou mil vezes, e o momento vem diferente, completamente diferente do que fora imaginado[6]. Sem tréguas, o absurdo da existência novamente faz sua aparição, ao contrastar o mundo desejado com que sonhamos e a realidade sem disfarces que se exibe.
Após ter atravessado a terrível experiência dos campos de concentração, somada ao absurdo que, como um veneno, poderia aniquilar qualquer esperança, Frankl foi capaz de desenvolver uma resposta à pergunta anterior: Sim, mesmo diante do absurdo, a vida certamente tem algum sentido. Contudo, como Frankl chegou a essa conclusão? Em sua perspectiva, o sentido na vida não é uma pergunta que fazemos à vida. A questão a vida possui algum sentido? embora possível, não é a pergunta que nos leva ao real sentido na vida. Pelo contrário, o mais importante consiste em perceber o que a vida espera de nós. Estamos a todo momento sendo indagados sobre qual decisão tomar e como agir, e podemos responder à vida com base em atitudes que podemos exercer. Trata-se de assumirmos a responsabilidade de responder às tarefas que a vida nos exige a cada instante de forma responsável[7]. Em termos práticos, cuidar de outros prisioneiros, e, após liberto, encontrar sua esposa e publicar a pesquisa que levara consigo para o campo de concentração, foram decisões responsáveis que Frankl tomou diante da vida. É essencial destacar, portanto, que o sentido na vida existe independentemente das condições em que estamos inseridos, e que mesmo diante do sofrimento inevitável – como também do absurdo – a vida permanece carregada de possibilidades de sentido, pois somos capazes de tomar uma decisão e agir com responsabilidade.
Somos colocados ao longo da vida diante de situações às quais precisamos responder com responsabilidade, a fim de encontrar o sentido de cada situação. Por outro lado, isso não significa que o absurdo deixará de existir, pois tal experiência é inseparável da existência humana. Tendo isso em vista: Como podemos responder ao absurdo e viver uma vida significativa? Viktor Frankl responde ao absurdo reiterando que, se em toda ocasião, incluindo o sofrimento inevitável, há um sentido esperando ser encontrado, também diante do absurdo certamente haverá. Nós podemos romper com as contradições suscitadas pelo absurdo por meio da autotranscendência da existência humana [8]. Esse termo, criado por Frankl, refere-se ao fato de o sentido potencial da vida ser descoberto no mundo – e não dentro de nós mesmos. O sentido, dessa maneira, dependerá de um movimento para fora, em direção a algo ou alguém para além de nós mesmos, como um trabalho, uma obra, amigos ou família. Somos convocados, então, para nos movermos na direção contrária ao ensimesmamento e a indiferença, tipicamente geradas pelo absurdo. Frankl, no campo de concentração, deparou-se com o absurdo diariamente. Todavia, mesmo em meio às crueldades e contradições que o circundavam, ele escolheu fazer aquilo que era correto: ser o melhor companheiro possível para os outros prisioneiros. Nisso, ele é capaz de provar que, independentemente das circunstâncias, somos capazes de responder à vida de forma responsável e significativa
Finalmente, tanto Albert Camus como Viktor Frankl[9] refletiram sobre a condição humana, nosso potencial de criar ou encontrar sentido, além das barreiras que se impõem nessa trajetória. A resposta de Frankl nos ensina que a experiência do absurdo, embora caótica, não determina a vida que vivemos: somos capazes de responder a todo momento ao agirmos no mundo, assumindo a responsabilidade pela nossa existência.
Referências Bibliográficas
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. 15. ed. [S. l.]: Best Seller, 1942.
CAMUS, Albert. O estrangeiro. 15. ed. [S. l.]: Best Seller, 1942.
FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. 1. ed. [S. l.]: Editora Vozes, 1946.
DOSSE, François. A saga dos intelectuais franceses: À prova da história (1944-1989): Volume I. 1. ed. [S. l.]: Estação Liberdade, 2021.
BAKEWELL, Sarah. No café existencialista. 1. ed. [S. l.]: Objetiva, 2017.
Playlist do Spotify que me acompanhou ao longo das reflexões e produção deste texto:
https://open.spotify.com/playlist/00ouI0wygUzMGVFcbLJiPO?si=99f523c36fdf49b4
[1] A vida de Albert Camus, como veremos a seguir, está em profundo acordo com sua obra. Suas experiências absurdas, posicionadas ao lado de suas obras, evidenciam uma proximidade inerente entre texto e autor. Como ele afirmou: “[…] num universo repentinamente privado de ilusões e de luzes, pelo contrário, o homem se sente um estrangeiro” (CAMUS, 1942, p.21).
[2] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. 15. ed. [S. l.]: Best Seller, 1942, p.21.
[3] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. 15. ed. [S. l.]: Best Seller, 1942, p.64-65.
[4] FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. 1. ed. [S. l.]: Editora Vozes, 1946, p.39.
[5] FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. 1. ed. [S. l.]: Editora Vozes, 1946, p.114.
[6] FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. 1. ed. [S. l.]: Editora Vozes, 1946, p.118.
[7] FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. 1. ed. [S. l.]: Editora Vozes, 1946, p.101-102.
[8] FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. 1. ed. [S. l.]: Editora Vozes, 1946, p.135.
[9] É relevante pontuar que Albert Camus e Viktor Frankl concordam que a pergunta pelo sentido na vida é a mais premente das perguntas, apesar de suas respostas a tal questão serem respondidas de forma bem distinta. Paralelamente, ambos consentem que o ser humano possui um anseio por unidade e clareza (Camus) ou pelo sentido na vida (Frank). Em contrapartida, quando a razão humana chega aos seus limites, esbarramo-nos com o absurdo, cuja resposta mais plausível, na visão de Camus, é a revolta. Por outro lado, Frankl sustenta que a vida possui um sentido incondicional, ou seja, não se trata de compreender toda a realidade, mas de ser capaz de suportar suas incoerências em meio às contradições. Ao afirmar que “o logos é mais profundo que a lógica”, Frankl não apenas responde ao absurdo de forma criativa, como também nos convoca à ação mediante o sofrimento incompreendido. Vale destacar também que Camus não é um pessimista quanto ao sentido na vida. Mas, diferentemente de Frankl, sua perspectiva volta-se para a construção do sentido, e não do encontro do sentido no mundo – como algo anterior ao indivíduo.
Imagem: montagem com fotos de Viktor Frankl (Franz Vesely/Wikimedia Commons) e Albert Camus (Ervin Marton/Wikimedia Commons)
