O que é felicidade? Minha definição de felicidade é poder pensar sobre a vida, vivendo-a e, ao mesmo tempo, sendo tocada por ela. Às vezes dói, certamente, mas sem as ruínas cotidianas que valor daríamos à felicidade? Somos intrinsecamente paradoxais. Como eu confessei, minha definição de felicidade é poder pensar, e pensar requer tempo, espaço e prática. Além de muitos, muitos livros. E não estou sozinha nessa. Escreve João Pereira Coutinho: “a vida é mais fácil quando lemos. É o único conselho que dou a quem me pergunta por que motivo ler é importante”[1].
Lições de felicidade, da filósofa italiana Ilaria Gaspari, é um livro que menciono sempre que tomo café com uma pessoa querida. Felicidade é algo que queremos compartilhar, entretanto o fio do enredo de Ilaria é uma experiência pessoal, a história de uma separação: é o final de seu relacionamento. Quem tem muitos livros é capaz de imaginar a dor de encaixotar uma biblioteca para deixar um ex-lar e um ex-companheiro, tudo numa tacada só? Como atravessar o caminho da dor e levar dela alguma coisa “não-encaixotável”?
Toda carta no tarot de Marselha, avisou-nos Jung sob à luz dos arquétipos, emana aspectos de luz e sombra. A carta da torre em que tudo desaba é carta de construção, a carta da morte é carta de vida, de transformação. Mas, nos dias correntes, falar de tarot dá crédito? E de filosofia?
Muitas vezes, no entanto, e sobretudo em períodos de transformação e de crises como os que estamos vivendo, a voz do bom senso ergue o tom e se acha no direito de dizer que a filosofia é perfeitamente inútil, mania de vetustos professores distraídos que tropeçam no primeiro obstáculo: por que então devemos estudá-la, se não serve para nada? (p. 11)
Para que serve a filosofia? “É vão o discurso do filósofo que não cura algum mal do espírito humano”. Ilaria abre seu livro com a citação de Epicuro e diz-nos:
seria melhor observar os gregos antigos: pois, para eles – e nisso são muito mais modernos do que nós –, não deveria existir hiato entre especulação e vida. A seus olhos, a oposição entre teoria e práxis filosófica era realmente tênue. (p. 11)
Em Lições de felicidade, a escritora propõe a si mesma matricular-se em uma escola filosófica diferente, pelo prazo de uma semana, durante sua mudança de casa. Escolas que floresceram na época helenística, que trazem em seu bojo uma maneira de viver e, mais ainda, uma maneira de pensar. Viver é algo que se pratica, mas como viver? Essas escolas tinham mestres que compartilhavam tempo e hábitos, apresentavam suas artes de viver. “A filosofia não era um puro exercício especulativo, mas um engajamento espiritual”.
O que quer Ilaria? Caminhos. Seguir como discípula o mestre para
transformar a sua existência por meio de uma série de regras, de pensamentos e de vida. Tais regras dão forma a uma sabedoria que não se põe jamais como alternativa à felicidade; em vez disso, principalmente nas escolas nascidas no cerne do pensamento socrático, realiza-se justamente na vida feliz do sábio. (pp. 12-13)
A sabedoria é prática. A felicidade é prática. A filosofia é prática. Mas, como tudo na vida que deriva da prática, solicita esforço, demanda, portanto dedicação. Não é fácil abandonar “o automatismo dos hábitos, das reações imediatas”, deixar de ficar “à mercê de um sistema de crenças aceito irrefletidamente”. Por isso é necessário exercitar-se. “As regras das escolas estabelecem uma progressão de exercícios que exigem que quem as cumpre coloque continuamente em discussão a própria disposição interior – e, também, a exterior”.
Ilaria principia pela escola pitagórica e termina rindo de si mesma na semana dedicada ao cinismo, no famigerado percurso do “conhece-te a ti mesmo”. Eterna aluna dessa matéria, pergunto-me, será que a cura é, afinal, um processo de transformar-se? Ilaria, para nossa alegria, fornece um
experimento existencial e filosófico livre de pretensões filológicas, mas sério, a seu modo, como é sério tudo aquilo que nos impulsiona a revolver perspectivas, embaralhar as cartas, inverter pontos de referência. (p. 15)
Quem já viu um baralho de tarot provavelmente pegou sua sutil referência.
O que seria da filosofia se ela não nos curasse um pouco? Livros não evitam dores, mas prefiro viver dores entre livros a passar sem eles. Escolha minha. A mudança de Ilaria começa por eles,
o fato é que esvaziar uma biblioteca é como tornar-se de improviso arqueólogo de si mesmo. A cada nova estante levanta-se o pó de meses, semanas, anos, tardes – fases da vida que desde sabe-se lá quanto tempo não voltavam aos pensamentos e às recordações. Mas, tomando na mão os livros, o passado vem à tona de súbito, de imediato, intacto como uma relíquia. (p. 23)
Como escreveu Coutinho, “as nossas bibliotecas não são apenas o depósito do passado e do presente. São também uma promessa de futuro: enquanto existirem livros para ler, talvez a eternidade seja possível”[2]. Arrisco um acréscimo (que Coutinho me perdoe tamanha deselegância): enquanto existirem livros para ler, talvez a felicidade seja possível. Mas ela é prática. O desafio está nisso: a felicidade requer experiência.
[1] Artigo Hipermercado chamado Amazon representa bem o ar pútrido do tempo, Folha de São Paulo, 1º de setembro de 2020.
[2]. Artigo citado.
Bibliografia
GASPARI, Ilaria. Lições de Felicidade: Exercícios filosóficos para o bom uso da vida. Belo Horizonte: Âyiné, 2020.
Imagem: divulgação