Mark Lilla é um cientista político norte-americano que bem poderia ser lido por aqui. Uma de suas obras que foram publicadas no Brasil se chama O progressista de ontem e o de amanhã: desafios da democracia liberal no mundo pós-políticas identitárias. Saiu pela Companhia das Letras, em 2019, enquanto o original foi publicado nos Estados Unidos em 2018. Trata-se de um raro caso em que um pensador notadamente de esquerda – liberal nos Estados Unidos – procurou fazer um diagnóstico objetivo das eleições de 2016, que conduziram Donald Trump ao poder. O livro, no entanto, ecoa a escolha de Jair Bolsonaro como Presidente da República do Brasil, dada a evidente semelhança entre os casos.
A posição de Lilla não é diferente daquela que foi defendida pelo rapper Mano Brown, durante um comício para o então candidato do PT, Fernando Haddad, em 2018. O artista apontou o manifesto afastamento dos políticos de esquerda em relação às demandas reais da população brasileira mais pobre. Observamos não se tratar de um caso corriqueiro um apoiador de uma ou outra bandeira política vir a público fazendo uma autocrítica. Ambos os posicionamentos, contudo, não pareceram granjear resultados, ao menos não é o que se constata nos anos que se seguiram às eleições mencionadas.
Pode ser que as esquerdas invistam em seu capital de longo prazo e na crença no recall em relação às causas a que têm se aproximado, atinentes às minorias. Mas nota-se um afastamento da agenda das pessoas comuns, aquelas que não necessariamente frequentam as manifestações, tampouco estão em sintonia com lutas mais específicas e que parecem depender de uma cultura escolar, universitária, com as quais muitos não estão relacionados nem se sentem à vontade. Podem, inclusive, sentir-se constrangidos pelo que veem ou escutam.
Segundo Lilla, “os liberais trazem muitas coisas para as disputas eleitorais: valores, compromisso, propostas políticas. O que não trazem é uma imagem de como nossa vida comum poderia ser, o que a direita americana tem fornecido desde a eleição de Ronald Reagan. E é essa imagem – não o dinheiro, a propaganda enganosa, o alarmismo ou o racismo – que tem sido a fonte primordial de sua força. Os liberais abdicaram da disputa pelo imaginário americano.”
A crítica se dirige ao afastamento da vida comum das pessoas, suas mazelas, pequenas e grandes preocupações, das contas a pagar ao receio de que uma escolha de trabalho tenha sido adequada. Mesmo que, em geral, quem esteja do outro lado do balcão, do caixa, manifeste muito mais força para suportar o seu dia a dia do que aquele que chega com a potência do seu cartão de crédito.
Lilla estava atento e preocupado com o que entendeu ser um distanciamento das esquerdas daquilo que mais proximamente mobiliza o comum das pessoas, aquelas que costumavam ser visadas pelas lideranças dessas hostes no passado. Houve, então, uma elitização dos temas e Lilla destaca as causas identitárias, que, ao invés de unir, separaram mais as pessoas.
“O que eu quero dizer”, continua Mark Lilla, “é que, ao concentrarem a atenção em si mesmos e nos grupos de que pensavam fazer parte, os liberais identitários intensificaram seu desdém pela política democrática corriqueira, porque ela implicava se envolver com pessoas diferentes deles – e persuadi-las. Em vez disso, começaram a fazer sermões do alto de um púlpito para a massa inculta.”
Uma hipótese que venho maturando há algum tempo tem a ver com essa percepção – tanto a de Mano Brown quanto a de Mark Lilla –, e ela ganha relevo em nosso país, local em que pressentimos a presença de um corte cultural, como se houvesse uma classe privilegiada, que se percebe assim, que faz seu “expurgo de má consciência”, bem à moda ou no espírito do nosso colonizador. Esse conjunto de pessoas – cujo recorte se dá pelo acesso ao estudo formal e somente depois de atingirem certo nível de renda –, reproduz o preconceito de elite, mesmo que esta o ataque assim que possível. A reação específica frente às orientações religiosas – aversão aos evangélicos, por exemplo – ao posicionamento político ou em relação à família e à segurança traem um sentimento de ódio de classe não contido. A julgar pelas falas mais calorosas, proferidas nos confrontos políticos, na demarcação expressiva dos gostos – musicais, estéticos, gastronômicos – na ênfase do distanciamento cultural mais amplo e que passa pela visão de família – ter ou não ter filhos, como educá-los(as), etc. – o que se tem é a delimitação nítida dos espaços, que sequer devem ser compartilhados, ao menos não a ponto de se ocupar a mesma mesa, o mesmo carro, a mesma exposição; a não ser que, em todos estes casos, alguns estejam na condição de consumidores de serviços e outros na de serviçais.
Do ponto de vista da classe que se julga superior, a aceitação dos outros somente pode ocorrer se os códigos de compreensão mútua forem aceitos, isto é, o que motiva uma brincadeira e seu reconhecimento, o que se considera um paladar apurado e que crie identificação, o que seja compartilhado como um bom destino de viagem, porque, longe de tudo e de todos, ocorre o deleite em reconhecer uma música que vem junto com a postura afirmativa da identidade do intérprete e, em especial, a ironia em se abordar as inclinações do fanatismo religioso, bem como o apego a algum partido considerado desclassificado perante o demais. Todos esses gostos seguem sendo marcadores de comportamento passíveis de serem tomados como objeto de pesquisa.
Quão provinciana pode ser uma elite que diz possuir compaixão pelos mais pobres, mas que demarca de modo obsessivo a sua condição de superioridade nos seus gostos, dos mais pueris aos aparentemente mais complexos?
Imagem: IakovKalinin/iStockPhoto