O Vazio Existencial na Contemporaneidade

Em busca do agir na contingência da vida

ou como lidar com o impacto de que não estamos em direção a um “novo normal”


Diante das condições, limitações, lutos, imprevistos e de tudo o que tem se apresentado desde que a pandemia invadiu nossas vidas, como temos reagido? Agir na contingência da vida tem a ver com encarar as dificuldades e frustrações que se impõem, porém não se trata de qualquer tarefação, agir por agir, ou apenas para se distrair. Entre a reação instintiva e a ação com sentido, há uma tensão extrema que tem impacto em nossa saúde mental nestes tempos.

O enfrentamento do vírus acionou nosso sistema interno de segurança e impôs a revisão de rotinas básicas, desde higiene pessoal às de convivência. Instintivamente, ativamos nosso modo de luta-fuga diante de um inimigo invisível por muito tempo seguido; individualmente, o impacto do excesso de tensão diante da complexidade de questões que a pandemia trouxe já nos levou do espectro do medo e isolamento à raiva, à tentativa de fazer concessões para satisfazer as faltas, ao negacionismo, à desesperança total e sensação de falta de sentido. Já passou por algumas dessas fases por aí? São todas fases de luto, ou seja, de como lidamos com perdas.

A vacinação tem sido o lugar onde vimos depositando esperanças. Não à toa nos emocionamos e celebramos (e precisamos mesmo celebrar) cada pessoa que nos conta que recebeu sua dose e quando chega nosso dia de ida ao posto de saúde. Com a sensação de alívio, chega também uma inquietação: e agora?

Pois é, estamos longe do último estágio do luto: a aceitação. Aceitar que o “novo normal” não é uma reedição de como vivíamos antes da pandemia tem sido motivo de angústia para muitas pessoas. Aqui não venho trazer dicas de como abreviar o tempo da aceitação, porque simplesmente não adiantaria. Vivemos isso juntos, coletivamente, mas também enfrentamos, cada um, nossas questões. O que acredito que possa ser produtivo para você, que me lê e está em busca de agir na contingência da vida, é trazer aqui um pouco do que tenho observado e vivenciado nestes tempos, como psicólogo, e também a experiência de Viktor Frankl sobre questões que são silenciadas (até pela nossa voz interna), ligadas à sensação de vazio e estagnação que muitos de nós experienciamos.

No consultório, os casos, as queixas nesse sentido são relatadas, muitas vezes, como receio de sair de casa e retomar atividades de rotina, como ir à escola ou ao trabalho (síndrome da gaiola), como uma ansiedade paralisante diante de um futuro incerto, ou até como culpa pela falta de motivação, concentração e queda de produtividade. O luto por pessoas queridas também é um fator de sofrimento muito frequente, porém, a questão de se ver sem perspectiva futura, de não saber o que fazer no e a partir do estado atual ainda é o que ouço com mais peso emocional. Um peso em relação a um vazio.

O psiquiatra austríaco que sobreviveu ao holocausto nomeia essa sensação como vazio existencial em seu conhecido Em busca de sentido (1946). Para ele, o excesso de tensão sem a percepção de um sentido conduz a esse sentimento. Sabe aquela fase em que ficamos profundamente entediados com tudo e todos e nos questionamos: “afinal, para que tudo isso?” – é aí que mora o vazio. No livro, Frankl aponta essa sensação como algo recorrente no século XX, em virtude de dois fatores culturais principais: o primeiro está ligado à valorização da cognição em detrimento de nossos instintos animais básicos – como os humanos foram se vendo, ao longo dos séculos, separados da natureza, a ponto de explorá-la ao extremo, acabamos adormecendo esses instintos; já o segundo fator está ligado à queda das tradições, que antes eram modelo para nosso comportamento. Sem algo externo ditando o que devemos ou não fazer, caímos em duas armadilhas: a do conformismo (quando desejamos irrefletidamente o que a maioria faz ou quer) e a do totalitarismo (quando nos colocamos na posição de servos que só fazem o que outras pessoas mandam).

O século XXI veio somar mais um fator a esta equação de vazio existencial da era do individualismo: o definhamento. Esse conceito, analisado pelo sociólogo e psicólogo norte-americano Corey Keyes no início dos anos 2000, observa o espectro de emocionalidades e psiquismos que estão entre a depressão e o auge do bem-estar, as polaridades da saúde mental. Trata-se de um estado que contempla a falta de motivação, de desejo, de concentração, que nos conduzem à languidez – daí o fato de definhamento ser colocado como oposto ao estado de florescimento, que será aprofundado pela linha da Psicologia Positiva, com o estudo de Martin Seligman (2011) sobre o que compõe esse estado de satisfação, a saber: emoções positivas, engajamento, relacionamentos, significado, realização.

Atualmente, a sensação de vazio emerge de um estado de tédio diante da falta de sentido, tanto daquela dada por um outro – já que estamos desprovidos de referências e modelos e desconfiados das instituições – quanto da falta de sentido própria – uma vez que estamos com dificuldades de vislumbrar o que virá, com falta de perspectiva futura em múltiplas instâncias e escala global. Neste cenário, reconhecer-se saudável mentalmente é realmente um privilégio para pouquíssimos. Saúde mental, nas palavras de Frankl:

[…] está baseada em certo grau de tensão, tensão entre aquilo que já se alcançou e aquilo que ainda se deveria alcançar, ou o hiato entre o que se é e o que se deveria vir a ser. […] O que o ser humano realmente precisa não é um estado livre de tensões, mas antes a busca e a luta por um objetivo que valha a pena, uma tarefa escolhida livremente” (FRANKL, 2018, pp. 129-130, grifo nosso)

Este certo grau de tensão que Frankl defende é o que move cada indivíduo a buscar sentido na vida. A vida, para ele, pede um certo grau de tensão, nem a ausência e nem o excesso, mas uma tensão produtiva, importante para a saúde mental. Afinal, existe uma saída para essa sensação de morosidade e abatimento? Concordo com Frankl que sim: pelo agir. O autor testemunhou nos campos de concentração que as pessoas que tinham uma tarefa que as esperava sobreviviam mais. A essa tensão ele deu o nome de noodinâmica, que é definida como uma “[…] dinâmica existencial num campo polarizado de tensão, onde um polo está representado por um sentido a ser realizado e o outro polo, pela pessoa que deve realizá-lo” (FRANKL, 2018, p. 130). Acredito que acessar nossa noodinâmica individual e coletiva é o caminho para o bem-estar mental e seguir agindo com sentido.

Num polo, o sentido, no outro, quem realiza e se move em sua direção. A tensão pode ficar frouxa quando perdemos a percepção de um desses polos, ou seja, quando não nos vemos mais ou quando não vemos um sentido – aqui é terra fértil para definharmos até o buraco mais fundo do vazio existencial. O extremo oposto, quando a tensão estira demais, pode levar ao esgotamento, não só mental e emocional como físico – é o que acontece nos casos de burnout, esgotamento geral que leva àquele mesmo vale da sensação de vazio. No Brasil, pesquisas da ISMA (International Stress Management Association) já apontavam, em 2019, que mais de 70% dos profissionais brasileiros sofriam com sequela de estresse, mais de 30% de burnout e 90% continuavam trabalhando mesmo com a síndrome (ANAMT, 2009).

Não é à toa que a síndrome de burnout está para entrar na edição de 2022 da Classificação Internacional de Doenças da OMS, como doença associada ao estresse crônico no trabalho. Com a pandemia, as estatísticas aumentaram muito, especialmente entre trabalhadores essenciais no enfrentamento do vírus (ICICT/FIOCRUZ, 2020), professores e trabalhadores no modelo remoto.

Recentemente, o mundo testemunhou os efeitos do excesso de tensão no trabalho. A ginasta norte-americana Simone Biles optou por preservar sua saúde mental em vez de disputar uma final na competição das Olimpíadas. Com coragem, ela deu voz a tantos atletas que sofrem com a cobrança por excelência no desempenho.

A pandemia retirou os véus positivos que muitos ainda colocavam na produtividade e alta performance. Agir na contingência da vida não se trata nem de ativar modo sobrevivência, nem de excesso de produtividade. É sobre buscar um objetivo que valha a pena no contexto atual, uma tarefa que possa ser escolhida livremente, inclusive o não fazer nada.

Precisamos aprender (ou reaprender) a usufruir dos tempos de descanso, encontrar motivação no que está ao nosso alcance, no dia a dia – o que Frankl nomeia como “compreender o valioso da vida”. Para ele, são os valores de criação, de vivência e de atitude que nutrem o sentido na vida. Nutrir pequenas alegrias, lembrando que isso não significa apenas se distrair, e sim se implicar em cada ação e não ação. Resgatar a confiança nas relações, especialmente nas instituições dedicadas à pesquisa e ciência, assumir a responsabilidade pelo que compartilhamos e pela conservação da vida (hoje tão marcada pelas atitudes de usar máscara e tomar a vacina).

Assumir compromisso com nosso amadurecimento, sem excesso de autocentramento, também é um caminho de sentido fértil, pois transcende a nós mesmos e passamos a enxergar tanto o próximo que está do nosso lado quanto o que não vemos e que também é afetado pelas nossas escolhas.

Agir na contingência da vida pede esse nível de entrega ao viver, individual e coletivo. Que possamos fazer dos desafios as pérolas do novo tempo, que vamos aprender a viver juntos.

Um corpo estranho penetra na concha, / ferindo-a. / A areia áspera / machuca sua carne. / A concha sofre. / A concha tenta expelir / o intruso / e fracassa. / O grão de areia fixou-se. / A dor não pode ser eliminada. / Então o animal, a partir do âmago / da sua natureza, / busca a força / para transformar o sofrimento em triunfo. / Do sofrimento e da aflição, / da seiva de suas lágrimas, / surge, / em longos processos / de crescimento interior, / a pérola. (Lukas; Eberle, 1993)

Referências bibliográficas

ANAMT – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE MEDICINA DO TRABALHO. O que é a síndrome de burnout, que entrou na lista de doenças da OMS. 4 nov 2019. Disponível em : <https://www.anamt.org.br/portal/2019/11/04/o-que-e-a-sindrome-de-burnout-que-entrou-na-lista-de-doencas-da-oms/> Acesso em 2 ago 2021.

FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Trad. Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline. 42 ed. Petrópolis: Vozes, 2017.

GRANT, Adam. Há um nome para isso que você está sentindo durante a pandemia: chama-se definhamento. The New York Times, 12 mai 2021. Trad. Romina Cácia. Acesso em jun 2021.

ICICT/FIOCRUZ – INSTITUTO DE COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA EM SAÚDE. Pesquisa analisa o impacto da pandemia na saúde mental de trabalhadores essenciais. 29 out 2020. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/pesquisa-analisa-o-impacto-da-pandemia-na-saude-mental-de-trabalhadores-essenciais> Acesso em 2 ago 2021.

LUKAS, Elisabeth; EBERLE, Michael. Tudo tem seu sentido: reflexões logoterapêuticas. Petrópolis: Vozes, 1993.

ROCHA, Lucas. Saúde mental: como a pressão psicológica pode prejudicar o desempenho de atletas. CNN Brasil, 28 jul 2021. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/esporte/2021/07/28/saude-mental-como-a-pressao-psicologica-pode-prejudicar-o-desempenho-de-atletas> Acesso em 2 ago 2021.

Imagem: Heraldo Galan

Sobre o autor

Francisco Carlos Gomes

Psicólogo Clínico e Logoterapeuta. Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Fundador e diretor clínico do Núcleo de Logoterapia AgirTrês. Coordenador do grupo de pesquisa "O vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ