Cinema, Filosofia e Religião

Da importância e da inutilidade do cinema: uma leitura filosófica dos filmes

Para que serve o cinema?

Eu poderia afirmar que o cinema serviria para provar que é possível conhecer a realidade das coisas, tal qual proposto por Descartes no século XVII. Transportada a máxima do cogito ergo sum do filósofo francês para os nossos dias, seria possível olhar para a câmera do cineasta como um órgão da realidade (Cabrera,2015)[1] , como uma prova da existência concreta e palpável da verdade, do homem e do mundo. Mas a arte cinemática é brincalhona, e, como apontado por Michelangelo Antonioni no final de sua obra-prima Blow Up (1966), em algum momento precisamos jogar a partida de tênis imaginária junto aos mímicos, nos resignando a aceitar que, por vezes, a vida ultrapassa qualquer entendimento puramente racionalizado do mundo. Já o mestre Alfred Hitchcock vai além com sua Janela Indiscreta (1954), e nos lembra que a intuição e a percepção humanas, contrariando a lógica e os dogmatismos da razão, são traços empíricos de uma atitude filosófica que só é possível quando o páthos é colocado em primeiro lugar. Dito de outra forma, confie em seus instintos, ainda que eles contradigam a razão.

Poderia ressaltar que o cinema evidenciaria que não há nada mais humano do que a violência que nos é inerente. Que o diga Nietzsche, o filósofo cinematográfico por excelência, segundo Julio Cabrera (2015). É impossível não perceber a vontade e potência nietzschiana estampada no rosto de cada um dos cowboys de Sete homens e um destino (1960), ou de Clint Eastwood, na pele de Will Munny em Os Imperdoáveis (1992), e, principalmente, de Mickey e Mallory, em Assassinos por Natureza (1994). O que todos esses personagens tão diferentes têm de semelhante entre si, se não a inevitabilidade de viver até as últimas consequências, ainda que por meio da violência?

Seria possível dizer que o cinema tornaria palpável a inabilidade do homem em controlar a natureza, tanto a externa quanto a interna. Para contrapor Francis Bacon, seus métodos e sua máxima “saber é poder”, Steven Spielberg não poupa ninguém: solta a bicharada – de tubarão à dinossauros – para provar que o conflito dos homens com esses monstros é o reflexo do “conflito dos homens consigo mesmos” (Cabera, p. 109). O recado se torna mais doloroso e contundente com o despretensioso Godzilla Minus One (2023), onde o mitológico monstro radioativo se torna uma gritante metáfora da capacidade destrutiva dos métodos humanos de controle e dominação.

Existe a chance de acreditar que o cinema expressaria o mundo invisível do sobrenatural e do espiritual, considerando que a razão não daria conta do inexplicável. No esteio de São Tomás de Aquino, outra ciência deve ser levada em consideração nesses casos: a fé. Os limites da razão são levados às últimas consequências no clássico de Roman Polanski, O Bebê de Rosemary (1968) e, mais recentemente, com A Bruxa (2015), de Robert Eggers. Segundo Cabrera, se “o cinema é da mesma ordem dos sonhos” (Cabrera, p. 93), então sempre podemos ir além do que é evidente, e ler nos entremeios das cenas a ambiguidade entre aquilo que é mostrado e o que é ocultado. Mesmo sem vê-lo, enxergamos o bebê de Rosemary pelos olhos aterrorizados da mãe que balança o berço envolto em véus pretos. Com A Bruxa, aceitamos a sugestão do demônio que convida a jovem Thomasin a viver uma vida deliciosa, mesmo que esse demônio seja apenas insinuado, nunca revelado diante das câmeras. A imagem sugerida, aquilo que é visto de relance, na penumbra, ou apenas ressaltado pelos sons, garante que a linguagem do cinema também fala quando deixa de dizer.

Seria concebível apontar que o cinema possuiria uma capacidade de representação inigualável sobre o que entendemos por liberdade humana. Se Jean-Paul Sartre estiver correto ao defender que a existência precede a essência, então Thelma e Louise (1991), de Ridley Scott, responde imageticamente a essa teoria. As duas amigas provam para nós que viver a liberdade até as últimas consequências é a única forma de não negar a própria existência. A pergunta que paira no ar ao presenciar o maravilhoso Thunderbird conversível flutuando no céu do Grand Canyon é: esse é um final feliz? O cinema deixa em aberto. Mas é também essa a pergunta que Ingmar Bergman parece propor quando nos convida a participar do infernal casamento de Johan e Marianne, em Cenas de um casamento (1974).  É possível ser livre, amar e ser feliz ao mesmo tempo? E quando acontece o inevitável choque de liberdade entre os amantes, o que resta?  Bergman responde: resta o humano, o demasiado humano.

Poderia concluir que o cinema seria, acima de tudo, uma linguagem demonstrativa, prática, constituída por imagem, movimento e som. Uma linguagem que mostra, mas nem sempre diz.

Será?

O filósofo Ludwig Wittgenstein, em sua primeira fase da filosofia analítica, considerava a linguagem como um espelho do mundo, e, pela lógica, a linguagem seria sempre limitada nessa compreensão de mundo, não conseguindo dar conta de expressá-lo metafisica e afetivamente. Assim, dizia ele, sobre aquilo que não se podia falar, seria melhor calar. Mas, ao contrário da filosofia analítica de Wittgenstein, o cinema comprova dizer para além do que mostra, mesmo sem falar uma palavra. Eis a beleza do cinema mudo. O silêncio fala, diz e mostra muito mais do que aparenta em filmes como A última gargalhada (1924), de Murnau e o contemporâneo O Artista (2012), de Michel Hazanavicius. A palavra é dispensada, no primeiro por questões técnicas, e no segundo, por escolha. Mas ambos conseguem dizer tudo o que pretendem ao mostrar por meio de atuação, enquadramento, ângulo, corte, montagem e edição. Ali estão ditas a angústia da inevitabilidade do envelhecimento, o sofrimento causado pela perda do que se ama e o regozijo com a resolução de problemas (ainda que de forma imaginária, em A Ultima Gargalhada). Tudo isso sem que se ouça o som de uma única palavra. Por isso também, quando o primeiro filme falado surge na história do cinema, com O cantor de Jazz (1927), de Alan Crosland, a escolha pela música e pela palavra cantada supera o uso da palavra dita. Talvez nesse ponto Wittgenstein tivesse razão, mas se me permite a liberdade, com uma pequena alteração: sobre aquilo que não se pode falar, deve-se cantar.

Concluo, assim, que o cinema não serve para nada. Concordo com Oscar Wilde quando assim define a arte: não serve para nada. Pois uma vez que buscamos serventia para a arte, ela se torna banal e descartável. O cinema não serve a nada, mas ele é. É uma forma de pensamento, uma linguagem, uma maneira de mostrar e dizer muito e cada vez mais sobre aquilo que sabemos cada vez menos: sobre nós mesmos.

Notas

[1] Todas as referências deste artigo remontam aos estudos da seguinte obra: CABRERA, Julio. Cine: 100 años de filosofia. Uma introducción a la filosofia a través del análisis del películas. Barrcelona: Gedisa, 2015.

Imagem gerada por IA

Sobre o autor

Flávia Arielo

Historiadora e Professora do curso de História do Centro Universitário Sagrado Coração – Unisagrado. Doutora em Ciências da Religião pela PUC-SP. Desenvolve pesquisa sobre conservadorismo, cinema e arte. Pesquisadora do Grupo de estudos Nelson Rodrigues: Literatura, Filosofia e Religião do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.