John Stuart Mill acreditava que o engajamento em política permitiria ao homem expandir sua cabeça e seu coração. Para Jason Brennan, podemos ser bons de coração, mas somos ruins de cabeça, e faríamos um grande favor à democracia se restringíssemos nossa participação em assuntos políticos.
Against Democracy, publicado em 2016, é a terceira parte de uma trilogia que teve seu início em 2011, com The Ethics of voting, e foi seguida em 2014, por Compulsory voting: for and against. No primeiro livro, Brennan defende que a melhor forma de exercer virtudes não é dentro do campo da política, mas fora dele. Para o autor, a maioria dos cidadãos deveria sentir-se na obrigação moral de abster-se de votar, mesmo que tivesse direito ao voto. No livro de 2014, Brennan argumenta que o voto compulsório carece de justificativas que o sustente. Podemos até alegar que votamos pelo bem de todos, mas intenção não é garantia de resultado e o inferno é bem conhecido por estar cheio delas.
Apesar do aparente desacordo entre Brennan e Mill, é preciso fazer uma contextualização. Na época de Mill, apenas uma elite minoritária e não representativa votava. Do século XIX para cá, o número de cidadãos que votam aumentou e, diferentemente dos anseios de Mill, o crescimento da participação política não tornou os cidadãos mais virtuosos. Muito pelo contrário, dedura Brennan, a maioria é mal-informada ou ignorante sobre assuntos políticos básicos, apoiando candidatos e políticas que não apoiariam se estivessem bem informados.
Outra contextualização faz-se valiosa. Against Democracy não é um livro em resposta à eleição de Donald Trump ou à saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit). Desde 2009, Brennan dedica-se a desafiar a maioria de nossas ideias sobre participação política e, especificamente, aquelas que orbitam a defesa do sufrágio universal. “Eu sou um crítico da democracia, mas também um fã”, explica Brennan. Against Democracy não é um livro contra a democracia, mas denuncia suas falhas sistemáticas e nos convida a nos abrirmos à investigação e à possibilidade de experimentarmos alternativas.
Quando começou a escrever, em 2009, poucos ouvidos recebeu. Mesmo quem não concordava não se impelia a fazer grande resistência. O cenário mudou e as pessoas atualmente demonstram grande incômodo com o que Brennan diz. Estaríamos diante de um aumento de consciência política? Para Brennan, nem de longe seria isso. Para este advogado do Diabo da democracia, a maioria dos cidadãos não faz nenhum favor votando; aliás, a maioria das pessoas não deveria nem se preocupar com política. Desde que os estudos sobre o quanto os eleitores sabem sobre política começaram, os dados obtidos nunca melhoraram, “os resultados são tão deprimentes lá atrás quanto são agora” (Brennan, 2017). Em uma de suas aparições públicas, Brennan fustiga os eleitores definindo-os como piores que ignorantes, e acrescenta que, em se tratando de política, a ignorância seria uma benção. Para ele, se as pessoas incompetentes e ignorantes decidem, a democracia não é tão justa como pretende parecer.
Se justiça é a intenção do voto universal, seria ainda mais justo jogar uma moeda, exprime Brennan. Caso haja discordância com este método, é porque as pessoas estão muito mais preocupadas com o resultado, e não com a metodologia. Brennan é um utilitarista, voltado ao valor instrumental. Sob esse filtro, entende que uma forma de governo é uma ferramenta que precisa ser julgada útil ou não. Ele concorda que a democracia funciona bem, inclusive porque ela parece fazer um trabalho melhor de proteção à economia e às liberdades civis, quando comparada às não-democracias, e tende a ser mais rica. No entanto, será que existira algo melhor? Eis que Brennan nos apresenta sua alternativa ofensiva: a redução da participação de política dos cidadãos conforme a identificação de quão informados e racionais eles de fato sejam.
É possível que a alternativa epistocrática de Brennan – na qual quem sabe mais vota com mais peso –, seja mais palatável quando nosso candidato escolhido perde e/ou o nosso candidato inaceitável ganha. De qualquer forma, a base de sua sugestão de modelo de governo, a epistocracia, aponta o dedo não para o outro, mas para nós mesmos. Brennan dispõe os cidadãos dentro de um espectro conforme o comportamento eleitor. Descreve três formas básicas de categorização do eleitorado dentro de uma democracia, à maneira de arquétipos. São eles: hobbits, hooligans e vulcans.
Para quem não está familiarizado com o universo geek, um hobbit é uma das criaturas criadas por J. R. R. Tolkien, presentes nos livros O Hobbit e O Senhor dos Anéis. Hobbits têm pés peludos e cerca de um metro de altura. Em uma busca despretensiosa, descobre-se que uma das maiores curiosidades dos usuários do Google é saber quantas refeições um hobbit faz por dia. Brennan diria que os hobbits se interessam mais pelos próprios hobbits do que por qualquer outra coisa. Na versão de Brennan, os hobbits não se preocupam muito com política, são pouco informados, com menor interesse em assuntos políticos, geralmente têm engajamentos ideológicos instáveis ou fracos e, assim, não se fixam muito em opiniões, preferindo ficar em casa, bebendo e comendo (fim do suspense: são seis refeições por dia, não para estimular o metabolismo, mas porque as criaturas de Tolkien adoram festas e celebrações).
Conhecer os hooligans é mais fácil, basta pensar em futebol. Em dia de partida, as entradas dos estádios são divididas para que as torcidas sejam separadas. Hooligans não são conhecidos pela tolerância com o adversário, por isso a divisão não ocorre para valorizar a estética da arquibancada segundo cores de camisa, e sim por questões de segurança. Os hooligans de Brennan são os eleitores mais informados, o que não é necessariamente bom. Com forte engajamento, e ferrenhos defensores de sua identidade política, os hooligans inclinam-se a decisões enviesadas. Apesar de saberem mais que os hobbits, o processamento das informações que lhes chegam é enviesado, ou seja, dois grupos de hooligans podem ver a mesma informação, mas irão processá-la de maneira totalmente diferente. Esse é o típico eleitor que procura as notícias que confirmam aquilo em que ele já acredita. Se a decisão favorecer o outro lado, é porque o juiz é, óbvio, ladrão.
Os vulcans (ou vulcanos) são uma espécie humanoide extraterrestre, de orelhas pontudas, do universo fictício do seriado Star Trek. Proveniente do planeta Vulcano, são tipicamente mais fortes do que os humanos, porém humildes, pois não se gabam dessa força – talvez um traço de virtude aristotélica. Nos tempos antigos, foram guerreiros, o que os levou até muito perto da extinção. Segundo o site oficial do seriado, ao longo dos séculos, os vulcanos desenvolveram uma cultura dedicada ao domínio completo da lógica, aprendendo a suprimir suas emoções (que antes eram violentas em quase todos os aspectos de sua existência). Os vulcans de Brennan estão nessa fase de amadurecimento: são perfeitamente racionais, pensadores bem informados e sem lealdade inapropriada a suas crenças. Vulcans querem saber a verdade, não importa qual seja ela.
A maioria dos cidadãos caem na faixa do espectro entre hobbits e hooligans, o que implica dizer que nossas democracias são dominadas por hobbits e hooligans. Em média, o não eleitor americano é tipicamente um hobbit e o eleitor é um hooligan. O problema, diz Brennan, é que muitas teorias filosóficas da democracia presumem que os cidadãos se comportem como vulcans, que, se existirem, são poucos, visto que todo mundo tem algum viés (não existiriam, portanto, vulcans “puros”, pelo menos não neste planeta que habitamos).
As evidências mostram que a ampliação do direito de voto não cria vulcans, mas o engajamento político tende a transformar hobbits em hooligans, o que nos gera um impasse. Em contrapartida, a ideia da epistocracia de Brennan não é deixar o voto apenas para os vulcans. Distinguir o eleitor informado do mal-informado é fácil, difícil é testar o viés cognitivo em larga escala. Mas o autor é daqueles adeptos da ideia “difícil não é impossível”, ou seja, não quer dizer que não possa ser feito. Quando Brennan entra no território de discriminar o peso do voto de cada um, muitas das objeções ao seu modelo saem fervorosas da toca em uníssono: isso seria justo?
Como a democracia pode se dizer justa, nos inquire Brennan, se a maioria dos eleitores pode até ser legal, mas certamente é ignorante e irracional? Para Mill, se uma verdade não encontra oponentes, nós devemos imaginá-los. Esse é o estandarte de Brennan: um confronto direto às nossas premissas intuitivas e não necessariamente realistas, e que ornamentam a defesa do sufrágio universal como padrão-ouro da justiça. A democracia está cheia de hipóteses que nunca foram testadas, e Against Democracy as submete à prova.
A fermentação epistemológica instigada por Brennan indubitavelmente atinge nossas vaidades – nós, seres tão politizados nas redes sociais, que usamos todos os dentes para digitar nossas opiniões. “A utilidade de uma opinião é, por si só, uma questão de opinião”, escreve Mill – tão utilitarista quanto Brennan. Mas será que estamos preparados para essa conversa?
Referências
Brennan, J. (2017). Against Democracy. Princeton University Press.
Mill, J. S. (2019). Da liberdade individual e econômica: princípios e aplicações do pensamento liberal. São Paulo: Faro Editorial.
Imagem: divulgação