Cultura do Consumo, Sociedade e Tendências

A esquerda e a direita são irrelevantes: a máquina é imparável

Na construção da modernidade – enquanto superação da imobilidade dos valores absolutos rumo ao desencantamento do mundo propiciados pelos avanços tecnológicos de produção e pela razão cientificista –, o ser humano tomou o lugar de Deus, as teleologias humanistas creditaram ao homem a potencialidade de transformação da realidade (HARARI, 2015, p. 277). Assim como na Grécia antiga, a racionalidade apareceu nesse cenário como uma forma de emancipação da humanidade diante das trevas da ignorância e da superstição. A liberdade e a prática científica se mesclam. O domínio instrumental da natureza representava o triunfo concreto diante do mundo físico e místico (DURANT, 1996, p. 130).

Mesmo que a ciência e a racionalidade já tenham dado provas de suas potencialidades para a construção de horrores até então inimagináveis ao longo do século XX, nos dias de hoje, a crença em utopias ou em progressos se mantém sobre as mesmas bases, os embates políticos entre a esquerda e a direita no ambiente democrático parecem reavivar tal esperança nos períodos eleitorais e os indivíduos têm a sensação de realmente poderem transformar a sociedade e suas estruturas a partir do voto.

A percepção da ausência de transformações significativas, ou a sua morosidade geram mal-estar diante do regime lento e caro da democracia, impulsionando movimentos antidemocráticos – mas igualmente humanistas (por mais que se travistam de religiosos) –, sem perceberem as reais estruturas que condicionam a sociedade a funcionar do modo como funciona. Uma dessas estruturas se dá no autoritarismo do esclarecimento no seu processo positivista, como Adorno e Horkheimer defendem.

A dupla de pensadores judeus alemães escreveu, em 1944, o celebre Dialética do Esclarecimento. Obra herdeira do marxismo, inicia sua crítica a partir do estabelecimento de uma relação conflitiva entre a natureza e o humano, mediado pela racionalidade que tenta organizar o caos em cosmos. Os primeiros mitos já são uma expressão do esclarecimento enquanto instrumento organizador do mundo (HORKHEIMER e ADORNO, 2014, p. 20), tomando a própria linguagem pela coisa representada. Os ritos mágicos já expressavam a essência do autoritarismo esclarecido:

O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los. O homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las. É assim que seu em-si torna para-ele. Nessa metamorfose, a essência das coisas revela-se como sempre a mesma, como substrato da dominação. Essa identidade constitui a unidade da natureza. (Ibid. p. 21)

Mesmo com a superação do mito pela ciência e a racionalidade crítica filosófica, o autoritarismo do esclarecimento se mantém, pois ele faz parte da essência desta faculdade humana. Ao mesmo tempo que ele emancipa e nos faz progredir diante de situações adversas, também aprisiona no seu aspecto tautológico de reiteração de si mesma. A coisa em si kantiana é o reconhecimento da impossibilidade da razão de penetrar no ser “porque repete tão somente o que a razão já colocou no objeto.” (Ibid. p. 37). Se a ciência é tão alienante e emancipadora quanto a magia, isso significa que o princípio iluminista que fundamenta ambas é dialético, por carregar uma contradição interna que se define a partir se sua própria negação.

Esta reflexão a respeito do iluminismo evolui para um diagnostico que explicaria os horrores contemporâneos aos autores, colocando o extermínio em massa, as guerras mundiais, o empobrecimento do espírito e o controle absoluto do mundo administrado como o produto último do progresso positivista imparável, pois ele fundamenta o comportamento social por forjar suas relações materiais com o mundo e no interior da própria sociedade. Portanto um processo de retroalimentação que impossibilita sua superação. Processo que continuou seu desenvolvimento motorizado no século XX, em regimes políticos de diversas matizes, mesmo que as ficções do imaginário tenham moldado até certo grau o uso científico, seu autoritarismo tautológico e autista seguiu inabalado.

Em vista disso, as posições ideológicas políticas surgidas no cenário moderno não têm a pretensão (e por vezes a consciência) de construir uma crítica verdadeira ao positivismo. Podem estar em pauta questões ligadas aos costumes, desenvolvimento econômico, problemas sociais, etc., mas o desenvolvimento científico nunca – os males decorrentes das ciências sempre são relativizados em comparação com os seus ganhos. Nesse sentido, a esquerda e a direita são reduzidas a um mero verniz de tinta que colore o edifício monumental e inabalável do autoritarismo advindo do esclarecimento.

A dominação da subjetividade acontece de modo mais intenso a partir da construção da indústria cultural, uma instituição de poder que instrumentaliza a linguagem visando a manutenção do status quo e a alienação das potencialidades críticas dos indivíduos. A linguagem não tem mais a utilidade de expressão e reflexão diante dos fatos, ela é reduzida a um uso vazio e mágico para com a mercadoria:

A cegueira e o mutismo dos fatos a que o positivismo reduziu o mundo estendem-se à própria linguagem, que se limita ao registro desses dados. Assim, as próprias designações se tornam impenetráveis, elas adquirem uma contundência, uma força de adesão e repulsão que assimila a seu extremo oposto, as fórmulas de encantamento mágico. Elas voltam a operar como uma espécie manipulações, seja para compor o nome da diva no estúdio com base na experiência estatística, seja para lançar o anátema sobre o governo voltado para o bem-estar social recorrendo a nomes tabus como “burocratas” e “intelectuais”, seja acobertado a infâmia com o nome da Pátria. (Ibid. p. 163)

À vista disso a crítica reflexiva se faz mais urgente do que nunca, pois a face emancipadora do esclarecimento se vê completamente eclipsada pela indústria cultural em suas variadas formas (como boa parte do que e como os conteúdos circulam nas redes sociais). A função da reflexão, neste cenário, não é impedir o progresso científico, mas sim dar voz às barbáries produzidas pelas redes, para construir uma relação menos irracional com o mundo administrado e a sociedade de controle.

Se por esclarecimento e progresso intelectual entendemos a libertação do homem da crença supersticiosa em forças malévolas, em demônios e fadas, no destino cego – em suma, a emancipação do medo –, então a denúncia daquilo que hoje se chama razão é o maior serviço que a razão pode prestar. (HORKHEIMER, 2015 p. 204)

Bibliografia

ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Editora Zahar, Edição digital, 2014.

DURANT, Will. História da Filosofia. São Paulo: Editora Nova Cultura, 1996.

HARARI Yuval Noah. Sapiens – uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2015.

HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

Imagem: intervenção sobre “2001: A Space Odyssey” (divulgação)(

Sobre o autor

Francisco Etruri Parente

Bacharel em cinema pela FAAP, mestre e doutorando em comunicação e semiótica na PUC-SP e especialista em filosofia na Universidade Estácio de Sá. É pesquisador do grupo de pesquisa Cultura do Consumo, Sociedade e Tendências, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.