Cultura do Consumo, Sociedade e Tendências

Doom spending: os gastos catastróficos e o imperativo do gozo entre os millenials e a geração z

Muito tem se falado nos últimos anos sobre um conjunto de comportamentos característicos em alguns membros da geração dos Millenials e, principalmente, daqueles da Geração Z. Entre as características muito típicas, é de saltar aos olhos a tendência ao consumo hedonista conhecido como Doom Spending. Mas no que esse comportamento se diferencia do consumismo tradicional, seja o compulsivo, seja o conspícuo?

Doom spending ou “gastos catastróficos”, numa tradução livre é um fenômeno em que indivíduos se envolvem em gastos irrefletidos como uma forma de se acalmar quando se sentem ansiosos e pessimistas sobre a economia ou o seu futuro. De acordo com um artigo de Bruce Y. Lee, professor de Política e Gestão de Saúde na City University de Nova York, publicado na revista digital Psychology Today, o Doom Spending ocorre quando as pessoas se sentem sobrecarregadas por situações angustiantes, como polarização política, caos climático global e outros desafios. Para lidar com o estresse, os indivíduos compram mais, muitas vezes sem considerar as consequências financeiras de longo prazo de suas ações. O fenômeno parece ter alcance global onde as gerações mais jovens, particularmente a Geração Z e os Millennials, estão na vanguarda desta questão. A combinação de fatores indutores de estresse, como incerteza econômica, superexposição digital e pressões sociais, acaba por contribuir significativamente para o aumento de comportamentos de Doom Spending nesses grupos demográficos. De maneira similar, April Lane Benson, em seu livro To Buy or Not to Buy: Why We Overshop and How to Stop (2008), destaca que as compras impulsivas são frequentemente uma resposta a necessidades psicológicas mais profundas, como o desejo de conexão, autoestima ou um sentido de pertencimento. Ela enfatiza que “as compras se tornam uma solução rápida para a dor emocional, mas frequentemente levam a tensões financeiras e emocionais de longo prazo”. Essas perspectivas apontam para as dimensões psicológicas e emocionais dos Doom Spending, enfatizando suas raízes nos desafios sociais e pessoais modernos.

Como lidar com isso? Talvez, a melhor maneira, ou pelo menos a forma mais básica seja compreender a época em que vivemos, aquela que Gilles Lipovetsky (2007) chamou de “hipermodernidade”, ou seja, a época em que somos bombardeados pelos acontecimentos, informações e cultura, em tempo real, do mundo todo, permitindo que vivamos todos num mesmo contexto. Sobre estes tempos hipermodernos explica-nos o autor:

A irrupção das novas tecnologias, o mass media, a internet, a rapidez dos transportes, as catástrofes ecológicas, o fim da Guerra Fria e do império soviético, tudo isso, além de haver suscitado a “unificação do mundo”, promoveu também uma maior consciência deste, junto a novas formas de ver, viver e pensar. (LIPOVETSKY; JUVIN, 2012, p. 5)

Não por acaso, constatamos que é nestes tempos hipermodernos que vemos surgir – e evoluir de maneira avassaladora – inovações e tecnologias capazes de romper com antigos modos de estabelecer comunicação, trazendo novos ritmos, redução do espaço e do tempo, estilos de vida e visões de mundo. Nesse contexto, é preciso reconhecer que

[…] pelo facto de estarmos inseridos/as cotidianamente num mundo midiático, as nossas identidades culturais de consumo vão sendo “educadas”, forjadas e construídas através dos seus variados apelos, mecanismos e estratégias. (BECK, HENNING, VIEIRA, 2014, p. 91-92)

Assim, podemos assumir que o consumo desbragado, por sí só, não é fenômeno novo nestes tempos de hipermodernidade caracterizados pela velocidade que comprime o espaço-tempo, pela visibilidade excessiva, pela fluidez e liquefação entre outras características. Ao contrário, o consumismo exacerbado já havia sido descrito no final do século XIX por Thorstein Veblen em sua obra A Teoria da Classe Ociosa (1974), em que o sociólogo e economista norte-americano discorre criticamente sobre o consumo conspícuo, utilizado para projetar o status econômico e a distinção social dos indivíduos. Podemos traçar e identificar esse comportamento nos dias de hoje entre emergentes célebres (jogadores de futebol, influenciadores/as digitais, coaches, astros do cinema e TV, cantores/as entre outros).

Zygmunt Bauman, sociólogo polonês radicado no Reino Unido, também discorreu sobre o tema, estabelecendo uma distinção entre consumo e consumismo. Para ele, vivemos hoje não mais numa “sociedade de produtores” mas, sim, numa “sociedade de consumidores”, em que a necessidade, anteriormente pilar de sustentação da economia, foi suplantada pelo desejo dos indivíduos.

A “sociedade de consumidores”, em outras palavras, representa o tipo de sociedade que promove, encoraja ou reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia existencial consumistas, e rejeita todas as opções culturais alternativas. Uma sociedade em que se adaptar aos preceitos da cultura de consumo e segui-los estritamente é, para todos os fins e propósitos práticos, a única escolha aprovada de maneira incondicional. Uma escolha viável e, portanto, plausível – e uma condição de afiliação”. (BAUMAN, 2008. p. 54)

Convém lembrar que Bauman, reafirmando as teses de Veblen, demonstra que os consumidores, nesse contexto, são transformados eles próprios em mercadorias dado que o Ter assume papel mais relevante que o Ser.

Olhando a questão por outra perspectiva mas de algum modo ainda ecoando Veblen, temos Jean Baudrillard que em sua obra A Sociedade de Consumo (1995) considerou que os objetos de consumo são, essencialmente, signos que cumprem uma função de representação social que configura o status a ser projetado pelo indivíduo, de sorte que o aliena da sociedade. Portanto, para esse autor, o consumo é uma manipulação de signos, levando o indivíduo à negação da realidade.

O objeto-signo já não é dado nem trocado: é apropriado, mantido e manipulado pelos sujeitos individuais como, quer dizer, como diferença codificada. É ele o objeto de consumo, e é sempre relação social abolida, reificada, ‘significada num código’. (BAUDRILLARD, 1995, p. 61)

Baudrillard entende que o objeto funciona como significante e não como significado, ou seja, os objetos a serem consumidos se transformam em signos que, constrastando com o simbolo, carecem do significado dado pelo uso.

Outro fator que pode ter contribuído para a exacerbação do consumo é o conceito, surgido nos anos 80 do século passado, de “experiência de consumo”, pilar daquilo que ficou consagrado como marketing experiencial, estratégia que eleva a experiência de compra à categoria de mercadoria a ser consumida. Como nos lembra Fontenelle ( 2020) p. 300), “[…] a categoria ‘experiência de consumo’ acabou dando forma a um novo modo de atuação do mercado, baseado na “venda de experiências”. Com isso, prossegue essa autora, surge nova forma “[…] de agregar valor às empresas, focando as diversas oportunidades de negócios que se abrem quando se comercializam sensações e emoções”.

Isto se aplica igualmente às experiências de consumo tanto de bens materiais quanto de bens imateriais. É disso que trata o sociólogo e filósofo alemão Theodor Adorno quando afirma que as manifestações culturais estão subordinadas ao lucro, transformando-se, consequentemente, também em mercadoria. Para Adorno, um pensador do campo marxista, o consumo cultural hedônico é uma válvula de escape para as mazelas da vida e, também, um fator de alienação.

A satisfação compensatória que a indústria cultural oferece às pessoas ao despertar nelas a sensação confortável de que o mundo está em ordem, frustra-as na própria felicidade que ela ilusoriamente lhes propicia. O efeito de conjunto da Indústria Cultural é o de uma antidesmistificação, a de um anti-iluminismo (anti-Aufklärung). Nela, como Horkheimer e eu dissemos, a desmistificação, a Aufklärung, a saber, a dominação técnica progressiva, se transforma em engodo das massas, isto é, em meio de tolher a sua consciência. (ADORNO, 1997, p. 99)

Assim, a partir daqui, consideradas as diversas abordagens sobre o tema do consumismo em suas diversas causas e variados graus de intensidade, podemos começar a tentar compreender quais os mecanismos psíquicos que possam estar na raiz do consumo compulsivo, catastrófico ou Doom Spending praticado por alguns Millenials e grande parte da Geração Z. Para isso vamos recorrer ao conceito de perversão clean, não canônico na teoria psicanalítica tradicional de Freud e Lacan, mas que aparece em debates que tentam descrever fenômenos sociais e culturais que revelam traços da estrutura perversa, mas sem envolver obrigatoriamente atos tidos como perversos no sentido clínico tradicional.

Para maior clareza, convém lembrar que a perversão, para Freud, é um desvio da pulsão, orientado para a busca de fontes alternativas de prazer (no caso dele, especificamente de matriz sexual). Lacan define a perversão como uma estrutura caracterizada como uma maneira de lidar com a castração (a falta no Outro). Já a perversão clean aponta para situações em que a lógica referente à estrutura perversa se apresenta em comportamentos e dinâmicas sociais que não são explicitamente sexuais ou consideradas patológicas no senso comum. Seria esse o caso do Doom Spending? Vejamos.

Uma das características da perversão clean é a presença de um fetichismo generalizado que se configura pela atribuição de valor excessivo a objetos, ideias e mesmo características específicas que passam a ser utilizados como garantias contra a falta ou como recurso para se atingir um gozo específico. Isso pode se traduzir em consumismo exacerbado, em obsessão por um estilo de vida opulento ou na adesão a determinadas ideologias.

A cultura do consumo está aí para servir o consumidor com inúmeros objetos tamponadores, verdadeiras rolhas ou véus intransparentes. Tais objetos […] aparecem não só nas revistas clássicas, mas também em blogs e sites dos influenciadores, que mostram e modalizam como ter sucesso, como ser o fodão, o primeiro, como chegar ao a mais. Esses objetos aparecem como fetiches, caminhos da plenitude gozosa. (PRADO, 2019, p. 53)

Para este autor, a psicanálise é essencial para se conceber uma teoria das paixões que dê conta dos afetos na cultura do consumo. Citando Dany-Robert Dufour, “[…] o imperativo do gozo atual é ser perverso, realizar as experiências mais radicais possíveis e, sobretudo, continuar clean.”

Como nos recorda Fontenelle

“na teoria freudiana da pulsão, a cultura sempre foi o anteparo ao excesso. Mas é importante não confundir cultura como instância simbólica – na qual a proibição ao gozo é estrutural – com formas culturais que se desenvolvem sob essa instância.” (2020, p. 303)

Nossa forma cultural estimula a produção e o consumo excessivos, assim como promove a insatisfação de modo a que se consuma constantemente. Nós estamos em uma sociedade de “gozo comandado”, de Doom Spending.

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor W. A indústria Cultural. In: COHN,G. (org.). Televisão, consciência e indústria cultural. São Paulo: Nacional, 1997.

BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 1995.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001.

_________________. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

BECK, Dinah Q; HENNING, Paula C.;VIEIRA, Virgínia T. Consumo e Cultura: modos de ser e viver a contemporaneidade. Rev. Educação, Sociedade e Culturas, v. 42, 2014.

BENSON, A. L. To Buy or Not to Buy: Why We Overshop and How to Stop. Cornubia (South Africa): Trumpeter, 2008;

FONTENELLE, Isleide A. Redes de desejo ou de gozo? Experiência de consumo e novos agenciamentos tecnológicos. Rev. RAE, v. 60, n.4, jul-ago 2020, p. 299-306.

HAN, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

LEE, Bruce Y. 27% of Americans are ‘Doom Spending’ Due to Stress. In: Psychology Today, December, 4th, 2023 – arquivo digital.

LEWIS, David; BRIDGES, Darren,. A alma do novo consumidor. São Paulo: Editora M.Books, 2004.

LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: Ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

LIPOVETSKY, Gilles, & JUVIN, Hervé. A globalização ocidental: Controvérsia sobre a cultura planetária. São Paulo: Manole, 2012.

PRADO, José Luiz Aidar. Perversão clean na Cultura do Consumo. Rev. Matrizes, vol. 13, n.1, jan-abr 2019,  p. 49-70

VEBLEN, Thorstein. A Teoria da Classe Ociosa – Um estudo econômico das instituições. São Paulo: Atica, 1974.

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Sobre o autor

Paulo Sabino

Publicitário, brander e professor universitário. Graduado em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda pela FAAP. Especialista em marketing político-eleitoral (USP) e Comunicação e Cultura (PUCSP). Mestre e Doutor em Comunicação e Semiótica (PUCSP). Pesquisador do grupo Cultura do Consumo, Sociedade e Tendências do do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.