Como lidar com a possibilidade de perder o direito ao voto? Estamos tão acostumados com o nosso direito de votar que mencionar uma perspectiva de perdê-lo parece uma sugestão perigosa, como se evocássemos os traiçoeiros inimigos da democracia – ao menos em algum pedaço de seu discurso – e, assim, seríamos tomados por cúmplices ou, no mínimo, suspeitos, ainda mais em um momento em que a quantidade de assuntos delicados é espantosa.
A simples insinuação dessa eventualidade abstrata soa como um mau presságio. Perder (ou ter reduzido) o direito ao voto e, consequentemente, alguém ganhá-lo (ou tê-lo aumentado) suscita a indignação e arrefece a oportunidade de simpatia às ideias de Jason Brennan acerca da epistocracia. A História conta com fartos exemplos da atuação de “minorias experientes e desenvolvidas” sobre “maiorias inexperientes e atrasadas”, o que justifica em parte o receio, embora seja apostar muito em nossa memória como força motriz de nossa relutância. Quando premissas são questionadas, nunca devemos esperar agradar a seus adeptos, tampouco ganhar-lhes os ouvidos.
Against Democracy, título que não engendra confiança imediata para o leitor dar, de bom grado, a aderência das mãos ao livro, é a última parte de uma trilogia em que Brennan discute, basicamente, o sufrágio universal. Não que ele seja especificamente contrário à democracia, mas sim ao voto universal. O filósofo e cientista político não deseja dissolver todas as liberdades alcançadas por nossos regimes democráticos – mesmo que, como diz, alguns sejam piores que algumas monarquias –, pois, no final das contas de Brennan, o que possibilita a existência de más escolhas políticas é o fato de todos votarem.
A epistocracia, como alternativa à democracia, consiste na distribuição de poder em proporção ao conhecimento ou competência do cidadão em termos de lei e política. O sufrágio e a oportunidade de concorrer a cargos políticos seriam restritos àqueles que demonstrassem um nível básico de conhecimento em legislação e política. Ter-se-ia, assim, um “sistema de elite eleitoral” (termo que Brennan usou anteriormente), em que todos começariam iguais no sistema, ou seja, ninguém estaria habilitado ou teria permissão de exercer algum grau de poder político a priori. Nesse sistema, o cidadão teria que conquistar a sua licença para participar da política, isto é, teria que fazer um esforço para poder votar, como o faz para conseguir sua habilitação para dirigir um veículo.
A maior diferença entre a epistocracia e a democracia é que, no primeiro regime, as pessoas não têm um direito igual de votar ou de concorrer a cargos políticos. Os cidadãos de uma epistocracia continuariam a ter suas extensas liberdades civis para fazerem uso do discurso político, publicarem suas ideias sobre política e protestarem, mas não para votar. Em palavras mais próximas, o sujeito pode falar sobre carros, mas nem por isso pode dirigi-los. Antes, ele deve ser submetido a uma prova, igual para todos. Obviamente, algumas pessoas têm mais chance de serem aprovadas do que outras.
O mesmo aconteceria na epistocracia. Haveria um exame de qualificação do voto, um exame aberto a todos. O exemplo da prova de direção não é à toa. Brennan considera os maus-eleitores tão perigosos quanto os motoristas incompetentes e acredita que a democracia está cheia deles. Para o autor, os cidadãos não conhecem o suficiente para votar e, além de não saberem escolher, não sabem avaliar os resultados de suas escolhas, pois, para avaliar se um trabalho foi bem feito é necessário muito conhecimento.
Quem decide quem tem competência para votar, ou seja, quem estrutura a prova, é uma pergunta pertinente (e inquietante), todavia, não é o escopo de Brennan. Ele nos remete ao interior de um exercício epistemológico de linha platônica e, se quisermos ser mais modernos, atravessado pelo utilitarismo. Ao questionar o resultado de nossas ideias democráticas, Brennan coloca em evidência como fatalmente nos apegamos aos direitos, desde que não nos exijam responsabilidades. Em caso de dúvida, cabe nos perguntarmos se consideramos aceitável qualquer um dirigir um veículo, quando somos nós os pedestres, ou, ainda, se qualquer um pode tornar-se nosso médico pessoal. Por que em política pensamos diferente?
Brennan é um guarda-chuva em meio a uma tempestade de opiniões: não sabemos se irá resistir. Na era do cancelamento, é provável que ele seja deletado antes mesmo que tenha sido capaz de persuadir, mas qualquer tormento é uma excelente oportunidade para pensar. Fazer nossas contradições aparecerem, como intenciona Brennan, é o primeiro passo para avançarmos rumo a um expediente dialético.
O voto universal solidificou-se como característica irretocável da democracia, tal qual uma ideia que fornece a lógica, ou seja, a dedução a partir de uma premissa e que, por isso, sustenta um determinado repertório de comportamentos como se abarcasse em si toda a argumentação. Não há espaço para antítese quando a tese passa a ser a premissa. Caminhamos como se o sufrágio universal, ponta de lança de nossa devoção democrática, fosse a garantia contra a perda de todas as liberdades. Entretanto, para Brennan, a democracia, na maneira como a praticamos, é injusta.
Não sabemos se a epistocracia funcionaria melhor que a democracia. Não a tentamos até agora; o terreno aqui é, portanto, especulativo. Brennan reconhece a facilidade de se exporem as patologias da democracia e a dificuldade em se definir como melhorá-la, naquele adágio de “fácil falar, difícil é fazer”.
Se houvesse mesmo uma prova de qualificação do voto, nós teríamos que nos esforçar para conquistar nosso direito de votar. Nós estudaríamos para a prova? Ninguém, verdade seja dita, gosta de ser avaliado. Qualquer avaliação é uma ameaça à nossa integridade. Somos sempre importunados pela necessidade de provarmos nosso valor e atormentados pela possibilidade de falharmos. Como manejaríamos uma reprovação no exame epistocrático? É certo que, independentemente do candidato eleito, o lado insatisfeito viralizaria uma hashtag “é por isso que eu não voto”.
Claro que a brincadeira pode não ser bem-vinda, já que parece que levamos a política muito a sério. E se a levamos tão a sério, e se nos orgulhamos tanto de a termos inventado, por que nos faltam argumentos racionais? Digo isso dada a rapidez e a velocidade com a qual dizemos “não” ao modelo epistocrático de Brennan, resposta típica do afeto desinibido que não conhece o pensamento e escancara a lealdade. Somos, assim, tão leais à democracia ou simplesmente a nós mesmos? Pensar é se esforçar, mas será que seu voto valeria esse esforço?
Imagem: Marchers with signs at the March on Washington, 1963 (Marion S. Trikosko / Wikimedia Commons)