Sala Hannah Arendt

Pensar sobre o que estamos fazendo

Artigo gentilmente cedido para publicação pelo
Hannah Arendt Center for Politics and Humanities do BARD COLLEGE

Tradução: Adriana Novaes | Revisão: Flávia Sarinho | © LABÔ
Texto original publicado em HAC/BARD
Agradecemos a Thabata Caruzo e Sharmila Souza pela ajuda na tradução de alguns termos técnicos

O livro A condição humana, de Hannah Arendt, não é sobre a natureza humana. Arendt fala pouco ou quase nada sobre o que significa ser humano no sentido de nossa humanidade natural. Sua investigação tem a premissa no fato de que nós, seres humanos, somos seres condicionados, que nascemos em um mundo já existente. Que o mundo é feito pelo artifício humano; isso também nos condiciona na medida em que nós devemos viver e morrer em um mundo humanamente construído. A condição humana é uma resposta para o insight de que o mundo humano no qual nascemos está sendo transformado tão fundamentalmente pela ciência e pela tecnologia que o que significa ser humano está mudando também.

Um aspecto da condição humana que define a humanidade por tanto tempo quanto nós existimos é que estamos à mercê da natureza, do destino e da sorte. Humanos têm construído e reconstruído o mundo por milênios, mas nossa capacidade de submeter o mundo a nossas vontades sempre foi limitada. Somos o que Arendt chama de seres terrestres, pelo que Arendt quer dizer que estamos sujeitos a forças e destinos além de nosso controle. E ainda, com o surgimento da ciência moderna e das tecnologias modernas, é cada vez mais possível, pela clonagem e manipulação genética de seres humanos, assim como por manipulação molecular de matéria inerte, que sejamos capazes de nos libertar do mundo dado pelo destino e trocar isso por algo que nós mesmos façamos. Pela engenharia genética, nós podemos realmente conseguir criar vida – a dádiva dos deuses – algo que criamos e controlamos. Ao fazer isso, cortaríamos “o último laço com o qual até o homem se reconhece entre as crianças da natureza.” E se fôssemos construir uma nova civilização em um novo planeta artificial criado pelo ser humano, no qual toda matéria e toda vida seriam parte de um design humano, como seres, podemos ainda ser humanos, mas teremos certamente transformado nossa condição humana. O livro de Arendt é um esforço não para se opor ou aplaudir tais avanços tecnológicos, mas para, como ela escreve, “pensar sobre o que estamos fazendo”.

Esta advertência para pensar sobre o que estamos fazendo vem à mente quando lemos as considerações de Natalie de Souza sobre a nova tecnologia de edição genética CRISPR. Souza escreve:

Apesar dos cientistas usarem tesouras moleculares naturais para cortar DNA desde os anos 1970 – essas ferramentas estão na fundação da biologia moderna – as tesouras CRISPR são vastamente mais flexíveis e fazem com que seja muito mais fácil atingir qualquer sequência específica de DNA. A tecnologia ainda está sendo desenvolvida e atualmente o termo ‘CRISPR’ se refere, grosso modo, a formas ligeiramente diferentes de se editar o DNA por cortes, inserções e reinserções. Juntas, elas se somam em uma maneira relativamente fácil e precisa de, deliberadamente, fazer uma mudança em qualquer genoma, incluindo o de um ser humano.

 “Deliberadamente” é uma palavra importante aqui. Nós não apenas moldamos indiretamente um genoma humano de acordo com nossa escolha, nós também o afetamos por outras atividades comuns. Todo grande avanço médico – antibióticos, vacinas, cirurgias e técnicas obstétricas – influencia quem vive e quem não vive para reproduzir e, indiretamente, altera o genoma. Certamente, guerras, pandemias e educação fazem isso também. O que é radicalmente novo é que nós começamos a ter a opção de mudar o genoma humano deliberadamente. Para o bem ou para o mal, nossa espécie pode voltar sua inexorável vontade de controlar a natureza para si mesma. Eventualmente, poderíamos guiar a evolução humana. Isso significa que devemos?

Voltar para a Sala Hannah Arendt

Sobre o autor

Roger Berkowitz

Diretor Acadêmico do Hannah Arendt Center for Politics and Humanities da Bard College e também professor de Política, Filosofia e Direitos Humanos da mesma instituição.