
“Para lidar com fantasmas, é preciso atraí-los com carne fresca, do presente. Há que entretê-los com superfícies de atrito para fazê-los sair de seu repouso e pô-los em movimento.” – Ruth Klüger, Paisagens da Memória, p. 74.
Ruth acaba de nos deixar (6 de outubro de 2020), aos 88 anos.
Nascida em Viena em 1931, a judia-austríaca Ruth Klüger muito cedo sofreu as agruras da barbárie nacional-socialista, em decorrência do Anschluss: em 1942, com apenas 11 anos, foi internada no campo de concentração de Theresienstadt, depois em Auschwitz-Birkenau, e finalmente em Christianstadt, de onde conseguiu fugir em 1945, junto com sua mãe, indo, pouco depois, residir nos Estados Unidos.
Paisagens da memória, seu livro-testemunho publicado em 1992, tem lugar de destaque no que proponho chamar de “Segunda geração de escritos sobre a Shoah”, ou seja, textos que vieram à luz quando já se conhecia razoavelmente bem o que tinha acontecido durante o período nazista. Nas palavras da escritora (p. 73-74),
“É um absurdo querer apresentar os campos, tal qual foram outrora, no sentido espacial. Entretanto, é quase tão absurdo querer descrevê-los com palavras como se nada houvesse entre nós e o tempo em que existiram. Os primeiros livros após a guerra talvez ainda tivessem feito isso, aqueles livros que ninguém queria ler, mas é justamente a partir deles que nosso pensar se transformou, tanto que hoje não posso falar a respeito dos campos como se fosse a primeira, como se ninguém tivesse falado deles, como se todos que estão lendo agora não soubessem tanta coisa sobre eles, até mais do que suficiente, e como se tudo isso já não tivesse sido explorado – no sentido político, estético e também kitsch.”
A esmagadora maioria das obras sobre a temática da Shoah foram escritas por homens. São extremamente escassas as vozes femininas que reportaram ou ficcionalizaram as vivências relacionadas à opressão nazista. Em contraste, Ruth Klüger trouxe-nos um olhar especificamente feminino. Mais do que isso, uma reflexão sobre a Shoah vista pelos olhos de uma criança.
Entre os muitos aspectos dessa vivência sobre os quais Ruth Klüger se debruça, merece destaque a discriminação sofrida por crianças e por mulheres (o que a coloca na condição de triplamente discriminada – judia, mulher, criança), não só por parte dos nazistas, mas também por outras minorias étnicas igualmente oprimidas e, inclusive, pelos próprios judeus.
A exclusão das crianças é um tema frequente em suas memórias. Podemos citar, a título de exemplo, este excerto de seu livro (p. 68-69):
“Hoje em dia há pessoas que me perguntam: “Mas você era jovem demais para lembrar daqueles tempos terríveis”. Ou nem mesmo perguntam, elas afirmam com plena certeza. Penso então que querem tirar de mim a minha vida, pois a vida nada mais é do que o tempo que se viveu, a única coisa que temos, e é isto que me negam quando põem em dúvida o meu direito de rememorar.”
Crianças que sobreviveram a pogroms e a outras catástrofes muitas vezes são proibidas de elaborar essas experiências e obrigadas a se comportar como “crianças normais”. Isto acontece para o bem das crianças, que não devem falar sobre “estas coisas”. Frequentemente, elas elaboram seus traumas inventando brincadeiras que escondem dos adultos.
Sobre o silenciamento das mulheres, Klüger observou (p. 13), entre outros, que
“Também tenho o que contar, quer dizer, tenho histórias a contar caso alguém pergunte, mas só poucos o fazem. As guerras pertencem aos homens, e assim também as lembranças da guerra. Ainda mais o fascismo, mesmo que se tenha sido contra ou a favor: puro assunto para homens. Além disso, mulheres não têm passado. Ou não têm que ter algum. É indelicado, quase indecente.”
Um dos aspectos relevantes deste “olhar especificamente feminino” é a desconstrução da monumentalidade da guerra, a ênfase nos pequenos detalhes subjetivos.
Esse esvaziamento político dos fatos narrados pode ser visto nas memórias de Ruth Klüger; a autora expressa seu desconforto – como criança e mulher – em relação ao silenciamento, que é imposto tanto pelos perpetradores quanto por outros oprimidos, em diversas passagens; e a ênfase recai sobre a opressão exercida por outros oprimidos. A ponto de a autora registrar que (p. 52) “estas memórias praticamente não tratam dos nazistas […], mas sim, ao contrário, das pessoas difíceis, neuróticas […], famílias que, como seus vizinhos cristãos, não tinham levado uma vida ideal”. Ou seja, sua própria família, a comunidade judaica com a qual convivia.
As memórias de Ruth Klüger, como ela já antecipara ao destacar que “estas memórias praticamente não tratam dos nazistas” e que (p. 13) “as guerras pertencem aos homens, e assim também as lembranças da guerra”, evitam o registro historiográfico da barbárie, para centrarem-se na trajetória do eu, nas transformações que nela se operam desde a infância na sufocante Viena – em que os judeus tentavam adaptar-se à realidade da exclusão intensificada –, passando por sua internação em vários campos de concentração e, merece destaque, a reconstituição da vida depois da guerra, quando, a autora insiste, o rebaixamento das crianças se mantém. Klüger recorda um jantar, pouco depois de chegar em Nova York (p. 203):
“Fomos levadas de volta para casa em um carro enorme e portentoso. Na escuridão, sentada no confortável banco traseiro, a tia distante disse para mim: ‘Você precisa apagar da mente o que aconteceu na Alemanha e fazer um novo começo. Você tem de esquecer tudo o que ocorreu na Europa. Apagar, como se apaga o giz da lousa com um apagador’.”
Ruth Klüger destaca-se entre os escritores que dedicaram sua obra à temática da Shoah. Seu livro de memórias continua, passadas quase três décadas de sua publicação, uma referência no gênero.
Imagem: Michael Reichel/dpa/picture-alliance/DW