
Em “Esculpir o tempo”, livro escrito por Andrei Tarkovsky (1932 – 1986), o cineasta aborda, dentre tantas reflexões acerca de seus próprios filmes, o papel do diretor de cinema. Para Tarkovski, a arte cinematográfica – e apenas esta – faculta ao criador moldar o tempo com imagem, visto que a arte seria a culminação de um processo que chegou ao fim (Tarkovsky, 2010). Da mesma forma, o diretor russo também defende a livre interpretação da obra por parte do espectador, aquele que, segundo Tarkovsky, deveria colocar de lado a busca por significados semióticos objetivos para refletir a respeito do que a obra enquanto “expressão poética”, como diz o autor, tem a ressoar.
O que se vê em Nostalghia (1983), no entanto, não parece ser uma representação qualquer de uma emoção que simplesmente acomete a qualquer um; o filme retrata deliberadamente uma dor profunda e cara ao diretor, não apenas com interpretações, cenários e diálogos extraordinários, mas com símbolos que marcam o grito de alguém perecendo em agonia. Tarkovsky assume em seu livro que Nostalghia, embora pensado para expressar a inadequação do cidadão russo no mundo estrangeiro, viria a retratar uma dor que ele teria que suportar ao longo de seus próximos (e últimos) anos (Tarkovsky, 2010). Cansado da censura que apagava seus filmes, Tarkovsky optou por se autoexilar na Itália em protesto à pressão propagandista estatal que empregnara o cinema soviético durante o regime.
Nostalghia narra a missão profissional de Andrei Gorchakov (Oleg Yankovsky), um poeta russo exilado na Itália que, acompanhado de sua colega Eugenia (Domiziana Giordano), busca conhecer a biografia de um escritor chamado Domenico (Erland Josephson), tido por muitos como um louco. Ao longo do filme, o espectador assiste à derrocada do escritor que sofre de nostalgia e sonha em voltar para casa. Enquanto Eugenia luta para seduzir seu colega e preencher sua solidão, Domenico se esforça para mudar a pequena sociedade à sua volta. Três imensas batalhas perdidas.
Andrei – o personagem, e também o diretor – é asfixiado por relances de lembranças de sua infância ao longo de todo o filme. Seu calvário, ilustrado principalmente pela esmagadora beleza das ruínas calabrianas, torna o personagem ainda menor do que é, em tamanho e significado, levando-o à nostalgia (do grego nóstos, que significa “retorno ao lar”, e álgos, que significa “dor”), uma “doença asfixiante” segundo o cineasta. O protagonista, ao entrar na casa do escritor Domenico, se encontra dentro de mais um cenário que se assemelha com suas próprias ruínas: inúmeras goteiras que mais parecem cachoeiras e que inundam a casa, paredes infiltradas, mofadas e descascadas, e alguns poucos objetos obsoletos espalhados por um lar abandonado. Na parede há um espelho gasto que Andrei encara com desesperança, e logo atrás a foto de um bebê, uma boneca de olhos negros e nevoados, preenchidos pelas sombras do tempo que passou. Tudo ao redor de Andrei perece diante de seus olhos.
Tarkovsky determina no filme que não há esperança para ninguém, embora todos os personagens tentem se agarrar a alguma fé até chegarem aos seus limites: desamparada pelo amor, Eugenia desiste da Calábria e volta a Roma por não aguentar ficar ao lado daquele que não a deseja por “só pensar em outra coisa” – para ela, o pior dos homens; desamparado pela sociedade, Domenico, depois de fazer um discurso em prol da arte, da liberdade e da vida, tendo esvaziado seu corpo de todo o significado e potência que continha, ateia fogo em si e perece aos olhos dos civis negligentes que o assistem queimando em chamas. Andrei, desamparado pelo tempo, se inclina no rito ensinado por Domenico para suscitar a perseverança de um exilado que deseja voltar para casa, mas morre subitamente de nostalgia. Deus, por sua vez, não é sequer citado no filme. Não há qualquer saída para os personagens do longa.
O filme, datando do início dos anos oitenta, não contou com um artifício de sobrevivência que viria a se tornar ainda mais agudo e vital posteriormente, na era das redes sociais: o consumo. O início do século XXI nos ensinou que a saudade do passado (vivido ou não vivido) também dá dinheiro. Em virtude disso, hoje, o hiperconsumo nos possibilita a ideia de reconstituição de uma época que não volta mais – seja com o colecionável de um desenho dos anos oitenta, uma cópia de um disco de vinil fabricada no ano de lançamento, um relógio antigo ou uma jaqueta no estilo do que se vestia nos anos noventa… souvenirs (esculturas) diversos de um tempo que, ao nosso olhar contemporâneo, valia a pena a ser vivido e que hoje tenta ser reconstituído. Naturalmente, dado que a modernidade demanda que tudo seja entretenimento, a nostalgia encontrou seu público-alvo e se consolidou como uma emoção divertida e açucarada. Ao contrário do sagrado, do amor, da sociedade e do tempo, o consumo, que traz um apelo identitário e existencial à nostalgia, não parece que irá nos desamparar tão cedo. Continuamos sendo asfixiados, mas pelo menos com um sorriso no rosto.
A nostalgia, ou a dor do retorno ao lar, é uma palavra que carrega em sua morfologia um pesar aniquilador. A problemática não se resume à literalidade do “regresso à casa”, mas à impossibilidade do regresso no tempo. Ora, não faz sentido se doer pelo futuro porque ele ainda não existe; não é necessário, da mesma forma, ansiar pelo presente, porque é o tempo do constante infortúnio contingencial que vivemos. Por isso, em diversos momentos buscamos nos distrair e atribuir atividade ao niilismo moderno (o sofrimento, não o conceito ou o método); um niilismo geracional que, inconscientemente, rompe com tradições, convicções, comportamentos e convenções ancestrais – incluindo o tempo –, em uma busca desenfreada por entretenimento, sentido de vida e identidade como forma de se manter a sanidade mental. Mas o passado, o passado distante, quase intocado pelas feridas da vida… este é o único tempo garantido, com as certezas do que já aconteceu, pelo qual nos vale viajar em delírio. A saudade do tempo que já pereceu é uma doença sofisticada.
Referências
Bibliografia
TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
Filmografia
NOSTALGIA. Direção: Andrei Tarkovsky. Produção: Renzo Rossellini, Alexandra Tarkovsky. [S.l.]: RAI Radiotelevisione Italiana; Sovinfilm, 1983. 1 fita de vídeo (125 min), son., color.
Imagem do filme Nostalgia (Andrei Tarkovsky, 1983)
