Judaísmo Contemporâneo: Filosofia e Literatura Judaicas

Os diversos toques do shofar

“Há uma fenda em tudo. É assim que a luz entra.” Leonard Cohen

Recentemente, ouvi uma piada que dizia que, se os judeus não tivessem o Talmud, teriam uma população maior do que a China. Achei engraçada pois sei, ainda que superficialmente, a quais níveis podem chegar tais discussões.

Às vezes intermináveis e interminadas – sim, a maioria não possui conclusão e continua aberta –, as discussões talmúdicas podem dar, à primeira vista, uma ideia errada do judaísmo, fazendo parecer que a palavra tem peso maior do que a ação. Nada poderia estar mais longe da verdade.

Dos patriarcas aos profetas e reis, a base do judaísmo se fez de práticas e ações. Buber distinguia religiosidade e religião: a religiosidade é um processo interno que se reflete externamente, enquanto que a religião é a repetição feita à maneira da descrição já regrada [1].

Sabemos que há uma religião judaica, mas vou falar do que me parece mais importante, a religiosidade.

De reis e profetas

Dando um salto e indo diretamente aos reis e profetas, vemos diversas vezes as críticas feitas por estes ao povo, condenando a discrepância entre sua religião e sua religiosidade: seguiam as regras da primeira, mantendo, por outro lado, ações não condizentes com a segunda. Condenavam também, se preciso, aos reis, e mesmo com o grande David não foi diferente. Não é difícil perceber como as palavras dos profetas são ainda hoje tão vivas. Não é difícil também perceber a posição delicada em que se encontravam.

Na haftará lida em Yom Kipur, Isaias nos lembra de que nosso jejum não basta, se não partilharmos nossa comida, ajudarmos aos desamparados e se recusarmos ajuda ao próximo [Isaias, 58:5-7] – mas muitas vezes tomamos essas palavras como algo óbvio, algo dado como certo e as tomamos por garantidas. São, assim, esses escritos apenas legado, ainda que atuais em sua verdade?

A luz precisa de fendas para passar e iluminar nossa leitura. Não adianta lermos a Torá ou o todo, o Tanach, no escuro de nossos hábitos, se não virmos as ações implicadas, ainda que por omissão. O que estou fazendo ao dizer isso? Sem a mesma grandeza, faço o mesmo que os profetas e repito palavras que devem ser, mais do que lembradas, vividas sempre. Assim como existem motivos para lermos as haftarot semanalmente, existem motivos para lermos Isaias no dia mais sagrado do ano: sentir a religiosidade e não apenas repetir a religião.

Do shofar às passagens de luz

Durante essa época do ano, ouvimos o som do shofar por diversas vezes e, embora a pandemia tenha eventualmente nos tirado sua presença física, não nos tirou seu simbolismo, o som de seu choro, seu significado de alerta.

É comum lermos histórias hassídicas que tentam nos mostrar de maneira prática o que esse dia significa, o que religiosidade significa, mas ainda assim, muitas vezes, lemos e achamos – assim como fazemos com os profetas – que são atos dotados de beleza, mas que uma vez na mesma situação, também faríamos o mesmo. Uma dessas histórias nos conta, por exemplo, sobre um rabino que caminhava à sinagoga para conduzir a reza de Yom Kipur, viu um animal perdido e foi encontrado pela comunidade, horas depois, tentando reconduzi-lo ao dono. E se eu fosse esse rabino?

No shacharit de Yom Kippur, já passadas várias horas de jejum, acompanhava a reza quando começou meu salmo favorito, com minha melodia favorita: “tov lehodot laAdonai” (é bom agradecer a Deus). Abri um sorriso e comecei a acompanhar o canto do chazan que estava do outro lado da tela. Mal havia iniciado e o interfone tocou, me irritando profundamente: “logo agora? Só pode ser brincadeira”. Atendi: “Hilton, estou preso no elevador, você pode vir com uma chave de fenda e me tirar daqui?”. Era o zelador.

Ele, sozinho em uma manhã, por algum motivo, escolheu meu apartamento para pedir ajuda, e jamais saberei o que o levou a isso, não questionei, não houve necessidade: minha irritação se foi e entendi perfeitamente do que aquilo se tratava. Era o shofar. Era um chamado à minha religiosidade, àquela, tornada ação, não mera repetição de palavras.

Peguei duas chaves de fenda, desci descalço, de camisa e kipá brancas. O elevador estava travado entre dois andares. Coloquei a chave na fenda que destrava a porta, o zelador saiu, me agradeceu aliviado e não pareceu espantado com a forma como eu estava vestido em uma segunda-feira de manhã.

Por isso, a repetição de palavras e melodias não é apenas hábito, não pode ser simplesmente religião. Não podemos deixar que os alertas sejam apenas os sons anuais do shofar. Podemos ver claramente que o shofar pode se apresentar também em um chamado de desespero no interfone, e que a entrada de luz de que Leonard Cohen nos fala pode se dar também, literalmente, pela fenda onde se coloca uma chave e se abre a porta para quem está desesperado.

Nunca Yom Kipur me havia sido tão claro em seu propósito, e espero ter novos alertas, novos toques de shofar, sejam eles anuais como este, ou em meus amados shabatot. A meu salmo favorito adiciono agora um novo significado: agradeço a Deus por me alertar naquele momento.

De ações se faz o judaísmo, as palavras as relatam depois.

[1] BUBER, Martin. On Judaism. New York: Shocken Books, 1995

Glossário

Chazan – cantor litúrgico, lê-se “rrazán”

Haftará – porção dos escritos de um dos profetas selecionada para leitura semanal

Haftarot – plural de haftará

Hassídicos – de Hassidim, uma corrente do judaísmo que usa ensinamentos tanto práticos quanto místicos para ensinar

Kipá – cobertura para a cabeça que nos lembra da constante presença de Deus

Shacharit – serviço de reza matinal

Shabatot – plural de Shabat, o dia sagrado de descanso

Shofar – instrumento de sopro feito com o chifre de um animal adequado (casher), geralmente carneiro

Talmud – coleção de textos e leis judaicas, bem como de suas respectivas discussões

Tanach – Torá acrescida de profetas, salmos e outros escritos, também conhecido como “Bíblia Hebraica” ou “Antigo Testamento”

Torá – os cinco primeiros livros da Bíblia, os livros de Moisés, o pentateuco

Yom Kippur – Dia do Perdão, o dia mais sagrado do calendário judaico

Imagem: Zoltan Kluger (1947)

Sobre o autor

Hilton Seawright

Bacharel em Filosofia pela FFLCH/USP e pesquisador do núcleo de Judaísmo Contemporâneo: Filosofia Política Judaica, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.