A busca de sentido em tempos de polarização absoluta
Diante de uma pandemia mundial, na qual a multiplicidade de vozes aponta caminhos diversos e soluções distantes e dubitáveis, a sociedade contemporânea se vê, mais uma vez, defronte à pergunta fundamental acerca do sentido da vida. Mas se as vozes não são uníssonas e a polarização ideológica, social, política e até espiritual parece ter alcançado seu mais recente ápice, cada pessoa humana sofre, consciente ou não, de um dilema fundamental: a quem seguir? Qual o sentido da existência?
O advento e relativo sucesso das reflexões filosóficas que canonizaram a suspeita colocaram valores, instituições e modelos sociais em xeque. O que parecia ser finalmente o triunfo da liberdade individual, do livre pensamento, da dialética da racionalidade, culminou, no entanto, no aparecimento de novas modalidades de totalitarismo, polarizações ideológicas e, por que não dizer, também de obscurantismo?
Nesse contexto cultural, eis que surge uma pandemia que coloca a humanidade inteira diante da questão fundamental acerca do valor e sentido da vida, ou, mais ainda, do sentido da existência humana.
A “falência” da metafísica apregoada por Nietzsche e outros mestres da suspeita tem o positivo efeito colateral de escancarar a necessidade do encontro pessoal no concreto horizonte da existência humana, o chamado mundo-da-vida (Lebenswelt), criado por Husserl e incorporado por Heidegger em seu projeto Ser e Tempo. É justamente nessa perspectiva que o homem comum se encontra confuso.
Considerando o contexto tupiniquim mais próximo, tem-se a impressão de que a busca de novos heróis vem à tona. Não parece difícil aglutinar pessoas em grandes manifestações em torno desses heróis, as vozes de ordem parecem exaltar mais personalidades que ideias ou valores. Afinal, quais valores defender, qual modelo parece válido, a quem seguir?
Dependendo do lugar filosófico em que alguém se encontra, ser de “esquerda” é estar a favor das minorias marginalizadas e dos pobres, e ser de “direita” é estar a favor de uma economia liberal desumana e do obscurantismo nos costumes; noutro lugar, ser de “esquerda” é estar a favor do comunismo e contra a liberdade, e ser de “direita” é estar a favor da vida e dos valores tradicionais. Mas, pior mesmo, é ser de “centro”, ou “isentão”, mesmo que isso, às vezes, apenas signifique ser cético. Como afirma Pondé: “o debate polarizado empobrece a semântica, atrapalha a análise da realidade ou simplesmente dá sono.”[1]
Não se pretende aqui, nesta leitura, fazer uma análise política, moral, religiosa ou ideológica. O caminho proposto será o do encontro humano mais fundamental e inerente a toda pessoa, seja ela quem for: afinal, a existência tem sentido? É possível seguir sem se alienar? Talvez a reflexão filosófica de Viktor Frankl possa ajudar.
É verdade ser muito difícil, para não dizer impossível, despojar-se de convicções e visões de mundo nesta proposta, afinal, falar em dogma é já um fator determinante para parar por aqui a leitura. Se essa reflexão, porém, considerar o dogma em sentido não religioso, não como um ponto de chegada, mas como um ponto de partida, um lugar comum inerente a toda pessoa, talvez algum êxito ou bom propósito possa surgir.
Qual seria esse dogma? Esse lugar comum? Uma resposta possível é a seguinte: a existência humana está carente de sentido, é necessário admitir que ninguém é eterno neste mundo. A finitude humana é uma realidade – em tempos de pandemia ou não –, mas transcender é possível, ainda que se pense somente no mundo-da-vida, e mais ainda quando se considera uma existência infinita, pois se ela existe, certamente não é descolada desta vida, caso contrário, nada faria sentido de fato.
Frankl parte de uma tridimensionalidade do ser pessoal, facilmente constatável fenomenologicamente. São planos, ou modos do ser, que se apresentam junto com suas forças dinâmicas particulares: biológico, psicológico e noético (espiritual).
Nesta reflexão interessa considerar, principalmente, o Noético (espiritual): este não seria uma aspecto estritamente religioso, mas corresponde ao centro existencial do ser e se encontra nominado pela expressão “pessoa” – que, em termos schelerianos, designa o ser capaz de atos espirituais (passíveis de valor), em potencial oposição ao plano fático da vida; suas forças motivadoras são a busca do sentido, a espiritualidade, a responsabilidade, a liberdade, os valores, a autotranscendência e o autêntico amor.
É justamente na distinção do espiritual como característica essencial do ser humano que se fundamentam a teoria e a prática de Frankl. Baseado nessa conceituação, ele funda sua psicologia/psicoterapia de altura[2]: são as aspirações mais altas do ser, as que somente são perceptíveis quando se leva em conta a dimensão espiritual (a dignidade, a liberdade, os valores), muito além dos condicionamentos de qualquer tipo (biológico, social, psicológico, político, etc.), e, justamente por isso, parecem apontar um caminho, o qual é possível seguir, mesmo em tempos de polarizações absolutas.
A análise existencial
Para Frankl[3], a análise existencial abrange uma série de enunciados básicos presentes, conscientemente ou não, em todo ser humano, que formam uma corrente de vínculos interconectados entre si, os quais reclamam uma coerência interna diante dos desafios que se apresentam no concreto da vida. Como seguir, então, uma análise existencial que permita o encontro, o sentido? Talvez alguns pilares do seu pensamento possam mostrar um caminho a seguir:
Liberdade da vontade: existe uma dimensão humana distintiva, em contraste com os animais, que a caracteriza: a vontade livre, que se opõe a qualquer concepção de causalidade proveniente de um determinismo reducionista relativamente ao ser do homem, seja em nível biológico, psicológico ou social.
Vontade de sentido: nela se reconhece a principal força motivadora do ser humano. Não é simplesmente a vontade de prazer da psicanálise freudiana ou a vontade de poder da filosofia nietzschiana. Corresponde a uma visão do ser humano referida à transcendência, ao sentido e ao futuro, trata-se de uma perspectiva teleológica (com finalidade) ou seja, uma dimensão espiritual, não apenas religiosa, mas que implica na possibilidade máxima do ser humano de autodeterminar-se, de decidir a sua relação necessária entre ser e sentido, não como imposição vinda de fora, de outro mundo ou de uma revelação sagrada – ainda que possa estar em perfeita consonância com estes. Portanto, o que o homem realmente necessita não é viver sem tensões, mas sim esforçar-se e lutar por uma meta que mereça o esforço.
Sentido da vida[4]: o ser humano somente pode dar sentido à sua vida quando responde por sua própria e singular existência e, então, considera o sentido concreto e particular, aquele que se apresenta em cada situação no mundo-da-vida. É, portanto, um questionamento da vida em direção ao ser, uma pergunta à qual somente a própria pessoa deve responder.
Afinal, qual o sentido?
Para compreender o sentido da vida e da existência, sem cair em reducionismos oriundos de um cientificismo bem atual, ou naquilo que Nietzsche chamaria de aprisionamento metafísico, surdez ou cegueira ontológica (aqui se referindo às religiões), a pessoa deve desenvolver uma escuta e uma clarividência ontológica, que permita escutar um chamado concreto, uma vocação. Tal escuta é justamente o que permite, a cada pessoa, transcender, não se deixar levar por engodos sofísticos, ideais factoides, espiritualidades desencarnadas, que apenas geram confusão interior e desordem social, des-cobrir o sentido oculto em cada situação concreta que interpela o ser. A resposta a esse chamado é possível somente no plano da ação, não apenas na simples intenção, nem tampouco na conscientização, mas na realização dos valores que deem cumprimento ao sentido.
Não basta, portanto, militar virtualmente, rechear as próprias redes sociais de frases de efeito muito coerentes e bonitas, convencer e persuadir a tudo e a todos de seus ideais e modus de vida. Escrever livros e teorias apaixonantes, aquilo que os italianos chamam de “filosofi dal tavolino” (filósofos de escritório), conquistar seguidores de Instagram ou ser um grande influenciador digital. Menos ainda parece razoável ser seguidor de ídolos diversos, sejam eles, políticos, gurus ou personalidades interessantes. Tudo isso tem seu valor e não se trata de ridicularizar o óbvio, afinal é necessário reconhecer o mérito e reverenciar os grandes ou pequenos “mestres”, que tantas vezes são pessoas afetivamente necessárias à existência humana; um pai ou uma mãe dedicados, um professor que despertou o espírito crítico, um amigo ou amiga que compartilhou um ideal de vida, uma personagem histórica inspiradora.
Tudo isso é lindo e, não custa repetir: tem seu valor. Apenas não é suficiente para dar sentido à vida! Em tempos de crise, como os da atual pandemia, paradigmas diversos são colocados em xeque e emergem tantos vazios. Quantas pessoas viram seus planos e expectativas se frustrar? A fragilidade da vida bateu à porta sem ser convidada.
A liberdade do homem, também a do super-homem nietzscheano, não cessa de ser finita, em si e nas suas realizações. A finitude é experimentada constantemente na presença da dor que acompanha a existência. No célebre parágrafo de “Assim falava Zaratustra”, intitulado O canto da embriaguez, Zaratustra entoa o cântico Outra vez, cujo sentido é para toda a eternidade: “O mundo é profundo, / mais profundo do que o dia pensava. / Profunda é a sua dor / e a alegria mais profunda que o sofrimento! / A dor diz: Desaparece! / Mas toda a alegria quer eternidade, / quer profunda, profunda eternidade!”[5]
Considerar que cada instante tem valor por si mesmo, implica apreciá-lo enquanto tal, ou mesmo desejá-lo uma vez mais. Mas a finitude não deixa esquecer que não existe a utopia de um permanente estado de prazer, sem dor.
A pergunta, portanto, permanece: a quem seguir?
Por que não seguir buscando o sentido da vida em cada situação cotidiana que interpela cada pessoa? Por que não enfrentar o sofrimento ao invés de fugir dele?
Para não prosseguir, no entanto, somente com perguntas, Frankl poderia ajudar, o método é simples: diferenciar três grupos de valores, ou seja, três possibilidades de encontrar um sentido para a vida, “(…) até seu último instante, até o último suspiro. Essas três possibilidades de encontrar um sentido na vida são: uma ação que realizamos, uma obra que criamos; ou uma vivência, um encontro e um amor”[6]
Em tempos de crise mundial profunda, polarizações, pandemias etc., as palavras de Frankl continuam atuais e constituem uma alternativa interessante para quem não se deixa moldar por eufemismos inócuos e carentes de sentido real: “mas, mesmo assim, quando somos confrontados com o destino inexorável (digamos uma doença incurável, um carcinoma inoperável), mesmo então podemos descobrir um sentido na vida, à medida que atestamos a capacidade mais humana entre as capacidades humanas: a capacidade de transfigurar o sofrimento numa realização humana”[7]
Afinal, a quem Seguir?
Será que esta reflexão termina com perguntas? Mas é exatamente disso que se trata! O sentido da vida constitui-se nas perguntas sobre o porquê da vida e da existência, já que a finitude é uma realidade. Tais perguntas, e certamente muitas outras, são acolhidas nos três tipos de sentido aos quais se refere toda a obra de Frankl.
Sentido NA vida: aqueles das determinadas situações que se vão apresentando ao longo da vida de cada pessoa.
Sentido DA vida: trata-se de uma preocupação metafísica. Este tipo de sentido não poderá ser conhecido senão ao final da vida, numa perspectiva de totalidade.
Suprassentido: o sentido da totalidade do mundo, o qual se aborda mediante uma perspectiva de cosmovisão ou religiosa.
Refletimos, aqui, somente sobre a primeira, que é também a mais imediata e a que coloca cada pessoa humana em condições de des-cobrir o sentido da sua própria existência no plano concreto do agir, ou o seu ser-no-mundo (Dasein), como diria Heidegger. Perguntemo-nos, então: ficar paralisado esperando a vacina da COVID-19 ou arriscar-se a viver, trabalhar, servir, cuidar? O contrário do amor, talvez, não seja o ódio, mas o medo, porque ele paralisa.
O convite, portanto, é vislumbrar o que a vida cotidiana oferece a cada um de nós, através do reconhecimento da nossa inteira existência, em todos os seus modos de ser: biológico, psicológico e, principalmente, espiritual, aquele de que nos fala Frankl.
Somente partindo desse ser espiritual, que nos sustenta nas situações mais difíceis, podemos nos tornar pessoas responsáveis frente à nossa existência. Nesse ser espiritual, encontramos coragem para seguir e responder aos questionamentos que a vida nos coloca, nas palavras de Frankl “a exigência do momento”, que pode ser simplesmente uma criação para realizar, um amor pelo qual viver e morrer ou um sofrimento a suportar ou diante do qual devemos nos opor tomando a atitude devida e, com isso, forjar nossa própria obra pessoal.
Notas
[1] PONDÉ, Luiz Felipe. Eu sou de esquerda ou de direita? 2020. (08m05s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rMi7-W-Zrn8>
[2] FRANKL, V., Logoterapia y análisis existencial, Herder, Barcelona 1994.
[3] FRANKL, V., O sofrimento humano: fundamentos antropológicos da psicoterapia, É Realizações, São Paulo 2019.
[4] FRANKL, V., En el principio era el sentido. Reflexiones en torno al ser humano. Paidós, México, 2001.
[5] NIETZSCHE, F., Assim falava Zaratustra, Lafonte, São Paulo 2012.
[6] FRANKL, V., O que não está escrito nos meus livros: memórias, É Realizações, São Paulo, 2010. P. 75
[7] Ibidem, P. 76.
>> Leia mais sobre Viktor Frankl no off-lattes
Imagem: Eugène Atget (Paris, ~ 1900)