
Particularmente nunca pensei que a realidade pudesse ser captada por uma única teoria ou ser vista pela ótica de um único pensador. Entretanto, o pensamento do antropólogo francês René Girard tem sido objeto dos meus estudos, das minhas reflexões e da minha admiração. Neste ensaio breve, apresento alguns elementos que demonstram a importância de ainda olharmos com atenção e carinho para suas análises.
Começo por apresentar em linhas gerais o cerne de seu pensamento: a teoria mimética, a qual é um instrumento versátil e até certo ponto “simples” para compreender o ser humano, entendido como um genuíno imitador. Para Girard, tudo começa no desejo, que, em sua perspectiva, é mimético por definição. Basicamente, as relações humanas poderiam ser definidas em “o meu desejo é a imitação do seu desejo”, e assim, a partir do contato com o outro, passamos a imitar desejos e ações, fenômeno que se reflete na cultura, na formação dos idiomas e, principalmente, na violência, como veremos mais adiante.
Em tempos de cultura do consumo, influencers e de uma total imersão no mundo do marketing e das redes sociais, compreender o caráter mimético do ser humano nos auxilia a entender o funcionamento desses mecanismos. Afinal de contas, o influencer é alguém que existe para influenciar comportamentos de consumo em algum grau. O valor do iPhone não está no iPhone, mas sim, no desejo despertado em você porque alguém o possui, e assim sucessivamente.
Para encerrar a parte mais light dessa reflexão, ainda no campo do consumo, anualmente temos a famosa “Black Friday” e certamente veremos na TV multidões em frente a porta das lojas, todos os anos. Geralmente acontece alguma confusão, e nem todo mundo consegue o que quer, enfim. O que há de girardiano nesse acontecimento? É provável que, em alguma dessas lojas haja um objeto desejado por duas ou mais pessoas, e nem sempre haverá quantidade suficiente para todos. Temos duas possibilidades aqui: 1) uma das pessoas cede; 2) disputa, competição e conflito. Saliento, a partir da teoria girardiana, que a segunda possibilidade é a mais provável.
No pensamento girardiano, quando o conflito se instala, a tendência é que mais pessoas sejam atraídas para ele, e comecem a também desejar o mesmo objeto em disputa. Isto ocorre por imitação. Há alguns anos uma empresa de perfumaria ficou famosa com um esquema similar, em que vendedores deveriam atrair mais pessoas e essas, por sua vez, mais pessoas, através do chamado marketing multinível, eventualmente entendido como “pirâmide”, ocasionando questões legais para as pessoas envolvidas. A violência segue o mesmo princípio, em progressão geométrica, até atingir toda a comunidade, ponto em que se instala a chamada guerra de todos contra todos. No limite, a própria sociedade é consumida pela violência (avisei que o consumo era a parte light).
Por um instante, pensemos nas brigas generalizadas entre torcedores esportivos, especialmente futebol (elas surgem por diversos motivos, mas seguem uma lógica idêntica ao modelo girardiano): começam com um pequeno ponto focal, e se espalham com rapidez, consumindo indivíduos que, provavelmente, se isolados não teriam tais atitudes. É possível sair das torcidas para as guerras? Sim. Lembrando, que cada situação tem inúmeras variáveis envolvidas, mas a lógica é bastante semelhante à observada por René Girard.
Pense na guerra da Rússia com a Ucrânia, e considere que existem alguns “objetos” em disputa, sendo desejados por ambos (territórios, interesses políticos e bélicos, soberania etc.). Voltando no tempo, encontramos outros exemplos, como a Guerra das Malvinas, a Guerra Franco-Prussiana ou até mesmo para as disputas territoriais e identitárias ainda existentes no território espanhol. Se quiser voltar para algo mais próximo do nosso dia a dia, pense nas sucessivas represálias entre traficantes e policiais que ocorreram no Guarujá em 2023.
Ao analisar estes exemplos mais detidamente, você encontrará o “triângulo do desejo”, e uma escala progressiva de ações, que se refletem no conflito armado. O interessante é que no limite, ocorre um espelhamento das ações. De modo que a agressão de um, é rapidamente refletida pelo outro, o que também é conhecido como vingança. Sobre ela e suas consequências destaco o trecho a seguir de A Violência e o Sagrado:
“A vingança constitui, portanto, um processo infinito, interminável. Quando a violência surge em um ponto qualquer da comunidade, tende a se alastrar e ganhar a totalidade do corpo social, ameaçando desencadear uma verdadeira reação em cadeia, com consequências rapidamente fatais em uma sociedade de dimensões reduzidas. A multiplicação das represálias coloca em jogo a própria existência da sociedade. Por esse motivo, onde quer que se encontre, a vingança é estritamente proibida” (Girard, 2008, p.24).
Este trecho nos coloca diante de um dos problemas mais desafiadores da existência coletiva: como controlar a violência na sociedade? A primeira solução identificada, mas não recomendada por Girard, é o sacrifício, como demonstrado por ele na obra acima mencionada. Nela, ele se debruça sobre as práticas sacrificiais, sua expressão no sagrado e sua relação com o controle da violência. Em linhas gerais, ao sacrificar uma vítima, direciona-se toda a violência contida naquela comunidade para o sacrificado, que recebe o nome de “bode expiatório”. Temos um verdadeiro dreno de violência, que ao ser imolado, leva consigo a ameaça existencial da sociedade, proporcionando, temporariamente, paz e harmonia nas relações sociais. Em tempos de crise, novos sacrifícios são necessários, e assim sucessivamente.
Nesse contexto, deve-se considerar que a vítima contemporânea não é necessariamente um animal, apesar do uso do termo “bode”. Existem sacrifícios humanos, com alguns requisitos que devem ser respeitados para a “limpeza” da comunidade: a) a vítima não pode ser humana, mas deve lembrar um; b) ela deve ser relativamente irrelevante para a comunidade; c) ela não pode ser vingável. Em um primeiro momento, eles podem ser bastante estranhos, mas são altamente reveladores sobre o funcionamento da sociedade.
Em primeiro lugar, é preciso compreender que, nesta lógica, algumas vidas valem mais do que outras.
Em segundo lugar, podemos pensar nos “irrelevantes” como aqueles dos quais se pode abrir mão, aquelas vidas que não importam, que cumprem a função de um apêndice no corpo social; simplesmente estão ali. Qual seria o critério para determinar quem é coração, cérebro, rim, fígado e apêndice?
Em terceiro lugar, o “bode expiatório” deve ser alguém que não é vingável, ou seja, indefensável. Porque se revidarmos sua morte, haverá a continuidade da vingança.
É importante ressaltar, sobre o bode expiatório e seus critérios, que a escolha é aleatória, inconsciente e coletiva. Portanto, deve haver um consenso sobre as vidas. Quando pensarmos em alguém que cumpre esses requisitos, pensaremos necessariamente no “Outro”, indicando que o principal critério diz respeito ao vínculo e pertencimento à comunidade: o que diferencia marginais, idosos, crianças, estrangeiros, criminosos, minorias etc. vai definir quem pode ser escolhido.
Ao analisarmos esses critérios, somos imediatamente compelidos a pensar que as práticas sacrificiais continuam se reproduzindo a todo instante, o que parece correto de acordo com a teoria de Girard. Além disso, o sacrifício ocorre sob diversas roupagens: do sistemático racismo enfrentado por Vinícius Júnior e seus antecessores na Espanha, aos ataques antissemitas crescentes em todo o mundo desde o dia 07 de outubro de 2023, passando por processos como o de impeachment de Dilma Rousseff.
Mas existe um problema relacionado ao sacrifício, em torno da repetição da imolação do mesmo tipo de vítima. Essa repetição leva à desnaturação do mecanismo, ou seja, ele perde a capacidade de canalizar a violência e gera mais violência. Pense agora em quantas mulheres, quantos negros, estrangeiros, judeus, muçulmanos e outros grupos “fora da norma estabelecida” já foram sacrificados concretamente ou no campo simbólico. Reflita sobre o status do mecanismo sacrificial nas sociedades.
Uma das alternativas analisadas por Girard é o sistema judiciário, mas este também apresenta problemas, sendo um deles o fato de precisar de um sistema político forte, eficaz e estável para poder executar essa função adequadamente. Na sua ausência, o mecanismo sacrificial retoma sua função como garantidor da ordem social e isso se manifesta da seguinte forma:
“As perseguições que nos interessam se desenvolvem de preferência em tempos de crise que provocam o enfraquecimento de instituições normais e favorecem a formação de multidões, isto é, de ajuntamentos populares espontâneos, suscetíveis de substituir instituições enfraquecidas ou de exercer uma pressão decisiva sobre elas.” (Girard, 2004, p.21).
Essa crise referida é o que o autor denomina “crise da ordem cultural”, que se daria quando as diferenças entre os indivíduos, contaminados por essa violência generalizada, são apagadas, uniformizando condutas. Eles se tornam iguais nas condutas e no rótulo: são todos rivais. Isso favorece a eleição do bode expiatório, por serem essas multidões que o irão eleger e imolá-lo. Paradoxalmente, é a diferença que garante a ordem cultural e logo desaparece, e é essa mesma diferença que precisa ser combatida e sacrificada. Isto ocorre, pois a diferença combatida não é a mesma que desaparece, de fato.
Segundo Girard, a diferença combatida é a que se encontra fora do sistema vigente na coletividade em questão. Em outras palavras, esta é o “outro”, aquele que é diferente de mim e dos meus, justamente por diferir daquilo que nos faz iguais na sociedade a qual pertencemos. A justificativa para essa perseguição é simples e funciona como um mecanismo de defesa, pois, caso este “outro” seja assimilado, ele deixa de ser o “outro” e passa a ser igual a mim. Um exemplo prático é a acusação de corrupção da identidade nacional e cultural de um país direcionada aos imigrantes e refugiados. Por este ponto de vista, ao permitir que estas pessoas vivam em meu país e, portanto, sejam reconhecidas como cidadãs dessa mesma nação, estaríamos corrompendo aquilo que se convencionou para o “modelo” de cidadão dessa comunidade.
Em um primeiro momento, somos levados a pensar num contexto de imigração, refúgio e outras circunstâncias. Entretanto, essa perseguição ocorre também nos limites do território entre povos que coabitam este lugar. Um exemplo claro é o caso espanhol e suas nacionalidades periféricas. Ao longo das duas ditaduras vivenciadas na Espanha no século XX, instauraram-se práticas de repressão política, cultural e educacional a estas nacionalidades (bascos, catalães, galegos), convencionando-se que estas identidades seriam invalidadas e “oficializando” em detrimento delas, a identidade espanhola, católica, falante da língua castelhana. Nesse cenário, ao permitir a alguém que tenha sua identidade catalã mantida no mesmo espaço, haveria a corrupção da identidade nacional e cultural espanhola.
Por fim, quero apresentar um questionamento que tem tomado conta de meus pensamentos: se, tomados pela violência, perseguimos as diferenças que diferem do convencionado, convencidos do risco da corrupção da nossa própria identidade, seria o mundo globalizado uma “bomba relógio”?
Penso que sim, e talvez isso possa lançar luz sobre o crescente apelo nacionalista em países de diversos continentes, e as ondas de perseguição concreta e/ou simbólica que se seguem. Da mesma forma, pode-se analisar os conflitos que se apresentam e se multiplicam em progressão geométrica, como uma rivalidade mimética, em todos os cantos do globo, como se fôssemos uma única comunidade global ameaçada. Nesse caso, é possível que as fronteiras dos Estados já não sejam suficientes para conter uma possível crise mimética, e a perseguição global a “bodes expiatórios” ocorra em escalas poucas vezes vistas.
Apesar disso, neste momento, não sou capaz de responder assertivamente meu próprio questionamento. Resta recomendar o aprofundamento nas teorias de Girard e a proliferação de trabalhos acerca de sua obra nas diversas áreas do conhecimento. Como demonstrado, não faltam motivos para estudá-lo e chaves analíticas para diversos fenômenos. Fico por aqui com essa citação que, creio eu, resume muita coisa.
“Em todo lugar ouvimos dizer que a ‘diferença’ é perseguida, mas esse discurso não é forçosamente o das vítimas, e sim o discurso sempiterno de culturas que se torna sempre mais abstratamente universal na rejeição do universal e que não pode mais se apresentar a não ser sob a máscara doravante indispensável da luta contra a perseguição” (Girard, 2004, p.35).
Referências bibliográficas
GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008
______________. O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004.
______________. O sacrifício. São Paulo: É Realizações, 2011.
Imagem: “The Football Factory” (divulgação)
