Resenha
Pensar sem corrimão: compreender 1952-1975
Livro organizado por Jerome Kohn
Tradução Beatriz Andreiuolo, Daniela Cerdeira, Virginia Starling e Pedro Duarte
Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021
A frase escolhida para o título dessa coletânea de textos de Hannah Arendt foi dita por ela mesma, em um evento sobre sua obra na Universidade de Toronto, em 1972. O trecho em que aparece a frase é usado como epígrafe. Na ocasião, Arendt foi questionada sobre vários temas por professores e interlocutores, entre os quais, amigos como Mary McCarthy, Richard J. Bernstein e Hans Jonas, que não deixaram de tocar em questões difíceis. A transcrição de partes desse evento está no livro, que reúne material selecionado em pouco mais de duas décadas, de 1953 a 1975, ano do falecimento da autora. O volume forma par com outra coletânea de textos produzidos entre 1930-1954, intitulada Compreender: Formação, exílio e totalitarismo, publicada aqui no Brasil em 2008 (edição esgotada), pela Companhia das Letras e editora da UFMG. A seleção para os dois volumes foi feita pelo incansável Jerome Kohn, responsável pela administração da obra de Hannah Arendt e que organizou, além desses livros citados, Responsabilidade e Julgamento e Escritos Judaicos.
Pensar sem corrimão reúne mais de quarenta textos muito heterogêneos: da transcrição de evento a cursos, palestras, resenhas, cartas, homenagens, discursos em premiações e entrevista. Cobrem um período intenso a partir da repercussão de Origens do Totalitarismo, lançado em 1951. Os primeiros textos são de um curso ministrado sobre Karl Marx, em Princeton. Arendt havia retornado ao estudo da obra de Marx, para esclarecer sua ligação com o surgimento do totalitarismo stalinista. Há textos mais diretamente dedicados a conceitos políticos, como “Estado-nação e democracia” e “A Revolução Húngara e imperialismo totalitário”, este destacado por Heloísa Starling, na revista Quatro Cinco Um. Há análises da política norte-americana, como em “Reflexões sobre as convenções nacionais de 1960: Kennedy x Nixon”, “Kennedy e depois”, “Os Estados Unidos são, por natureza, uma sociedade violenta?” e “Crimes de guerra e a consciência americana”. É só ler com alguma atenção para perceber que Arendt não teve políticos ou ideologias de estimação, ao contrário do que dizem alguns de seus críticos raivosos.
Encontramos nesses materiais diversos – e esse é seu grande interesse tanto para pesquisadores como para aqueles que verdadeiramente querem entender a autora – a formulação e reformulação paulatina e criteriosa, sempre em conexão com os fatos, de pensamentos e juízos apresentados mais detidamente em suas obras, especialmente em A condição humana, de 1958 – ao qual estão ligados “Trabalho, fabricação, ação”, “O ponto arquimediano” e “Sobre a condição humana” – e em A vida do espírito, póstuma, de 1978 – em “Imaginação”, de um curso de 1970, publicado em Lições sobre a filosofia política de Kant, e “Considerações preliminares sobre A vida do espírito”. Também encontramos exercícios para a escrita de Entre o passado e o futuro e Sobre a Revolução.
A variedade de textos oferece a chance de conhecer mais detalhes e intenções que encontram oportunidade de vir à luz. Em 1972, no citado evento em Toronto, Arendt se sentiu à vontade para revelar o que tentou fazer ao longo de seu percurso intelectual: tentou pensar sem corrimão, sem apoios, ou seja, ela se colocou sempre numa posição arriscada, porque no contexto inseguro da moral colapsada e a partir de uma independência teimosa, ou melhor, destemida. Essa reunião de produções tão diversificadas também ajuda a esclarecer o percurso comprometido e coerente de uma pensadora que quis compreender seu tempo, por mais desafiador e doloroso que pudesse ser. Infelizmente, vivemos numa época também difícil, pela persistência de tendências totalitárias escancaradas no contexto da pandemia. Compreender, na letra de Arendt, é esforçar-se para enxergar a realidade sem a névoa das mentiras e dos autoenganos. Mas para isso é preciso parar. E alguns de nós paramos, de certo modo, fisicamente, protegidos em nossas casas. Mas parar para pensar sobre nossa condição, sobre como usamos nosso conhecimento científico, como avaliamos os discursos e ações dos políticos, e como agimos efetivamente todos os dias para fomentar essa compreensão, é mais desafiador. Essa publicação é também oportuna porque ilumina, nesse cenário perverso em que nos encontramos, a atuação do intelectual, que deve manter sua imparcialidade, confiar em sua independência como uma luz a arder na noite escura, um alerta que Arendt personifica. Hoje, no Brasil, quem tem medo da lucidez e da independência de Hannah Arendt?
Imagem: divulgação