
“Cenas de um casamento”, obra escrita e dirigida por Ingmar Bergman (1918 – 2007), lançada em 1973 no formato de minissérie para a televisão, e reeditada como longa-metragem para o cinema em 1974, retrata a relação do casal Marianne (Liv Ullmann) e Johan (Erland Josephson), que surge na primeira juventude dos protagonistas, percorrendo anos de calmaria entediante até desaguar em uma traição, seguida por um divórcio turbulento, vulgarmente constituído por agressões verbais e até mesmo físicas. Anos depois, o casal, separado e ainda mais entediado, volta a se reunir atraído pelo desejo latente, até finalmente ser eternizado no abismo da condição humana.
O título deste texto “Isso é amor?” foi inspirado em uma ideia lançada na reflexão do grupo de pesquisas Cinema, filosofia e religião, quando o pesquisador Marcos Oliveira fez esta pergunta diante da reflexão sobre o relacionamento do casal protagonista – que hoje, diga-se de passagem, seria facilmente rotulado de “relacionamento tóxico” ou “abusivo”. Afinal, um relacionamento de décadas, como sugere a obra, que desaguara na pior das relações, poderia ainda ser considerado uma relação de “amor verdadeiro”, mesmo analisado a partir de um recorte pontualmente tomado por xingamentos, cuspes e até mesmo tapas? A resposta é óbvia: Sim. Não à toa, o casal volta a se reunir ao final da série.
Não se preocupe, estimado leitor. Bergman é um gênio e o spoiler anterior não tocará a sua experiência de “Cenas de um casamento”. A obra, estudada pelo grupo à luz do filósofo argentino Júlio Cabrera (1944 –), sugere diversas interpretações do que pode querer dizer ao espectador. Em nossa discussão interna, Juvenal Antunes, pesquisador do grupo Cinema, filosofia e religião, analisou o título do ponto de vista da maturidade. Amanda Spinelli, também pesquisadora do grupo, falou sobre a liberdade feminina de Marianne nos anos 70. Eu, impactado pela série, falei primeiro em coragem. A verdade é que, se tratando de uma das muitas obras máximas de Bergman, Cenas de um casamento propõe muitas reflexões. Aqui vão algumas delas.
Sobre a produção de Bergman, Cabrera reflete o tema da liberdade à luz de Sartre (1905-1980), identificando que a liberdade é um valor individual e que sempre custará à liberdade do outro, pois cada um de nós é em si, e nunca também ao outro. Por isso, na afirmação de Sartre “O inferno são os outros” recai o fato de que o inferno é a condição humana do desamparo, como desenvolvido por Freud na teoria psicanalítica. Disse antes Schopenhauer (1788 – 1860) “O mundo é o inferno, e os homens dividem-se em almas atormentadas e em diabos atormentadores” (P. 34. Edição Kindle). Nesta ótica, dado que somos uma espécie condicionalmente abandonada, caberia ao casal em tela escolher entre a plena solidão ou um relacionamento tedioso, medíocre, com os custos particulares de cada escolha. Ciente do abandono enquanto condição natural e com a relação desgastada pelo tédio profundo, o casal escolheu, enfim, o desemparo, seguido de um divórcio edificado por brigas, agressões e sexo casual, como narrado nos episódios quatro a seis.
Quando Marcos fez a pergunta, disse eu que sempre quando a ouço penso na grandiosa Emily Brontë (1818 – 1848) escrevendo o rígido e ganancioso personagem Heathcliff, do romance clássico “Morro dos Ventos Uivantes”, conhecido por ser um romântico depravado, dominado por um amor bestial dedicado à sua amada Catherine. Afinal, quem foi que disse que o amor em seu estado mais puro não contemplaria uma boa dose de irracionalidade nas escolhas compartilhadas por um casal? Os românticos, sobretudo os da segunda geração (mais sombria) do romantismo, sempre foram movidos pela rebeldia e pela contradição moral. Estas características foram definidas por Nietzsche (1844 – 1900) – filósofo romântico – como “vontade de potência”; uma vontade interna de expansão do ser sustentada pela força de expandir-se em si mesma. O afeto-potência retratado ao longo da obra Cenas de um casamento é o que chamo neste texto de “amor clássico”.
Embora o amor de Marianne e Johan ilustre a realidade de um amor clássico (romântico em essência), nota-se ao longo da série sinais da modernidade, afinal, é o período de sua produção e no qual a estória se passa. Durante uma das muitas brigas do casal rumo ao divórcio formal, Johan reclama que perdeu todo o seu desejo por Marianne, que chegava a insistir para que transassem. A coprotagonista, em uma fala de maturidade, coragem e ímpeto feminino, retrucou “Era tão estranho que eu usasse o sexo a meu favor? Eu estava sozinha, tendo que lutar contra você, nossos pais e a sociedade!”. Por mais fortes que soem, estas nada mais se mostraram do que palavras ao vento a partir dali, dado que a partir da separação o casal continuou a se encontrar de forma casual, movido por um desejo sexual latente e, inevitavelmente, pela necessidade do amparo. Schopenhauer (P. 57) argumenta em seus ensaios sobre o amor que o interesse da perpetuação da espécie se dá em seu desejo insaciável de sobrevivência, posto a partir da nossa necessidade de reprodução e, portanto, da voluptuosidade (desejo sexual). A repressão do sexo na vida de cada personagem é, no entanto, como Freud nos ensinou, uma forma de contenção dos desejos que possibilita o convívio social, seja de uma mulher criada para bons costumes (Marianne) ou de um marido entediado e broxa (Johan), o que empurra os nossos protagonistas para a beira do abismo da existência – o mal-estar na civilização.
Johan e Marianne são pais de meninas, e a série começa com o aborto de um terceiro filho, à sombra da dúvida se o casal deveria mantê-lo ou não. Esta fissura, que também representa a realidade do casal, simboliza uma ruptura das tradições da modernidade com as do passado, desequilibrando a ideia de reprodução contínua da espécie desenvolvida por Schopenhauer a partir do aborto seguido do divórcio. No episódio quatro, ao mencionarem as filhas, Johan, delas afastado, observa “Seria estanho ver as crianças” – que sequer aparecem em tela em momento algum. A consciência da solidão e o rompimento das tradições representados na série por Marianne e Johan é puro niilismo.
O retrato quebrado do casal provoca a nós, contemporâneos, uma ambiguidade moral aparentemente insolúvel: Como pode um casal escolher viver esta miséria? Isso é amor? Bergman responde: O amor clássico, idealizado e fruto de um desejo existencial dissimulado, é a única saída da vida para a nossa condição de desamparo. Disse Scruton (P. 125. Edição digital) “Se o espírito platônico da Idade Média e do início do Renascimento concebia o objeto do desejo como prenúncio do eterno, o espírito moderno o vê como objeto ao mesmo tempo racional e mortal, dotado daquele desamparo pesaroso e pungente que tudo isso engendra”.
Entre as gerações que ainda vivem, destas em que “influenciadores digitais” ensinam suas audiências a tomarem comprimidos com óvulos de Tênia para emagrecerem, e de pessoas que procuram a seus analistas para lidarem com relacionamentos à distância, quase sem encontros, toques ou até mesmo sexo, tornou-se um absurdo inconcebível o amor clássico e orgânico, falho por design, retratado por Bergman. Portanto, podemos entender como “amor moderno” o amor-próprio, publicizado nas redes sociais como o elixir da vida, no qual o maior ideal de alguém é a si mesmo e não ao outro, porque este sim jamais será um relacionamento abusivo.
Hoje, tornou-se comum apaixonar-se verdadeiramente por ninguém mais além de si mesmo, visto que não somos mais feitos por Deus, mas por um remédio para emagrecer. A estética de academia como cenário para publicações de redes sociais é simbólica para representar o amor moderno com o qual muitos de nós, contemporâneos, procuramos mitigar a consciência da nossa condição de desamparo. Por isso, com o passado, representado pela obra de Bergman, podemos aprender que houve um tempo quando tínhamos um motivo a mais pelo qual a vida valia a pena. Agora já é tarde demais.
Bibliografia
“O cinema pensa: Uma introdução à filosofia através dos filmes”. P. 5.251. Edição Kindle;
“As dores do mundo: O amor – A morte – A arte – A moral – A religião – A política – O homem e a sociedade”. P. 34; 57. Edição Kindle;
“Beleza”. P. 125. Edição digital.
Imagem “Cenas de um Casamento” / Ingmar Bergman / divulgação
