Nascida Alisa Rozenbaum em 1905, na cidade de São Petersburgo, antiga União Soviética, Ayn Rand chegou à América em 1926. Publicou seu quarto e último romance, A revolta de Atlas, em 1957. O livro é considerado best-seller há mais de 60 anos e alcançou tamanha popularidade – diga-se de passagem, positiva e negativa – que se situa em segundo lugar entre os mais influentes nos Estados Unidos, perdendo apenas para a Bíblia. Pode-se até questionar quem de fato lê suas mais de mil páginas, mas quem se aventura de uma ponta a outra é porque acabou capturado por este romance monumental, complexo e filosófico.
O título original em inglês é Atlas Shrugged. Na mitologia grega, o titã Atlas recebe de Zeus o castigo eterno de carregar nos ombros o peso dos céus. O verbo to shrug é a ação de encolher os ombros, em sinal de dúvida, de indiferença, impaciência. É interessante imaginar a cena proposta pelo título original, até porque Rand gosta de “concretizar” ideias: Atlas carrega um peso nas costas e, então, dá de ombros. Essa é a sua revolta.
A ficção filosófica de Rand conta a história da “greve dos homens que usam suas mentes”. É a greve dos cérebros. Diante da coerção governamental que sobretaxa e regulamenta cidadãos produtivos e lucrativos, pouco a pouco, esses homens competentes – artistas, cientistas, industriais, filósofos, professores – desaparecem das vistas de todos. Deixam tudo para trás, para que os incompetentes que conduzem um governo corrupto e progressista possam se apossar de tudo o que foi produzido e criado. Acontece que há um limite inconveniente que não é entrevisto pelo grupo associado a esse governo: apossar-se não é saber usar. O Estado apossa-se, mas é incapaz de manter a produtividade. Eis o princípio do caos, divisa-se a beira da ruína com a economia caminhando para o colapso.
“Quem é John Galt?”, frase que aparece na primeira linha e irá se repetir ao longo do livro como um improvável precursor das hashtags enquanto se desenrola o mistério, é nitidamente esse “dar de ombros” de Atlas – inclusive essa frase foi o título da primeira publicação no Brasil, em 1987 e, em 2010, o romance foi relançado como “A revolta de Atlas”. Trocando em miúdos, a gíria “Quem é John Galt?” soa como um “quem se importa?”.
O enredo
A espinha-dorsal do romance filosófico de Rand é a história de dois irmãos. Ela é competente e ele um acovardado e ressentido. Dagny Taggart é vice-presidente operacional da Taggart Transcontinental e conduz a ferrovia da família como Atlas, nas costas. O irmão, James Taggart, é o presidente da companhia e estabelece redes de favores com burocratas. Enquanto Dagny anda pelos trilhos, com as mãos nas locomotivas, James faz política em jantares luxuosos. Em um trecho do texto ele diz à irmã: “você tem o privilégio da força, mas eu… eu tenho o direito da fraqueza. Isso é um absoluto moral”.
A história transcorre em uma época imprecisa, numa atmosfera cinzenta e distópica. A interferência estatal cresce pelas mãos de “criminosos legítimos e saqueadores legais” (trecho de “A revolta de Atlas”). Como outras empresas e pessoas, a ferrovia da família Taggart passa a ser corroída pelas exigências do governo que têm início com a primeira proposta, “Resolução Anticompetição Desenfreada” em prol do “bem-estar do público”. Os competentes passam a ser acometidos por restrições sob a alegação de atitudes em prol do bem comum, ideia alicerçada na contenção do crescimento individual.
A “Resolução Anticompetição Desenfreada” pretende impedir atividades definidas como “competição destrutiva”, que visavam ao lucro. Diante de um mundo cada vez mais competitivo, a ideia estatal é impedir que um competidor se torne tão forte que ninguém mais possa concorrer com ele. Integrantes do governo alegam que a razão é uma superstição e querem impor limites à ganância material. Sob essa perspectiva, o processo de acúmulo de riquezas seria um risco ao coletivo.
O individual é, assim, subjugado pelo coletivo; na votação, a maioria aprova a Resolução. “Mas quem vai decidir qual o caminho a tomar, senão a maioria?” (trecho de A revolta de Atlas). É apenas o começo. Na sequência, cria-se a “Lei de Igualdade de Oportunidades”, com a prerrogativa de que todo mundo merece oportunidade. E como merecer uma oportunidade?
“Atualmente é importante ter amigos”, diz James Taggart. Um dos personagens principais observa como a corrupção passa a ser recompensada e a honestidade passa a virar um sacrifício quando o coletivismo se contrapõe à eficiência individual. Questiona Dagny Taggart: “Quais eram as armas, perguntou a si própria, num mundo em que a razão não era mais uma arma?”. Para Rand, a razão era um absoluto moral. Dessa forma, o enredo de “A revolta de Atlas” é a filosofia randiana aplicada. Eis o que nos permite a linguagem literária: imaginar e compartilhar o sério e inescapável desafio da condição humana.
Interesses privados e vida pública: um encontro ou um confronto?
Escreveu a autora: “a arte não é um substituto para o pensamento filosófico”, “o principal propósito da arte não é ensinar, mas mostrar”. A literatura é a forma de arte escolhida por Rand para mostrar ao mundo a sua filosofia. Em sua própria definição, diz Rand: “minha filosofia, em essência, é o conceito do homem como ser heroico, com sua própria felicidade como meta moral de sua vida, com a realização produtiva como sua atividade mais nobre, e a razão somente, seu absoluto”.
A ligação entre literatura e filosofia tem por objetivo corporificar o mundo com o dinamismo envolvente das narrativas. Envolvem-nos porque nós, ainda anatomicamente semelhantes aos nossos ancestrais ao redor da fogueira, gostamos muito de ouvir histórias, e as de Rand são complexas produções de filosofia e literatura nas quais se dramatizam valores. Aliás, que valores nos guiam?
Quando falamos em moralidade ou ética – aqui sem purismos em discriminar os termos – falamos em códigos de valores que orientam as escolhas e ações dos homens e que determinam o propósito e o curso de sua vida. Discussões filosóficas são abstratas, enquanto as escolhas são concretas. Por isso, os exemplos tendem a ser mais eficazes. É difícil compreender o significado de uma concepção filosófica sem ao menos um punhado de exemplos concretos. Os conceitos se tornam, assim, mais imediatamente capturáveis do que quando meramente discutidos em ensaios filosóficos.
Para a autora, a arte ensina o homem como usar sua consciência. É, portanto, um jeito de olhar a existência. Pensar é, para Rand, um valor fundamental. Sua filosofia tem como concepção de homem heroico aquele que encontra a sua própria felicidade direcionando-se para a realização produtiva, como um propósito moral de sua vida, tendo a razão como único absoluto. No romance, Rand destaca, por meio da voz de seus personagens, que pensar é a característica humana por excelência. Tanto racionalismo pode puxar uma pergunta: mas e o amor? “O amor é a nossa resposta a nossos valores mais elevados e não pode ser outra coisa”, “amar é valorizar” (trechos de A revolta de Atlas).
Por falar em amor, é importante apontar que o herói randiano não é altruísta. Ele realiza-se pessoal e produtivamente. O verdadeiro herói de Rand é individual e, logicamente, avesso ao coletivismo, porém não contrário a ele: o coletivo beneficia-se de indivíduos diferenciados. “O código da competência é o único sistema moral baseado no padrão ouro” (trecho de A revolta de Atlas).
Em contrapartida, os vilões de Rand são patéticos. “Sabe o que caracteriza o medíocre? É o ressentimento dirigido às realizações dos outros” (trecho de A revolta de Atlas). Os vilões querem barrar o desenvolvimento do herói, culpá-lo por ser melhor, mais hábil, mais competente. Aqui, o tema elementar é a impotência do mal. A fraqueza de James Taggart é compensada em número de amigos. O mal só tem poder em bando e na sanção de suas vítimas.
Quais eram as armas em um mundo dominado pelo mal? A arma contra o tirano é não lhe dar nada, ou melhor, não fazer nada por ele. Pode-se dar os meios, todas produções e criações, mas ele não saberá administrá-los. O fogo requer combustível para queimar, mas combustível não é algo fácil de conseguir: combustível acaba, é preciso reabastecer. Por isso, os heróis de Rand fazem greve, a greve dos homens de mente.
O que há de contemporâneo na obra de Rand? O processo de acúmulo de riquezas seria um risco ao coletivo ou será ao indivíduo incapaz e ressentido? Será que o indivíduo mais competente, como parece indicar Rand, é realmente mais capaz de ter pensamentos mais sublimes? “Pensar é um ato de escolha” (trecho de A revolta de Atlas). Falar em ressentimento, inveja, em busca pelo amor imerecido, de valores como o bem comum, parecem temas que sempre nos serão contemporâneos.
Se atualmente deliberamos escolhas a aplicativos supostamente mais eficazes por aparentarem ser mais velozes e menos trabalhosos, se sonegamos o pensar e a reflexão por querermos tudo dado, por querermos o que pensamos (ou gostaríamos de) merecer por esforço sem fazer o esforço, vale mencionar outro trecho do romance de Rand: “o imerecido não pode ser dado”.
Parece-me que a condição humana se configura como um sério obstáculo a si mesma e dramatiza-se no conflito perpétuo entre irmãos, estejam eles em Rand ou na Bíblia. Reflito que nós, provavelmente, gostamos de histórias de irmãos contra irmãos. Talvez porque seja parte da nossa essência esse construir-se e destruir-se pela comparação, o que cria entre nós uma perene possibilidade de guerra. Mas, afinal, “quem é John Galt”?
Imagem: Allyn Baum/The New York Times