Sala Hannah Arendt

Hannah Arendt sempre atual

O estudo da obra de Hannah Arendt ganha em urgência e relevância quando nos damos conta da importância de suas reflexões para a compreensão do que foi o século 20 e o que promete ser o século 21 – que nesses poucos vinte anos já se mostrou tão fértil em eventos catastróficos, com os atentados às torres de Nova Iorque, a guerra no Iraque, a nuclearização do Irã, o enfrentamento da pandemia de Covid-19. Sua obra não poderia ser mais atual.

Como sabemos, Hannah Arendt nasceu na Alemanha, em 14 de outubro de 1906, e faleceu em Nova Iorque, em 4 de dezembro de 1975. Sua formação começou com aulas de teologia cristã em Berlim. Mais tarde, estudou filosofia com Martin Heidegger e Nicolai Hartmann, na Universidade de Marburgo e, posteriormente, foi orientanda de Karl Jaspers, em Heidelberg, tendo apresentado sua tese de doutoramento sobre a experiência do amor em Santo Agostinho, em 1928. Mas já em 1933, com a ascensão do nazismo, foi impedida, por ser judia, de apresentar uma segunda tese, que lhe permitiria o acesso a uma carreira docente em universidades alemãs. Desenvolveu então intensa atividade sionista e, sob constante risco de aprisionamento, finalmente conseguiu fugir; primeiro da Alemanha para Paris e, finalmente, em 1941, para os Estados Unidos, onde viveu e produziu pelo restante de sua vida. Desde 1967 até sua morte em 1975, esteve vinculada à New School for Social Research.

O escopo de sua obra é muito amplo, convergindo filosofia com teoria política para iluminar o entendimento da condição humana contemporânea. Pessoalmente, o que mais me impacta é sua reflexão sobre As Origens do Totalitarismo. Desenvolvida em três partes, Antissemitismo, Imperialismo e Totalitarismo, ela mostra nessa obra como as profundas transformações ocorridas na Europa no século 19, na esteira da Revolução Francesa, desembocaram nas imensas catástrofes do século 20. Como o desenvolvimento do Estado-nação afetou e foi afetado pela presença dos judeus na Europa Central e Ocidental. Como o antissemitismo, que na Idade Média tinha caráter puramente religioso, adquire, no final do século 19, características étnicas e inspira o surgimento de partidos políticos programáticos, com atividade definida por esse viés. Para ela, as manifestações políticas de natureza antissemita das décadas de 70 e 80 do século 19 puseram em movimento a maquinaria que resultou no horror da “solução final” – e o Caso Dreyfus foi uma espécie de ensaio para o “espetáculo” de nossa época, o primeiro uso claramente moderno do antissemitismo como instrumento de política pública, e de histeria como arma política. A “sociedade do espetáculo” é uma das características marcantes do mundo em que vivemos.

A ascensão do imperialismo colonial, segundo Hannah Arendt, tornou os judeus supérfluos em sua condição de financiadores dos governantes de pequenos reinados, principados e ducados, em suas guerrinhas uns contra os outros. A partir de seu surgimento, a guerra será feita nos imensos territórios a serem colonizados fora da Europa, no interesse das classes dominantes, que assumirão, por isso, o encargo de financiar o esforço militar de seus respectivos governos. Em consequência, os judeus ficaram expostos à rejeição pública pela desproporção entre seu aparente poder e riqueza e sua reduzida necessidade social. Mas o declínio desse movimento, de 1884 até o início da primeira guerra mundial, em 1914, resultou na decadência do Estado-nação e na desintegração da sociedade de classes na Europa, trazendo a guerra de volta para o continente. Esses dois eventos geraram o totalitarismo.

Para Hannah Arendt, há que distinguir-se claramente entre o totalitarismo e a tirania. Para fazer-se essa distinção, é necessário, primeiro, separar os conceitos de “terror” e “violência”: “O terror não é o mesmo que a violência,” diz ela, “ele é, antes, a forma de governo que advém quando a violência, tendo destruído todo o poder, em vez de abdicar, permanece com controle total.”[1] [Arendt, 2020, p. 72]. E mais adiante, “a eficiência do terror depende quase totalmente do grau de atomização social.” Ela observa que o grau de violência pode atingir um nível em que “lei e ordem” se tornem uma mera fachada. “Nesse caso ainda improvável”, ela diz, “o clima da opinião no país poderia deteriorar-se a ponto de a maioria de seus cidadãos desejar pagar o preço do terror invisível de um Estado policial que garantisse a lei e a ordem nas ruas” [Arendt, 2020, p. 97].

Mas sua obra não visa a uma condenação absoluta da violência, como faz, por exemplo, Paul Ricoeur, que dizia que “toda a ação, ética ou política, que diminui a quantidade de violência exercida pelos homens uns contra os outros, diminui a taxa de sofrimento no mundo” [Ricoeur, 1988, p. 48]. Hannah Arendt, ao contrário, afirma que “em certas circunstâncias, a violência – o agir sem argumentar, sem o discurso ou sem contar com as consequências – é o único modo de reequilibrar as balanças da justiça […] e extirpá-las [a raiva e a violência] não seria mais do que desumanizar ou castrar o homem” [Arendt, 2020, p. 82]. Ela continua, “Não há dúvida de que é possível criar condições sob as quais os homens são desumanizados – tais como os campos de concentração, a tortura, a fome – mas isso não significa que eles se tornem semelhantes a animais; e, sob tais condições, o mais claro indício da desumanização não são a raiva e a violência, mas a sua ausência conspícua” [Arendt, 2020, p. 81].

Mais tarde, Arendt provocará a ira das lideranças judaicas ao criticar a atuação dos Conselhos Judaicos, os Judenräte, os quais acusou de colaboracionismo e de terem se oposto ao uso da violência. “A verdade integral”, disse ela, “era que, se o povo judeu estivesse desorganizado e sem líderes, teria havido caos e muita miséria, mas o número total de vítimas dificilmente teria ficado entre 4 milhões e meio e 6 milhões de pessoas” [Arendt, 1999, pp. 141-142]. Ou seja, os conselhos teriam induzido as massas judaicas sob sua administração a aceitar passivamente as ações nazistas de “reassentamento” e extermínio e, mais, teriam diligentemente executado as ordens nazistas de selecionar as quantidades de pessoas necessárias para ocupar os trens em cada embarque e comandado forças policiais judaicas para caçar os eventuais fugitivos. Não quero aqui me ocupar das críticas em si, largamente desmentidas por pesquisas posteriores, mas sim do apoio que ela empresta ao uso da violência em condições extremas.

Agora podemos ver que

A diferença decisiva entre a dominação totalitária, baseada no terror, e as tiranias e as ditaduras, estabelecidas pela violência, é que a primeira investe não apenas contra seus inimigos, mas também contra seus amigos e apoiadores, temendo todo poder, mesmo o poder de seus amigos. O ápice do terror é alcançado quando o Estado policial inicia a devoração de suas próprias crias, quando o executante de ontem se torna a vítima de hoje. [Arendt, 2020, p. 73].

Um regime tirânico, por mais brutal e sanguinário que possa ser, por mais pessoas que mate, assassina indivíduos, em geral opositores do regime. O estado totalitário, no entanto, extermina grupos populacionais inteiros, vítimas anônimas, sem face. Etnias ou classes sociais, homossexuais ou doentes genéticos, pessoas são mortas apenas por pertencerem a um determinado grupo, que foi declarado supérfluo, matável, excluído da proteção básica da lei, privado dos direitos mais elementares.

Em minha opinião, o ponto crítico é que, antes de ser um regime político, o totalitarismo é uma forma de pensamento, uma forma de se relacionar com o mundo. Por isso, ainda que as duas grandes experiências totalitárias do século 20, o nazismo e o estalinismo, sejam coisas do passado, devemos continuar a observar com preocupação as situações em que a forma totalitária de pensar o mundo se manifesta, e que são inúmeras. “Pode ser até”, diz a autora, “que os verdadeiros transes do nosso tempo somente venham a assumir sua forma autêntica – embora não necessariamente a mais cruel – quando o totalitarismo pertencer ao passado.” [Arendt, 2012, pp. 611-612].

O pensamento totalitário se apresenta como o legítimo e necessário promotor de uma necessidade transcendente, um absoluto vital e inadiável, seja ele “biológico”, como o reinado milenar do povo ariano, ou “histórico”, como a revolução proletária (que na verdade era uma burocracia unipartidária). Por conta da “legitimidade” acima de qualquer lei dessa necessidade transcendente, desse absoluto, uma “legitimidade” que se sobrepõe a qualquer legalidade, o poder totalitário sente-se autorizado a submeter totalmente a sociedade civil ao Estado. Deve dissolver quaisquer resquícios de autonomia, deve atomizar completamente a sociedade civil, aniquilando qualquer possibilidade de resistência, que será sempre considerada como resistência contra a necessidade transcendente. Deve anular qualquer proteção legal, submetendo a própria lei aos interesses sempre mutantes de sua “missão”. Como diz Hannah Arendt, “É da própria natureza dos regimes totalitários exigir o poder ilimitado. Esse poder só é conseguido se literalmente todos os homens, sem exceção, forem totalmente dominados em todos os aspectos da vida.” [Arendt, 2012, pp. 604-605].

Como se dá esse processo? Como se instala o poder totalitário? O ponto de partida do pensamento totalitário é a convicção de que tudo é possível. Não há limites que o poder respeite, pois ele rejeita a legalidade. Arendt explica:

O primeiro passo essencial no caminho do domínio total é matar a pessoa jurídica do homem. Por um lado, isso foi conseguido quando certas categorias de pessoas foram excluídas da proteção da lei e quando o mundo não totalitário foi forçado, por causa da desnacionalização maciça, a aceitá-los como os fora da lei; logo a seguir, criaram-se campos de concentração fora do sistema penal normal, no qual um crime definido acarreta uma pena previsível. [Arendt, 2012, p. 594].

Ou seja, indivíduos e grupos devem ser postos fora da proteção da lei, privados de sua cidadania e de seus direitos civis mais básicos, e internados em campos de concentração, sem culpa ou sequer presunção de culpa. Necessariamente sem culpa. Como observou Giorgio Agamben a respeito do estado de exceção, quando o soberano se coloca acima da lei, para “tomar as decisões que o momento requer”, parte da população ficará abaixo da lei, sem qualquer autonomia, impedida de tomar quaisquer decisões.

“O próximo passo decisivo do preparo de cadáveres vivos”, ela continua, “é matar a pessoa moral do homem. Isso se consegue, principalmente, tornando impossível, pela primeira vez na história, o surgimento da condição de mártir.” Esta condição, ela ilustra citando Rousset:

Quantos aqui ainda acreditam que um protesto tenha mesmo algum valor histórico? Esse ceticismo é a verdadeira obra-prima da SS. Sua grande realização. Corromperam toda a solidariedade humana. A noite caiu sobre o futuro. Quando não há testemunhas, não pode haver testemunho. Dizer quando a morte já não pode ser adiada é uma tentativa de dar à morte um significado, de agir mesmo depois da morte. Para ser bem-sucedido, um gesto deve ter significado social. Somos aqui centenas de milhares, todos na mais absoluta solidão. É por isso que somos submissos, aconteça o que acontecer. [Arendt, 2012, p. 599].

É preciso esvaziar o protesto, a indignação. Já que o homem só é homem no convívio com outros homens, então eles devem ser impedidos de se associarem. Sobretudo para exercerem atividades de natureza política. E este é um conceito tão amplo quanto se queira. Por isso, o pensamento totalitário trabalhará para dissolver a solidariedade, para atomizar a sociedade, para lançar todos contra todos, incentivando a delação e punindo severamente o parente e o amigo que se recusarem a delatar, considerados cúmplices. É claro, todos sabemos, que a Inquisição espanhola já fazia pleno uso da delação, inclusive premiando o delator com parte do espólio da vítima, mas o procedimento foi levado a seu extremo pelos regimes nazista e estalinista.

Arendt expande:

A consciência do homem, que lhe diz que é melhor morrer como vítima do que viver como burocrata do homicídio, poderia ainda ter-se oposto a esse ataque contra a pessoa moral. O mais terrível triunfo do terror totalitário foi evitar que a pessoa moral pudesse refugiar-se no individualismo, e tornar as decisões da consciência questionáveis e equívocas. Ante a alternativa de trair e assim matar os seus amigos, de mandar para a morte a esposa e os filhos, pelos quais é em todos os sentidos responsável, quando até mesmo o suicídio significaria a matança imediata da sua família – como deve um homem decidir? A alternativa já não é entre o bem e o mal, mas entre matar e matar. [Arendt, 2012, p. 600].

Ela continua:

Depois da morte da pessoa moral e da aniquilação da pessoa jurídica, a destruição da individualidade é quase sempre bem-sucedida. É possível que se descubram leis da psicologia de massa que expliquem por que milhões de seres humanos se deixaram levar, sem resistência, às câmaras de gás, embora essas leis nada venham a explicar senão a destruição da individualidade. Mais importante é o fato de que os que eram condenados individualmente quase nunca tentavam levar consigo um dos seus carrascos, de que raramente havia uma revolta séria, e de que, mesmo no momento da libertação, houve poucos massacres espontâneos de homens da SS. [Arendt, 2012, p. 603].

Desta sequência de análises, Hannah Arendt deriva o importantíssimo conceito de mal radical:

O surgimento de um mal radical antes ignorado põe fim à noção de gradual desenvolvimento e transformação de valores. Não há modelos políticos nem históricos nem simplesmente a compreensão de que parece existir na política moderna algo que jamais deveria pertencer à política como costumávamos entendê-la, a alternativa de tudo ou nada – e esse algo é tudo, isto é, um número absolutamente infinito de formas pelas quais os homens podem viver em comum, ou nada, pois a vitória dos campos de concentração significaria a mesma inexorável ruína para todos os seres humanos que o uso militar da bomba de hidrogênio traria para toda a raça humana. [Arendt, 2012, p. 589].

Não há meio termo. Não podemos pensar na hipótese de conviver com o sistema concentracionário.

Em que consiste essa radicalidade do mal? Ela explica:

Até agora, a crença totalitária de que tudo é possível parece ter provado apenas que tudo pode ser destruído. Não obstante, em seu afã de provar que tudo é possível, os regimes totalitários descobriram, sem o saber, que existem crimes que os homens não podem punir nem perdoar. Ao tornar-se possível, o impossível passou a ser o mal absoluto, impunível e imperdoável, que já não podia ser compreendido nem explicado pelos motivos malignos do egoísmo, da ganância, da cobiça, do ressentimento, do desejo do poder e da covardia; e que, portanto, a ira não podia vingar, o amor não podia suportar, a amizade não podia perdoar. Do mesmo modo como as vítimas nas fábricas da morte ou nos poços do esquecimento já não são “humanas” aos olhos de seus carrascos, também essa novíssima espécie de criminosos situa-se além dos limites da própria solidariedade do pecado humano. [Arendt, 2012, pp. 608-609].

Podemos, a partir dessa análise, sucinta pela brevidade do espaço disponível, entender como foi que milhões de vítimas se deixaram abater sem resistência, e como aconteceu que um povo inteiro aceitou ser governado abdicando de qualquer sentido ético, refugiando-se na indiferença, no “não sabíamos de nada”. Na inversão que consiste em pensar: “se essa enormidade aconteceu para eles, algo de muito grave eles devem ter cometido”. E por isso evitar o vizinho, o amigo, para não se comprometer.

Mas não fica perfeitamente claro como foi que o pequeno grupo de detentores do poder pôde arregimentar um funcionalismo completo, uma burocracia enorme para implementar seu regime de terror entre a multidão de vítimas e obter a atomização da população, neutralizando eventuais resistências. Mesmo entendendo que o terror, uma vez implantado, sustenta a si mesmo; que o carrasco de ontem aceita ser a vítima de hoje (esse fenômeno era corrente na União Soviética estalinista), a própria Hannah Arendt tinha claro que a implantação do terror se segue a uma fase de violência e tirania. Como convencer meros funcionários burocratas a pôr em movimento coordenado a imensa maquinaria que primeiro concentra as vítimas em guetos, depois os transporta em massa para campos de extermínio, utilizando a malha ferroviária existente, e finalmente os executa em câmaras de gás e fornos crematórios? Tudo isso aos milhares de cada vez?

Esse enigma só foi elucidado quando Hannah Arendt acompanhou o julgamento de Adolf Eichmann, em Jerusalém, em 1961. Suas impressões e análises foram primeiro publicadas no jornal The New Yorker, que a encarregara da cobertura do processo, e depois, em 1963, em forma de livro, Eichmann in Jerusalem, a report on the Banality of Evil, pela Viking Press. Em consequência do alcance e da agudeza de suas observações, o livro imediatamente provocou profundas controvérsias e debates, que a obrigaram a acrescentar, nas edições seguintes, um capítulo adicional, o pós-escrito. Em particular, provocou a animosidade de Gershom Scholem, que a acusou de não ter amor pelo povo de Israel.

Primeiro, é preciso um trabalho ideológico para convencer os funcionários, civis e militares, da transcendência da missão da qual o Estado está imbuído. Ela enfatiza:

O que afetava as cabeças desses homens que tinham se transformado em assassinos era simplesmente a ideia de que estavam envolvidos em algo histórico, grandioso, único – uma grande tarefa que só ocorre uma vez em dois mil anos – e que, portanto, deve mesmo ser difícil de aguentar. [Arendt, 1999, p. 121].

Ela rejeita a ideia tão disseminada de que os assassinos nazistas fossem psicopatas, sádicos sedentos de sangue: “Isso era importante, porque os assassinos não eram sádicos ou criminosos por natureza; ao contrário, foi feito um esforço sistemático para afastar todos aqueles que sentiam prazer físico com o que faziam” [Arendt, 1999, p. 121].

O fato é que pessoas “normais” podem ser levadas a concordar que a prática de atos criminosos seja justificável, ou um mal menor, diante da missão transcendental de “buscar um bem maior”, como a grandeza do povo alemão, ou de “evitar um mal maior”, como o niilismo, a corrupção e a decadência do povo alemão, resultantes do convívio com os judeus. Ao passo que pode ser trabalhoso manter sob controle um bando de psicopatas, evitar seus excessos pode consumir muita energia. “Os soldados […] não são assassinos”, diz ela, “e assassinos – aqueles dotados de ‘agressividade pessoal’ – provavelmente não são bons soldados”. [Arendt, 2020, p. 80].

Da mesma forma, defende ser possível promover o esvaziamento do conteúdo moral das ações concretas. As tarefas, por mais monstruosas, deviam ser encaradas como meras formalidades, como preencher um requerimento ou carimbar um documento. Como para milhares ou milhões de outros funcionários alemães, ela constata que o cotidiano de Eichmann girava em torno de sua carreira, suas possibilidades de promoção, o enfrentamento de conflitos com outros funcionários, com outros departamentos das máquinas estatal e partidária.

O que ela vê, então, em Eichmann? Um simples funcionário de carreira, um burocrata típico de qualquer grande organização burocrática. Diz ela, sugestivamente, que

Eichmann não era nenhum Iago, nenhum Macbeth, e nada estaria mais distante de sua mente do que a determinação de Ricardo III de “se provar um vilão”. A não ser por sua extraordinária aplicação em obter progressos pessoais, ele não tinha nenhuma motivação. [Arendt, 1999, p. 310].

Um quotidiano banal, em que cada despacho rotineiro significava transportar alguns milhares de judeus para um campo de extermínio, mas nem por isso menos corriqueiro, tendo em vista que já não se tratava de seres humanos, mas apenas de “números”.

Para descrever esse quadro, Hannah Arendt lapidou o conceito que utilizou como subtítulo de seu livro: A report on the Banality of Evil, Um relato sobre a banalidade do mal. Ela descobrira que os crimes mais monstruosos podem ser cometidos com plena banalidade. Para impor o mal absoluto, o mal radical, o poder totalitário banaliza a prática do mal. Prepara seus funcionários para cometer crimes hediondos como se se tratasse de mais um dia aborrecido.

“Desde que a totalidade da sociedade respeitável sucumbiu a Hitler de uma forma ou de outra”, ela diz, “as máximas morais que determinam o comportamento social e os mandamentos religiosos – ‘Não matarás!’ – que guiam a consciência virtualmente desapareceram” [Arendt, 1999, p. 318].

Essa reflexão se dirigia a uma das grandes controvérsias suscitadas por seu livro, a saber, a questão da natureza e da função do juízo humano. E é o grande alerta que devemos ter presente, por sua atualidade. O estado totalitário se faz portador de uma ideia transcendente, com o objetivo de suprimir a liberdade. Atomiza a sociedade civil para transformar o mundo em um campo de concentração, tornado palatável pela “sociedade do espetáculo”. Rebaixa a vida humana, antes revestida pela proteção da lei, em vida nua, vida matável. Compondo terror, ideologia, organização e sedução, cria uma burocracia cuja função é executar as tarefas que o Estado considera essenciais para sua missão histórica, sem limites éticos. Seja essa missão a criação do Reich milenar do povo alemão, seja a “reeducação” estalinista de todos os camponeses ricos para a constituição do Estado dos proletários.

O grande alerta é contra todos os Estados que reduzem seus habitantes a vidas matáveis, que promovem “limpezas étnicas” e “reassentamentos”. Alerta contra as ideologias que, em nome de uma “transcendência”, querem que abramos mão das noções mais simples de ética. Devemos nos precaver contra o discurso ideológico. Como Arendt observa, “Só podemos nos fiar nas palavras se estamos certos de que sua função é revelar e não esconder” [Arendt, 2020, p. 85]. Devemos ter presente, como ela resumiu, que “As soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários sob a forma de forte tentação que surgirá sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo digno do homem” [Arendt, 2012, p. 610]. O que podemos fazer? O que nos resta é trabalhar por uma sociedade livre, uma vez que, como assinalou,

Os homens podem ser “manipulados” por meio da coerção física, da tortura ou da fome, e suas opiniões podem formar-se arbitrariamente em função da informação deliberada e organizadamente falsa, mas não por meio de “persuasores ocultos”, tais como a televisão, a propaganda ou quaisquer outros meios psicológicos em uma sociedade livre [Arendt, 2020, p. 45].

Quero encerrar citando uma frase muito conhecida de Hannah Arendt: “Keiner hat das Recht zu gehorchen” – “Ninguém tem o direito de obedecer”! Para quem isso está sendo dito? A meu ver, para dois públicos: de um lado, para o Eichmann, o burocrata que alega “estar cumprindo ordens”. “Era o meu emprego, me mandavam fazer e eu fazia.” Não, a ordem desumana, a ordem criminosa, não pode ser obedecida. Você não tinha o direito de obedecer. Não há atenuante para a sua responsabilidade. Mas também a nós, ao povo, aos intelectuais, que muitas vezes nos acovardamos porque o risco é muito grande, nos resignamos achando que a situação é passageira. Não. O pensamento totalitário deve ser coibido em seu início, em suas primeiras manifestações. Nós não temos o direito de obedecer.

Referências

ARENDT, Hannah. Sobre a violência. 13.ed. Tradução André Duarte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. São Paulo: Companhias das Letras, 2012.

ARENDT, Hannah. Eichman em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

RICOEUR, Paul. O mal: um desafio à filosofia e à teologia. Tradução Maria da Piedade Eça de Almeida. Campinas: Papirus, 1988.

Sobre o autor

Saul Kirschbaum

Doutor em Letras pelo Programa de pós-graduação em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas da FFLCH/USP e pós-doutor pela UNICAMP. Pesquisador do Grupo de Judaísmo Contemporâneo, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo /PUC-SP – LABÔ.