Cultura do Consumo, Sociedade e Tendências

Quando a família margarina é destruída pelo mal: entre o didatismo benevolente e a complexidade necessária

Recentemente tivemos mais um tijolo no monumento de redenção histórica brasileira, Ainda estou aqui (2024, dir. Walter Salles) integra-se à vasta tradição cinematográfica brasileira de retratar a ditadura militar para relembrar uma sociedade que padece de Alzheimer cultural (como o próprio filme faz questão de retratar muito bem) em relação aos horrores que foram os anos em que o Brasil foi governado pelos “milicos”.

É natural que uma proposta como esta priorize a política como um dos seus temas centrais, uma vez que tal obra é permeada por literaturas produzidas por intelectuais engajados como Benjamin, Didi-Huberman e Foucault. Estes fazem questão de tratar de temas como a genealogia e a memória para se produzir uma consciência crítica que tente nos prevenir do eterno retorno dos horrores históricos. Isto quer dizer, é natural que o filme reflita sobre os conflitos de poder no Brasil e como isto reflete suas tensões sociais, de um lado tendo os militares representando a conservação do status quo, do outro a ambiguidade violenta dos guerrilheiros e no meio uma sociedade dividida entre tédio, horror e maravilha. Mas, curiosamente este não é o caminho adotado por Salles, em vez  disso o cineasta parece buscar um caminho mais emotivo e menos árido. Uma abordagem de luto familiar diante de seu patriarca “desaparecido” ao melhor (ou pior) modo kafkiano. O realizador opta por uma visão demasiadamente burguesa de idealização da instituição familiar para se comunicar com um público extremante sensível diante de questões políticas (pode não ser o adjetivo mais adequado, mas é o mais generoso).

Na adaptação cinematográfica do livro que leva o mesmo título escrito por Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens Paiva, o desaparecido pela ditadura, temos uma dualidade que ajuda a acentuar o peso dramático da história e potencializa a atmosférica luta dos personagens: de um lado temos o ambiente familiar de proteção, amor, apoio e felicidade em seu estado mais puro e, do outro, a atmosfera mais dura da política nacional, aquilo que há décadas tentamos digerir, mas não conseguimos – quando o próprio Estado brasileiro resolver fazer atrocidades com indivíduos, famílias e grupos sociais, sem que ninguém, até os dias de hoje, fosse punido devidamente por isso.

Em termos estéticos, este contraste “complementar” é um tanto batido, óbvio e em certos momentos até kitsch. A obra não se faz surpreendente, mas em contrapartida, também não parece pretender buscar tal surpreendimento e sim uma experiência de identificação lutuosa, entre espectadores que já sentiram a ausência de um ente querido e que se colocarão no lugar da protagonista e seus filhos. Ou seja, o filme busca o lugar comum da instituição familiar como refúgio para garantir o apelo do público, mas sem parecer perceber a terrível contradição reacionária que guarda este mesmo lugar comum, um dos pilares de discursos fascistas que dizem defendê-la, além da pátria e da religião. Como um dos próprios personagens militares do filme chega a dizer em dado momento: “minha função é garantir que a senhora jogue seu gamão no final da tarde”.

Isto leva a questionar: esta típica família burguesa não seria os típicos cidadãos alienados que contribuem para a banalização do mal, mesmo que se façam “isentos”? Por que o filme não explora este contraste entre um patriarca que arrisca a própria família em nome de uma causa política em contraste com sua esposa que deve carregar tal maldição em seus ombros? Os filhos não se sentiram traídos ou menos amados por terem sido expostos ao perigo por terceiros que nem conhecem e que são invisíveis no filme? Por que o roteiro faz questão de colocar um militar que ajuda os torturadores “confessando” que não concorda com nada disso? Por que é tudo tão maniqueísta?

Este texto não tem a pretensão de ser um regulador ético e político do cinema nacional, apenas uma denúncia do espírito burguês que habita o coração retórico da obra, que com o passar do tempo se ofuscará diante da complexa discussão de O que é isso, companheiro? (1997) sobre o desencontro entre uma moral pequeno burguesa e a moral revolucionária, a bela e dura poesia da solidão e do delírio furioso de Cabra-cega (2004) e a encantadora e melancólica mensagem de O ano em que meus pais saíram de férias (2006). Mas ainda assim, Ainda estou aqui se mostra mais lúcido do que o filme de ação Marighella (2019), que tenta transformar história de resistência política em entretenimento hollywoodiano.

Tal contradição acaba por despolitizar o filme, uma vez que ele foca na tragédia da impossibilidade de se preservar uma família tradicional em plena ditadura militar. Isso se deve por conta de como o personagem de Rubens Paiva é trabalhado na obra, sempre aparecendo de maneira misteriosa e ligeiramente ambígua. Embora seu sumiço seja sentido de maneira intensa, sua figura parece um tanto vaga. A que se deve isso? Medo de entregar ao público alguma informação polêmica? Por que a urgência dos militares em eliminá-lo? Qual seu grau de envolvimento com as guerrilhas? Por que nenhum de seus outros amigos foram presos (ao menos no filme)? Qual era sua visão política? Ele foi deputado em qual época? Qual partido? Tudo sobre a grande vítima desta história é trabalhada en passant. Parece até um fantasma do passado muito mal resolvido, cheio de lacunas que não querem ser preenchidas. E assim se constrói uma obra que parece fugir do próprio assunto que deveria falar, pois Paiva morre enquanto patriarca burguês e não como mártir político.

É claro que a obra enquanto “o que tem para hoje” é realmente muito boa, cinematograficamente falando uma verdadeira obra de arte, e com comentários metalinguísticos belíssimos sobre a preservação da memória pelas imagens documentais. No entanto, confesso que senti falta daquela agridoce ambiguidade complexa contida na frase de abertura do profético e esperançoso Central do Brasil (1998): “Jesus você foi a pior coisa que me aconteceu”.

Imagem: tratamento sobre fotografia de divulgação do filme

Sobre o autor

Francisco Etruri Parente

Bacharel em cinema pela FAAP, mestre e doutor em Comunicação e Semiótica na PUC-SP e especialista em filosofia na Universidade Estácio de Sá. É coordenador do grupo de pesquisa Cultura do Consumo, Sociedade e Tendências, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.