
Basta olhar para o lado (ou para o próprio umbigo) para se certificar que os temas conectados ao judaísmo causam questões e paixões. Sua religião, depois a invenção de sua raça, sua falta de pátria e, posteriormente, sua pátria, não passam despercebidas nunca, hamas (ops! jamais). Onde tem judaísmo, tem paixão, fato. Uma dessas paixões é o antissemitismo que serve tanto para promover autossatisfações.
Na longa história do ódio ao povo judeu é possível fazer diversos recortes. Aqui, proponho dois.
Primeiro: Em 30 de agosto de 1975, no Peru, aconteceu a Conferência de Lima, com ministros de Relações Exteriores de 77 países. Lá estavam representantes do Iêmen, Sri Lanka, Cuba entre outros. Entre tantos desacordos, conseguiram condenar “o sionismo como a maior ameaça contra a paz e a segurança do mundo” (ANTISSEMITISMO, 2000 ANOS DE HISTÓRIA, 2022)! Dessa maneira, o que se promoveu foi uma transformação de Israel, o Estado judeu, num vassalo do Imperialismo. Sendo assim, ficou reconhecido como fascista, racista, colonialista etc.
Essas representações totalmente negativas remontam à União Soviética, atravessam governos revolucionários, e servem, como um desvio, a sociedades que precisam acalmar críticas, protestos e erros internos. A palavra judeu foi sumindo do vocabulário e, no seu lugar, dissimulando-a, veio cosmopolita ou sionista (POLIAKOV, 2000, p.43). Paulatinamente, foi se passando de judeus a sionistas (POLIAKOV, 2000, p.50), que com o passar do tempo, apropriado por não judeus, tortuosamente foi tornado equivalente a “separatistas, colonialistas, racistas, capitalistas” (POLIAKOV, 2000, p.59). E, como não poderia tardar, na URSS, mas também em outros lugares, sionismo1 foi transformado em equivalente a nazismo (POLIAKOV, 2000, p.71).
Aí a coisa escalou. Apenas alguns meses depois da tal conferência, em 10 de dezembro de 1975, uma iniciativa do bloco do leste e de países árabes, na Assembleia Geral das Nações Unidas, que, pasmem, tinha como secretário geral o (ex) nazista Kurt Welldhem, aprovou uma resolução que decretou que o sionismo era uma forma de racismo!
E nosso país não ficou fora desse absurdo:
quando o governo brasileiro, atingido pela crise mundial do petróleo, optou por uma postura radical: votou na Assembleia Geral da ONU a favor da Resolução n. 3379, que qualificava o “Sionismo como forma de racismo e discriminação racial” (TUCCI CARNEIRO, acesso: 22 fev. 2022).
Então, por que se pode afirmar e aprovar na ONU que o sionismo é racismo?
Ora, no Brasil aprendemos que não existe racismo reverso. Como uma minoria pode produzir uma estrutura racista? A resposta deve ter a ver com o clássico e mais rasteiro antissemitismo: o suposto super poder do povo judeu, esta entidade que deve ser combatida a fim de sanar os problemas do mundo. Suposição que tem o cheiro mofado, mas agradável para tantos, dos Protocolos dos Sábios de Sião: “Texto conspirativo e antissemita que denuncia um suposto complô judeu para dominar o mundo. Surgido na Rússia do século XIX, muitos creem ser a primeira publicação do antissemitismo moderno” (GHERMAN, 2022, p.169).
Dentre tantas propagandas estapafúrdias, fake news, escolho uma que apareceu na revista ucraniana Perets, em outubro de 1967. Podemos notar que não há nada nela que não tenha sido reeditado para o nosso presente, nada que não seja tão atual, já que é “fato que, [pelo menos] desde outubro de 2023, o antissemitismo maquiado de antissionismo ganhou status de verdade, sendo disseminado por uma legião de racistas que sustentam discursos acusatórios sem a real dimensão das consequências” (TUCCI CARNEIRO, acesso: 22 fev. 2022).
Preparem-se:
Os banqueiros sionistas alemães abriram generosamente seus cofres a Hitler. […] As câmaras de gás de Treblinka foram reconstruídas com o dinheiro dos sionistas “arianos”… Os sionistas italianos ajudaram Mussolini a se apossar do poder… Agora, mesmo os sionistas mais ortodoxos seriam incapazes de negar que todos os crimes principais contra a humanidade foram perpetrados com a participação dos sionistas (POLIAKOV, 2000, p.77).
É dessa maneira, também, que Israel é visto como o maior vilão do planeta, “a última encarnação do inferno capitalista” (POLIAKOV, 2000, p.76), já que é nesse minúsculo pedaço de terra que os judeus podem, afinal, criar alguma estrutura própria. Nesse aspecto, têm-se a ilusão que ao se combater o Estado judeu, se está lutando, via deslocamento, contra o capitalismo, por exemplo. Porém, esse sistema, no caso, permanece intocado. Melhor é viver desiludido do que chafurdar em ilusões que tendem a descambar para o ódio à minorias.
Enfim, essa sinistra resolução da ONU foi revogada em 1991, mas o estrago já estava feito e, basta olhar para o lado (ou para o próprio umbigo) para constatar que perdura até os dias de hoje. Mesmo com o fim da Guerra Fria, certos países árabes e muçulmanos, bem como Cuba, Coreia do Norte e Vietnã, não alteraram suas posições (TUCCI CARNEIRO, acesso: 22 fev. 2022).
“Por que identifica-se sionismo com racismo? Porque se sabe que racismo é mal. E o que é moralmente necessário quando encaramos o racismo? Dar um fim a isso” (ANTISSEMITISMO, 2000 ANOS DE HISTÓRIA, 2022).
O segundo tópico, ainda sobre as paixões que o judaísmo desperta, versa sobre o caso Dreyfus que também causou comoção e divisão mundial, e lembra, nesse sentido, o que ocorre acerca do conflito palestino-israelense.
Em Paris, durante o ano de 1894, foi identificada uma traição, a passagem de informações aos alemães. Pois bem, quem foi acusado? O judeu. Há que se admirar que naquela época um judeu ocupava uma alta patente no âmbito militar francês. Judeus ocuparem posições de destaque e comando é sempre algo bom e denota avanços para o país que assim procede. Exatamente por se tratar de uma minoria historicamente perseguida, excluída e assassinada, esse tipo de acontecimento aponta para o avanço do país, da instituição etc.
O judeu acusado de traição e preso sem provas foi Alfred Dreyfus (1859-1935). O cálculo de tal conclusão foi bem ordinário: judeu = culpado.
Durante o caso Dreyfus, o antissemtismo conseguiu penetrar todos os poros da sociedade francesa. Não era considerado ilegítimo. O antissemitismo era enunciado nas cartas de baralho, nos brinquedos das crianças, na vida cotidiana. Transbordou para toda a sociedade francesa (ANTISSEMITISMO, 2000 ANOS DE HISTÓRIA, 2022).
O caso Dreyfus tornou-se um acontecimento mundial! Era como se o mundo tivesse se apaixonado pelo destino desse desse capitão judeu. E vejam, como paixão gerou conflito que se dividia entre os antissemitas modernos e os dreyfusistas.
“A ideia sionista germinou no espírito de [Theodor] Herzl [1860-1904] durante sua estadia em Paris quando explodiu o caso Dreyfus” (CHEMOUNI, 1992, p.128). Ou seja, o caso Dreyfus de fato serviu como um divisor e um motor para o movimento de autodeterminação do povo judeu. Somente em maio de 1906 a Corte de Cassação reconheceu a inocência de Dreyfus. Enfim, como concluir este brevíssimo artigo? Não sei. Com tremenda desesperança?
1 O sionismo é o nome que se dá à autodeterminação nacional judaica. Em outras palavras, ao direito do povo judeu a autoemancipar-se nacionalmente (criar um Estado nacional) em seu território. A autodeterminação nacional é um direito de todos os povos, e o sionismo é somente a maneira como se manifesta este direito inalienável do povo judeu. O sionismo surge como uma resposta à questão judaica, ou seja, a contradição imposta, muitas vezes, pela sociedade, por não aceitar que um indivíduo seja, ao mesmo tempo, judeu e cidadão de determinado país […] O sionismo é composto por diversas correntes, com distintos projetos de país (da esquerda à direita, religiosos ou laicos)” (GUIA CONTRA O ANTISSEMITISMO, 2023, p.21-22).
Referências bibliográficas
ANTISSEMITISMO, 2000 ANOS DE HISTÓRIA (2022). Direção: Jonathan Hayoun.
Empresa produtora: ARTE France. Canal Curta!.
CHEMOUNI, J. Freud e o sionismo: terra psicanalítica, terra prometida. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1992.
GHERMAN, M. O não judeu judeu: A tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo. São Paulo: Fósforo, 2022.
GUIA CONTRA O ANTISSEMTISMO (2023). Coleção IBI – Instituto Brasil Israel, São Paulo. Também acessível online:
<https://www.institutobrasilisrael.org/wp-content/uploads/2023/11/Guia_Contra_Antissemitismo_IBI.pdf>
JORNAL DA USP. Tucci Carneiro. M.L. O antissemitismo reciclado: preconceitos seculares alimentam o germe da intolerância. Acesso em 22 fev. 2024. Disponível em
<https://jornal.usp.br/articulistas/maria-luiza-tucci-carneiro/o-antissemitismo-reciclado-preco nceitos-seculares-alimentam-o-germe-da-intolerancia/>
POLIAKOV, L. Do antisionismo ao antissemitismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.
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