Ao chegar à América, Viktor Frankl foi recebido pelo maior símbolo de autonomia americana, que recepciona todos os imigrantes que buscam viver e prosperar nos Estados Unidos: a estátua da liberdade. Chegou, não para viver, mas para ministrar aulas – ainda que anos antes, em 1942, tenha conseguido um visto americano, o que poderia ter sido seu passaporte para a liberdade e fuga da perseguição nazista na Áustria. Depois daquela viagem e da mencionada recepção, comenta em seus livros que: assim como a costa Leste dos Estados Unidos exibia com orgulho a estátua da Liberdade, a costa Oeste deveria erigir outra estátua, a da Responsabilidade.
O personagem de nossa história não trouxe consigo apenas roupas em sua bagagem, mas uma forma diferente de pensar – denominada Logoterapia –, que se baseia na liberdade humana associada à responsabilidade. Na desassociação entre as duas tem-se arbitrariedade, na pior acepção desta palavra.
Seus conceitos, somados à autotranscedência, auxiliam a responder de forma ética e resiliente a questões tão prementes hoje, um período pandêmico mundial, como fechamento de comercio e templos religiosos, necessidade de se evitar aglomerações, entre outras.
É importante destacar que as constatações sobre o autor em lume neste artigo não estão associadas a discussões jurídicas. Apenas restritas a questões éticas baseadas na Logoterapia de Viktor Frankl.
Liberdade e ética
Ivo Pereira analisa que, na Logoterapia e análise-existencial, abordagem terapêutica criada por Frankl, além da dimensão terapêutica, também há uma camada ético-filosófica (PEREIRA, 2013, p. 107). Se o homem não é livre, não pode ser responsável pelos seus atos – nem pelas consequências de seus atos “livres”, nem pelo que sofre na vida – sendo, assim, um sujeito passivo.
Se assim fosse, seríamos o mais miserável dos seres criados. Mas Frankl reconhece no homem algo mais do que um ser condicionado. A dimensão ontológica do ser humano, segundo o criador da terceira escola psicológica de Viena, o vê livre e responsável, já que ele é também um ser espiritual.
Na antropologia proposta por Frankl, homem é um ser psico-físico-espiritual. Podemos estar condicionados por algumas situações: nascemos em determinado lugar, em determinada família, em determinada época – coisas sobre as quais não tivemos poder de escolha; podemos estar condicionados por alguma patologia que afeta nossa condição motora, doenças para as quais ainda não há tratamento etc. Mas o que condiciona o psicofísico não condiciona o espiritual, que Frankl nomeia como noético. A dimensão noética do homem é sua consciência e, nessa camada noética/espiritual, o homem tem aquela liberdade de refletir e agir. Segundo afirma Jean Paul Sartre, “Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você”. Nas palavras de Frankl: “o psicofísico só condiciona o espírito humano, não o determinando nem o realizando” (FRANKL, 2019a, p. 209). Diante disso, analisa que, como ser consciente, é o homem espiritual quem decide, quem escolhe e quem determina. Mesmo quando abre mão de escolher, tomou uma decisão a esse respeito. Pois “à capacidade do homem de estar acima das coisas pertence também a possibilidade que ele tem de estar acima de si próprio” (FRANKL, 2019a, p. 212).
Sartre pode não concordar com alguns conceitos franklianos, mas os dois convergem no que se refere à liberdade do homem. Veja o que Sartre diz: “Com efeito, se a existência precede a essência, nada poderá jamais ser explicado por referência a uma natureza humana dada e definitiva; ou seja, não existe determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade.” (SARTRE, 2014, p. 18).
Viktor Frankl afirma, ainda, que o homem não está escravizado nem pelos instintos: “O homem tem instintos […] não negamos, de modo nenhum, os instintos do homem; o que se nega é a instintividade do homem. O que negamos é que o homem seja movido pelos instintos” (FRANKL, 2019a, p. 209). No contexto, ele nos diferencia dos animais, que são basicamente instintivos.
Todavia, o homem noético pode decidir contra sua vontade ou impulsos, analisando situações, consequências, prós e contras, para enfim fazer uma escolha cujas consequências sejam mais favoráveis. Uma escolha consciente visa a um fim que faça sentido.
Segundo Ivo Pereira, para Viktor Frankl toda responsabilidade é responsabilidade perante um sentido (PEREIRA, 2013, p. 140). O sentido, aquilo que traz significado à vida, pode estar ligado a uma causa, algo ou alguém. Esse é o vínculo ético da Logoterapia, que não deixa de ser também social.
Ao julgar seu significado existencial, o homem também descobre sua liberdade diante de um universo de possibilidades. Assim, evoca que tal liberdade é “liberdade para”, o que o leva também a descobrir que deve ser responsável. Decidir e usar a liberdade implica assumir a responsabilidade pelas consequências dos atos. “Sem dúvida, o homem é livre; mas isto não significa que esteja flutuando, por assim dizer, num espaço sem ar, pois, ao contrário, acha-se envolvido por uma série de vínculos” (FRANKL, 2019b, p. 158), diz Frankl, em Psicoterapia e sentido da vida. E acrescenta que “liberdade é, essencialmente, liberdade perante alguma coisa; ‘liberdade de’ alguma coisa, e ‘liberdade para’ alguma coisa (pois também, na medida em que eu não me deixo determinar por instintos, mas por valores, tenho a liberdade de dizer não” (FRANKL, 2019a, p. 210), conforme conclui em O sofrimento humano.
Responsabilidade individual e sociedade
Como prisioneiro de campos de concentração nazistas, Frankl nunca acusou a sociedade ou grupos pelas atrocidades do Holocausto, pois acredita que, mesmo diante de uma necropolítica nazista, cada indivíduo tinha a liberdade de decidir se aderia ou não àquela política. Como relata em seus livros, seu chefe no hospital escolheu poupar a vida de alguns judeus.
Assim, Frankl reconhece que cada um tem diante de si a opção de seguir ou não um comando externo, “O homem, como ser espiritual, não só se encontra colocado em face do mundo – interior e exterior –, mas também toma posição em relação a ele; pode, de qualquer modo, sempre tomar posição” (FRANKL, 2019a, p. 209).
Até sobre o caráter, Frankl afirma que o homem pode se insurgir, “a disposição de caráter não é, por conseguinte, em caso algum, decisiva; ao contrário, decisiva, em último lugar, é sempre a tomada de posição da pessoa. Em última instancia decide, portanto, a pessoa (espiritual) sobre o caráter (psíquico)” (FRANKL, 2019a, p. 214). Em outro lugar, ele exemplifica assim: “certamente não sou responsável por ter um cabelo um tanto escuro e não louro; mas não serei responsável por não procurar um cabelereiro para pintar o cabelo? (FRANKL, 2019a, p. 229).
Dessa forma, diante de toda a sua existência, o homem, como tal, sempre está sob a carga da responsabilidade, “a responsabilidade jamais cessa” (FRANKL, 2019a, p. 230), sendo ele um ser noético, que goza de sua liberdade. Liberdade, mesmo diante das contingências da vida, como a pandemia.
Não controlamos contingências como essa, não queríamos que ela estivesse aí, mas o homem é responsável pela forma como se posiciona. Que escolhas fará? Se vai gozar de sua liberdade individual em detrimento do outro ou se, responsável e pautado por valores societários, decidirá pela preservação alheia? Veja o que Sartre aconselha: “Escolher ser isto ou aquilo é afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos, porque nunca podemos escolher o mal, o que escolhemos é sempre o bem, e nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos.” (SARTRE, 2014, p. 12). Faz sentido essa posição de Sartre, não só por defender sua filosofia, mas pelo contexto. A série de palestras O existencialismo é um humanismo foi proferida em 1945, um ano após Paris ser libertada das forças nazistas. Os franceses agora gozavam de suas liberdades, mas liberdade de que e para quê?
O existencialista, também autor do livro O Ser e o Nada, quando diz que “nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos”, quer dizer que, ao escolhermos algo, devemos refletir sobre as condições de existência nas quais estamos inseridos. Em uma sociedade há algo de orgânico, o que afeta um tem potencial de afetar outros. O que é bom para todos será bom para os indivíduos em particular. Daí a sua responsabilidade diante da sociedade, indo ao encontro da tese de Frankl.
Somos filhos de nosso tempo? Somos o resultado da cultura? Veja o que afirma Frankl: “O ser humano, efetivamente, é mais do que o simples produto de uns processos de aprendizagem condicionantes. É mais do que o resultado da interação entre ambiente e carga genética, mais do que o produto de umas relações de produção” (FRANKL, 2016, p. 39). Logo, como o caso do personagem bíblico José do Egito – “Deus transformou o mal que fizeste contra mim em bem” (Gênesis cap. 50 verso 20) –, podemos e devemos ser responsáveis por transformar o que a sociedade fez de nós em algo que rume para um sentido, pautado nos valores.
Outro conceito, que se soma ao já exposto, nos fornece uma equação essencial para uma tomada de posição e autorrealização diante da pandemia e possível resposta às perguntas acima, o conceito de autotranscedência.
Transcendência e vida
A capacidade do homem de usar sua liberdade com responsabilidade, como vinculado a uma sociedade, está na sua faculdade de autotranscedência. “Esta autotranscedência do existir humano consiste no fato essencial de o homem sempre ‘apontar’ para além de si próprio, na direção de alguma causa a que serve ou de alguma pessoa a quem ama” (FRANKL, 2016, p. 24).
Em tempos de pandemia, ocasionada por um vírus altamente contagioso, liberdade, responsabilidade e autotranscedência envolvem “ultrapassar-se, esquecer-se de si próprio, dedicar-se com um autoesquecimento positivo a uma tarefa ou a uma pessoa” (FRANKL, 2016, p. 25). Protegendo os seus, evitando a proliferação do vírus e colaborando para minimizar ou diminuir os impactos da pandemia, o homem realiza valores e encontra sentido. Para a Logoterapia, “o valor é necessariamente transcendente” (FRANKL, 2019b, p. 102) Aquele que, segundo Frankl, realiza valores criativos busca deixar algo no mundo, que beneficie outros, e encontra sentido nisso.
Ao mesmo tempo, se protege e se realiza, pois se mostra o ser responsável, humano, superando os instintos e condicionamentos. Frankl acredita que “somente na medida em que o ser humano se autotranscende que lhe é possível realizar-se – tornar-se real – a si próprio” (FRANKL, 2016, p. 25). Tornar-se real é assumir sua “liberdade para” algo além de si mesmo, para algo que denote seus valores e vida cheia de sentido.
Reconhece que a vida deve ser vivida intensamente, uma vez que ela tem fim e somente somos responsáveis pelo que fazemos na extensão dela. O que Frankl diz, “a existência humana é um ser-responsável em vista da sua finitude” (FRANKL, 2019b, p. 157), soa como um carpe diem. Sim, aproveitar a vida, com liberdade e responsabilidade, autotranscendendo.
Não temos no Brasil uma Estátua da Liberdade – tampouco temos uma da Responsabilidade, como sugeriu Frankl aos Estados Unidos –, mas temos a do Cristo Redentor. Este que, de braços abertos, acolhe a todos residentes e viajantes, representa aquele que, segundo a tradição cristã, deu sua vida por amor ao próximo. Representa alguém que, usando se sua liberdade, autotranscendeu em prol dos outros. Nada mais singular para caracterizar a ética antropológica da Logoterapia.
Referências Bibliográficas
PEREIRA, Ivo Studart. A ética do sentido da vida: fundamentos filosóficos da Logoterapia. Aparecida, SP: Idéias e Letras, 2013.
FRANKL, Viktor. O sofrimento humano: fundamentos antropológicos da psicoterapia. São Paulo: É-Realizações, 2019.
_________. Psicoterapia e sentido da vida: fundamentos da logoterapia e análise existencial, 7ª ed. São Paulo: Quadrante, 2019.
_________. Sede de sentido, 5ª ed. São Paulo: Quadrante, 2016.
SARTRE, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo, 4ª ed. Petrópolis, Vozes, 2014.
Imagem: Cristo Redentor – Rio de Janeiro, 2012 (Vani Ribeiro/Wikimedia Commons)