Muitos de nós já caímos no conto da discussão política, supondo que ela pudesse acontecer sob um clima mais ameno e racional e que cada lado pudesse manifestar a sua posição, dar um tempo para ouvir a do outro, e, de repente, passar para o lado oposto. Hoje é provável que o clima esquente mesmo entre duas pessoas que tenham alguma identificação político-partidária. A expressão da vez e que deseja traduzir esta situação é Polarização Afetiva.
Não é difícil perceber que por detrás deste antagonismo, nos deparamos com bases, princípios ou fundamentos morais, o que pode explicar os motivos que nos levam à irritação quando entendemos que há algum tipo de má conduta por parte dos agentes políticos mencionados e defendidos no debate. Se não fosse por isso, não levaríamos em consideração um critério que parece transitar pelas concepções de justiça ou de honestidade, quando do julgamento de que uma ideologia mais se aproxima desses ideais enquanto a outra se afasta.
Sem a existência das relações entre moral e ideologia, não ficaríamos tão envolvidos nas tentativas de convencimento de um outro que não consegue perceber que o político em quem ele pretende votar é um “ladrão” que não tem a mínima preocupação com a “justiça social”. Sendo que, quem recebe esta afirmação, tem o mesmo pensamento, como um negativo, em relação ao seu interlocutor.
Mas em meio a tudo isto, é preciso que se acentue que as posições morais envolvidas nas acaloradas discussões políticas são mais e mais assumidas como pessoais. Do contrário, poderíamos até colocá-las também no centro do debate. Algo que evidentemente não ocorre, e é por isso que não só discordamos veementemente do nosso opositor como também o excluímos do nosso grupo de WhatsApp ou deixamos de segui-lo nas mídias sociais até então compartilhadas.
Interessados por esta situação, que para a pesquisa empírica de Comportamento Político tem ligações com a Teoria dos Fundamentos Morais (Moral Foundations Theory), P. Katemi, C. Crabtree e K. Smith, pesquisadores norte-americanos, partiram para a análise de dados que cruzavam perguntas sobre temas afeitos à moral, tais como justiça, lealdade ou pureza, com outros que remetiam às opções ideológicas de cada um, e elaboraram uma pergunta: seriam os princípios morais que temos antecipadamente que moldam as nossas escolhas político-partidárias ou o contrário, nós é que ajustamos os nossos fundamentos morais àquilo que os representantes – agentes políticos, ideólogos, influenciadores etc – do partido de nossa preferência fazem?
Pode ser que alguns de nós sejam tentados a optar pela primeira hipótese, uma vez que ela parece ser uma melhor imagem para nos depararmos no espelho. Temos nossos princípios morais formados ao longo dos anos, no contato com a família, amigos, professores, formadores de opinião e outras referências mais. Depois disso, e a partir daí, vamos ao mercado político e fazemos as nossas escolhas. E temos domínio para a revisão destas opções mais exatamente quando os políticos que escolhemos não agem de acordo com os nossos fundamentos morais.
Já a segunda proposição expõe uma linha de tensão, especialmente porque nos aproximamos de uma situação em que, ao mesmo tempo:
- a flexibilidade demonstrada nos ajustes que porventura fazemos de nossos princípios morais em relação às atitudes tomadas como incoerentes por parte dos agentes políticos de nossa predileção nos aproximaria a todos do pragmatismo enfatizado numa das obras clássicas da filosofia política, O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, a saber e retomar, a concepção de que bom é o que mais funciona e menos espaço abre para o acaso e a contingência.; e
- confirmamos ainda mais as nossas crenças ideológicas quando em contato com contradições expostas por quem esteja na relação de oposição às nossas orientações políticas. Dito de outra forma, se estivermos num debate político polarizado, tudo o que ouvirmos somente irá reforçar a posição política que já tínhamos antes mesmo de entrarmos na discussão.
Os resultados da pesquisa publicada em julho de 2019 no American Journal of Political Science, apontaram exatamente para esta situação: a ideologia ou a identificação político-partidária que possuímos termina por nos colocar na direção de ajustarmos nossas crenças morais de modo a se tornarem coerentes com estas escolhas. Assim, a nossa tendência mais forte seria aquela de ajustarmos os nossos fundamentos morais se eles forem postos contra a parede pelas ações políticas dos atores com os quais temos identificação ideológica. Para os autores daquele estudo, a ideologia justifica a moral e não o inverso.
Segundo Peter Katemi, citado por Katie Bohn no post Futurity, Your politics may shape your morality, “alguma coisa prevendo outra medição não se prova como causa. Mas significa que se eu não conheço todas as suas crenças ou nada sobre você, mas se eu sei com qual partido você se identifica, eu vou ter um bom palpite sobre sua posição sobre uma série de assuntos.”
Esta reflexão pode ser útil, especialmente quando supomos, de um ponto de vista ideal, que uma discussão política pode atingir o objetivo da revisão e do reconhecimento do erro por parte de nosso interlocutor, ou que nós mesmos poderemos vir a mudar de lado. No mais das vezes, quando na atmosfera da Polarização Afetiva, se em algum momento ouvimos os argumentos dos nossos interlocutores, somente o fazemos para confirmar a posição que já tínhamos antes da conversa.
E a nossa disposição em entrar na contenda, se alardeada como aberta, proponente e democrática, poderia mais ser percebida como uma exibição pública das crenças que sequer foram colocadas em dúvida.
Imagem: tratamento sobre original Prostock-Studio/iStockPhoto