Sala Michael Oakeshott

O que podemos aprender a partir do esforço de Michael Oakeshott para entender nosso Mundo?

Palestra apresentada por Timothy Fuller em 29 de outubro de 2020 para o LABÔ Lectures

Tradução: Marcos A. G. Pena Júnior | Revisão: Lucas Corrêa e Luiz Bueno | © LABÔ
Texto original (transcrição da palestra) publicado na Revista Cosmos&Taxis
Agradecemos à Revista Cosmos&Taxis por autorizar esta tradução

Agradeço ao Professor Luiz Bueno e aos membros do Laboratório por me convidarem a discutir com vocês o significado da obra de Michael Oakeshott, o principal filósofo político britânico do século XX. Também me lembro com carinho da época em que Daniel Marchiori e mais tarde Felipe Cardoso trabalharam comigo no pensamento de Oakeshott em Colorado Springs. Estou muito feliz por estar com todos vocês, mesmo que, por enquanto, apenas remotamente. (Timothy Fuller)

I

Minha intenção nesta ocasião é, primeiramente, dizer algo sobre que tipo de atividade Oakeshott entendia ser a filosofia política; e, em segundo lugar, o que ele pensava que o estudo filosófico da política poderia revelar sobre o mundo em nosso tempo e lugar.

Embora Oakeshott nunca tenha passado muito tempo falando a respeito das influências sobre seu pensamento, ele mencionou algumas influências que nos mostram algo sobre sua abordagem. Ele admirava os Ensaios de Montaigne e muitas vezes descreveu a si próprio como um escritor de ensaios. Por exemplo, ele descreveu sua obra-prima, On Human Conduct, como um conjunto de três ensaios, ao passo que a maioria dos leitores o consideraria um todo sistemático. Um ensaio é uma tentativa de expressão de como alguém entende a si mesmo e aquilo que está acontecendo no mundo. Para Oakeshott, o ensaio é um ato de autorrevelação sobre como se veem as coisas. É também um convite aos outros para dizerem como eles veem as coisas e, assim, manter viva a conversação da humanidade sobre as questões mais importantes. Em tais atos de autorrevelação e resposta, os seres humanos são humanos em seu máximo.

Oakeshott também reconheceu Hegel por compreender nosso mundo como a experiência contínua de oposições a serem mediadas, reconciliadas apenas para revelar outras oposições a serem mediadas no fluxo contínuo de experiências que constitui o caráter histórico da condição humana. Oakeshott não adotou a teoria do progresso da história frequentemente creditada a Hegel, mas adotou o método de Hegel para explicar o que está acontecendo no mundo em termos de oposições fundamentais em busca de reconciliação. Fornecerei ilustrações disso em muitas passagens dos seus escritos.

Oakeshott se descreveu como um cético que faria melhor se soubesse como. Nisso, ele invocou o ceticismo de Montaigne junto com a máxima de Hegel de que a principal lição que aprendemos com a história é que não aprendemos com a história se, por aprender com a história, imaginarmos que as oposições com as quais devemos lidar são idênticas às do passado e são suscetíveis às mesmas respostas. A Coruja de Minerva levanta voo ao anoitecer; nossa sabedoria é amplamente adquirida na contemplação retrospectiva do que passou. Esse entendimento pode moderar nossa tendência de nos precipitarmos para o futuro, na falta de respostas prontas.

Aqui também está a influência de David Hume no pensamento de Oakeshott, especialmente o ensaio de Hume sobre o Cético. Nele, Hume observa que “a devoção filosófica… como o entusiasmo de um poeta, é o efeito transitório do bom humor, grande lazer, um bom gênio e um hábito de estudo e contemplação…” (Hume, 1987, p. 167). No entanto, Hume diz, tal estado não pode se sustentar. Ele deve se reconectar às realidades da existência histórica comum. Hume, portanto, recomenda um temperamento virtuoso para neutralizar a alienação do mundo. Perder a conexão com o dia a dia da vida é perder de vista a fraqueza da pretensão de autoridade da filosofia. Quando Hume escreveu isso, ele estava evocando a Alegoria da Caverna d’A República de Platão.

A reflexão, em sua melhor forma, “refina insensivelmente o temperamento” contra as ilusões da paixão e acalma a mente sem induzir aquela indiferença que diminuiria os prazeres da vida. Se não há cura filosófica para a condição humana, pode haver uma cura filosófica para a enfermidade filosófica: o filósofo encontrou problemas que não consegue resolver. Assim, o cético filosofa também sobre o filosofar, alertando contra a pretensão de que a filosofia deveria governar. Hume já havia reconhecido que a era da ideologia estava despontando, que o desejo pela teorização abstrata estava crescendo, que a defesa clássica da moderação estava em declínio, que os filósofos estavam tentados a se tornarem políticos.

II

Oakeshott, reconhecendo Montaigne e Hume, e derivando seu método de análise de Hegel, se descreve então como um cético que “faria melhor se soubesse como” (“Political Education”, Oakeshott, 1962, p. 111). Ali, Oakeshott estava formulando sua própria resposta às possibilidades e perigos da situação moderna. Para ele, o exame filosófico da política busca descrever o caráter da atividade política independentemente de defender ou atacar políticas específicas. O exame filosófico da política não é um esforço para participar dos argumentos atuais, mas antes para entender por que os argumentos assumem a forma que assumem.

A política é uma forma autocontida de atividade humana; não requer uma teoria independente para fazê-la funcionar, manter seu ímpeto ou realizar suas atividades autosselecionadas. O filósofo, diz Oakeshott, fala no modo indicativo ou descritivo, expressando em outras palavras o que já foi expresso nas palavras e ações da vida cotidiana. O praticante da política não exige essa exposição do filósofo, muitas vezes optando por ignorar completamente a descrição filosófica.

Falando indicativamente (i.e. no modo indicativo), Oakeshott disse que política é a “atividade de atender aos arranjos gerais de um conjunto de pessoas que o acaso ou a escolha reuniram” (Oakeshott, 1962, p. 112). Mais especificamente, isso geralmente significa “os grupos cooperativos hereditários” chamados de “Estados”. O Estado moderno começou a existir muito antes de nós e pode persistir muito depois de nós. Nunca possuímos uma folha em branco na qual podemos escrever o que quisermos. Pensar que podemos começar do zero é sofrer de uma ilusão. Essa ilusão, no entanto, é evidente em nosso mundo e deve ser percebida como uma característica da retórica da política.

Para Oakeshott, “a política não surge nem de desejos instantâneos, nem de princípios gerais, mas das próprias tradições de comportamento existentes” (Oakeshott, 1962, p. 123). “Arranjos”, em suma, não são meros desejos nem meros princípios. São uma maneira de viver, um modo de vida, composto ao longo do tempo pelas inúmeras escolhas dos indivíduos em sociedade uns com os outros, estabelecendo práticas através das quais tornam a sua associação concreta e humanamente possível.

Esses arranjos, é claro, têm consequências. Eles são o produto da inteligência respondendo às circunstâncias em sua volta de acordo com sua compreensão dessas circunstâncias. Ao responderem, os seres humanos descobrem “pistas” a seguir, possibilidades que não são implicações necessárias, mas que se apresentam como significativas. Sempre há mais pistas desse tipo do que podem ser seguidas a qualquer momento. Devem ser feitas escolhas entre as possíveis vias de exploração. O debate político surge aqui: “o raciocínio político relevante será a exposição convincente de uma simpatia, presente, mas ainda não seguida, e a demonstração convincente de que agora é o momento apropriado para reconhecê-la” (Oakeshott, 1962, p. 124).

Não há nenhuma direção logicamente implícita a ser descoberta, nenhuma sugestão autoevidentemente correta entre todas as pistas que venham à consideração. Os seres humanos encontram seus propósitos na vida construindo propósitos à medida que respondem às suas circunstâncias. Todas essas respostas, por mais distantes que sejam de nossas próprias simpatias, são exibições de inteligência em ação com sucesso intermitente. Não podemos especificar nosso objetivo final ou o objetivo final. Podemos ser capazes de minimizar a chance de desastre “se escaparmos da ilusão de que a política é algo mais do que a busca de pistas; uma conversa, não uma discussão” (Oakeshott, 1962, p. 125). Nesse ponto, podemos responder a Oakeshott que tal conversa, no entanto, regularmente se torna estridentemente argumentativa.

Para alguns, o filósofo pode ter um efeito deprimente quando o filósofo é obrigado a dizer que, na política, “os homens navegam em um mar sem limites e sem fundo; não há porto para abrigo, nem solo para ancoragem, nem ponto de partida nem destino determinado. O empreendimento é manter-se flutuando em equilíbrio; o mar é ao mesmo tempo amigo e inimigo; e a náutica consiste em usar os recursos de uma forma tradicional de comportamento a fim de tornar amiga cada ocasião hostil” (Oakeshott, 1962, p. 127). (Será notado que o postulado dessa visão é expresso no conselho de Montaigne sobre fazer da morte uma amiga).

Talvez com pesar o filósofo ponha de lado a possibilidade da sabedoria sobre-humana, mas talvez também com alívio aponte para as tradições sem as quais cairíamos em um pântano de escolhas aleatórias. A ênfase está na capacidade da inteligência humana de continuar usando os recursos de sua história. Há confiança de que a inteligência provavelmente não se esgotará. Em nosso momento, a responsabilidade é nossa. Não é provável que seja o momento final e, em todo caso, não podemos agir como se fosse. Não sabemos e não podemos saber disso. Nem podemos desfazer a herança que temos. A história não pode ser retrocedida. Portanto, devemos prosseguir.

A tradição, diz Oakeshott, “não é suscetível à distinção entre essência e acidente, o conhecimento dela é inevitavelmente o conhecimento de seus detalhes: saber apenas a essência é não saber nada” (Oakeshott, 1962, pp. 128-9). A intimidade com a tradição pode render estabilidade sem descanso. A política é mais bem conduzida na atitude de sobriedade enérgica. Essa atitude resulta de ter crescido ouvindo as vozes já em curso do próprio mundo e de ter aprendido a falar com elas. O estudo da história, conduzido de maneira apropriada, nos apresentará à natureza detalhada e concreta de nosso modo de vida, e ilustrará em uma escala mais ampla o que é verdadeiro em nossa própria experiência. A lição será que uma maneira de viver indica como podemos nos conduzir, mas não o que devemos fazer, nem para onde devemos ir. Podemos nos inspirar, pensou Oakeshott, em “pensadores e estadistas que sabiam para que lado virar os pés sem saber nada sobre um destino final” (Oakeshott, 1962, p. 131).

A filosofia política – reflexão filosófica sobre o caráter da política – pode nos ajudar a pensar com mais clareza sobre os conceitos que empregamos. Aqui e ali, pode reduzir a incoerência de nosso pensamento. Mas não tem capacidade de garantir o sucesso na atividade política. Todas as reflexões anteriores podem ser vistas como o esforço de um filósofo político para escapar de suas próprias ilusões ocupacionais, olhando diretamente para o objeto de sua investigação, a saber, a própria política.

Aí vemos o que os atores políticos realmente conseguem fazer: eles buscam as sugestões das tradições das quais fazem parte. Eles podem negar isso e procurar fazer outra coisa. As ideologias prometem que podemos escapar do mundo que herdamos. Os defensores das ideologias às vezes podem persuadir os outros de que conseguiram escapar dessa limitação. Eles podem renomear a Torre de Babel e variar suas nuances arquitetônicas. Eles podem tentar buscar a perfeição de uma linha reta. Eles também podem se tornar perseguidores cínicos do poder pelo poder. O que, finalmente, eles não podem fazer é evitar a reafirmação da condição humana como ela sempre foi.

Felizmente, a morte de ideias falsas não é idêntica à morte do espírito humano. Ela surge de suas próprias cinzas. No entanto, seria bom evitar receitas para a produção de montes de cinzas sempre que possível. Políticos sensatos o farão. Os filósofos não podem produzir políticos sensatos, mas podem ser lembretes irritantes dos limites da política. Os filósofos podem notar políticos sensatos e elogiá-los simplesmente ao descrevê-los. Ao fazer isso, eles executam uma tarefa não totalmente inútil. A tarefa deles é entender por que o mundo é do jeito que é, não postular um programa para libertar-nos para um mundo além da mudança ou para chegar ao fim da história.

Filósofos políticos em um sentido especial são, portanto, de disposição conservadora. Isso não deve ser confundido com o que atualmente se discute como “conservadorismo”, seja paleo- ou neo-. A referência de Oakeshott é especificamente a uma disposição a partir da qual nenhuma generalização óbvia de pontos de vista sobre questões políticas específicas pode ser extraída. O filósofo político não se ocupa em determinar de quais ideias se pode dizer que sua hora chegou ou passou. Essa disposição conservadora revela a natureza do caminho cético. Planos para eliminar a contingência, ou “devolver o governo ao povo”, ou alcançar “a paz em nosso tempo”, ou “fazer da pobreza história”, reivindicam um potencial de controle que o registro histórico não sustenta.

Se alguém perguntasse a Oakeshott: “Por que os governos deveriam aceitar a atual diversidade de opiniões e atividades em vez de impor a seus súditos um sonho próprio?” A resposta dele seria “Por que não? Seus sonhos não são diferentes dos de ninguém; e se é enfadonho ter de ouvir os sonhos dos outros sendo narrados, é insuportável ser forçado a reencená-los. Toleramos os monomaníacos, é nosso hábito; mas por que deveríamos ser governados por eles?… O governo… não começa com uma visão de outro mundo diferente e melhor, mas com a observação do autogoverno praticado até mesmo por homens apaixonados na condução de seus empreendimentos… as sugestões de governo devem ser encontradas no ritual, não na religião ou filosofia; no gozo de um comportamento ordeiro e pacífico, não na busca da verdade ou da perfeição” (“On Being Conservative”, Oakeshott, 1962, pp. 187-88). Aqui está a crítica de Oakeshott ao projeto iluminista e ao racionalismo na política, na esteira dos eventos horrendos do século XX. Qual é então o papel apropriado de governar? Para Oakeshott, tudo começa com o império da lei.

Governar envolve a formulação e aplicação de regras de conduta. Regras de conduta não são prescrições de como devemos viver. São condições adverbiais, especificando que, seja o que for que escolhamos fazer, devemos fazê-lo sob certas condições. Essas condições podem nos ajudar ou atrapalhar na busca de nossos objetivos. A função das regras de conduta, entretanto, não é ajudar nem atrapalhar, nem se pronunciar a favor ou contra atividades particulares escolhidas pelos próprios indivíduos, mas estimular a capacidade de autorregulação.

Governar fornece uma estrutura de leis. Quando bem-sucedida, reduzirá o número de colisões infelizes entre interesses. Garantirá a compensação por lesões. Punirá aqueles que se recusarem a cumprir as regras de conduta. Mas governo “não é a gestão de uma empresa, mas a regra dos envolvidos em uma grande diversidade de iniciativas escolhidas por eles mesmos… não preocupado com pessoas concretas, mas com atividades… não preocupado com o moralmente certo e errado… não é projetado para fazer os homens bons nem melhores…” (Oakeshott, 1962, p. 189). Tal governo busca apenas a “lealdade necessária” porque é indiferente à verdade e ao erro. Tal governo pode esperar “respeito e alguma suspeita, não amor, devoção ou afeto” (Oakeshott, 1962, p. 192). Oakeshott está descrevendo a governança procedimental como o meio de permitir a mais ampla gama de autorregulação humana por meio de transações voluntárias.

As regras de conduta terão que mudar com o tempo, é claro. Tal modificação, por ser necessária, “deve sempre refletir e nunca impor uma mudança nas atividades e crenças daqueles que estão sujeitos a elas, e nunca deve, em tempo algum, ser tão grande a ponto de destruir o conjunto” (Oakeshott, 1962, p. 190). Mesmo armado com essa disposição, não será necessariamente uma tarefa fácil ou simples agir de acordo com ela: “Dominar as próprias crenças e desejos, admitir a forma atual das coisas, sentir o equilíbrio das coisas em suas mãos, tolerar o que é abominável, distinguir entre crime e pecado, respeitar a formalidade, mesmo quando ela parece estar levando ao erro, essas são conquistas difíceis” (Oakeshott, 1962, p. 195).

Uma reflexão desse tipo estimula a sensação de estar em casa no mundo. Como em Montaigne, discernimos um padrão de movimento que vai da harmonia natural no nascimento à desarmonia da exuberância juvenil, ao retorno reflexivo ao mundo que devemos habitar e que difere daquele de nossas imagens poéticas e fantasias políticas. Não há nenhuma regra impondo isso sobre nós. Podemos experimentá-lo com maior ou menor graça, mas é a capacidade de encontrar os dias da idade iguais aos da juventude que nos qualifica para a atividade política.

Há um paralelo entre a sabedoria do filósofo e a visão prática do político maduro. Mas eles não precisam um do outro para chegar lá. Oakeshott acha que deveríamos ser gratos se eles puderem viver juntos em segurança no mesmo regime.

III

Ao longo de seus escritos, Oakeshott explorou uma série de oposições em busca de mediação que caracterizam a situação moderna. Entre elas estão estas:

Política empírica — Política ideológica

Política de Ceticismo — Política de Fé

Nomocracia — Teleocracia

Moralidade do hábito e afeto — Moralidade do pensamento reflexivo

Associação Civil — Associação Empresarial

Direi algo sobre cada uma dessas oposições e apresentarei uma conclusão provisória a respeito do que podemos aprender com elas sobre o nosso mundo, dividido como ele está entre a impaciência e a desilusão.

A distinção entre o estilo empírico e o estilo ideológico da política foi uma característica central de “Educação Política”, a palestra inaugural de Oakeshott como Professor de Ciência Política, apresentada na London School of Economics and Politics em 1951. O estilo “empírico” sugere um tipo de resposta ad hoc ao conjunto caleidoscópico de questões que enfrentamos todos os dias, um tipo de pragmatismo não bem organizado que frequentemente gera respostas contraditórias. Opondo-se a este estilo está o estilo ideológico que, impaciente com o caráter desordenado da ordem dominante, busca um plano projetado de forma independente para a sociedade – um modelo de como se imagina que a sociedade deve ser – juntamente com a demanda pelo poder de impor esse projeto a fim de acabar com o desleixo da situação existente. A oposição entre o estilo empírico e o ideológico é mediada pelo reconhecimento da possibilidade de um conjunto ordenado, mas revisável, de julgamentos quanto ao que é possível alcançar, envolvendo algo como o julgamento prático descrito por Aristóteles na Ética a Nicômaco e na Política.

Quase na mesma época de sua palestra de 1951, Oakeshott estava escrevendo um livro que nunca publicou, cujo manuscrito só veio à tona após sua morte em 1990, posteriormente publicado com o título The Politics of Faith and the Politics of Scepticism[1]. A “política da fé” descreve as aspirações utópicas ou milenaristas de direcionar nossa existência para um estágio final de harmonia e alívio da provação da história. A crença de Marx no enfraquecimento final do Estado em favor de uma tranquilidade pós-política é uma imagem clássica. A “política do ceticismo” surge como um alerta contra o poder centralizado e concentrado, exemplificado no Estado constitucional moderno. Oakeshott pensava que ambas fossem respostas modernas ao surgimento do Estado moderno cerca de 500 anos atrás, estabelecendo um campo polarizado de argumentação em que cada lado energiza seu oposto ao mesmo tempo que busca dominar. Cada um respondeu à centralização de poder no Estado moderno, além de qualquer coisa encontrada no período pré-moderno, particularmente à medida que a tecnologia de controle se expandiu de maneiras sem precedentes – claramente uma questão com a qual nos preocupamos atualmente, por exemplo, na era do Estado vigilante. Para Oakeshott, a história moderna é caracterizada pela oposição não resolvida entre a política da fé e a política do ceticismo, que ele pensava ser observável em todos os Estados modernos. O debate atual sobre o “Estado constitucional” versus o “Estado pós-constitucional” exemplifica este conflito.

Em suas palestras sobre a história do pensamento político na LSE, Oakeshott desenvolveu uma teoria do direito baseada na oposição entre “nomocracia” e “teleocracia”. A primeira, nomocracia, refere-se ao império da lei propriamente dito, como um conjunto de normas processuais para fornecer as condições de base que reforçam a capacidade dos indivíduos de interagirem entre si por meio da autorregulação, reforçada pela lei, promovendo o reconhecimento e a acomodação mútuos. A alternativa, teleocracia, implica que há um arranjo específico de seres humanos a ser alcançado, definido como um fim ou objetivo a ser atingido por meio de regulação governamental ajustando e direcionando a autorregulação. Isso é frequentemente descrito hoje em dia como o governo dos especialistas. Em sua forma moderada, defende o uso do poder governamental para empurrar as pessoas na direção certa por meio de coerção limitada. Os debates atuais sobre o “Estado administrativo” ou o “Estado profundo” refletem a oposição não resolvida subjacente de nosso tempo. Um teórico jurídico recente descreveu essa oposição como a diferença entre o império DA lei e o império PELA lei.

Em seu ensaio de 1948, “The Tower of Babel”, Oakeshott fez uma distinção entre a moralidade do “hábito e afeição” e a moralidade do “pensamento reflexivo”. Ele achava que, em nossa época, recorremos cada vez mais à moralidade do pensamento reflexivo. Isso significa aumentar a desconfiança sobre os hábitos morais herdados, até mesmo a desconfiança sobre toda a tradição. De certa forma, isso significa continuamente nos questionarmos, questionarmos continuamente nossos motivos, sentir que não podemos esperar que outros obedeçam às mesmas regras de conduta que nós podemos continuar a respeitar. Oakeshott achava que isso devia levar à ansiedade e ao mal-estar constantes. Não é que as noções tradicionais de conduta desapareçam, mas que nós nos permitimos nos envergonharmos delas.

Finalmente, em On Human Conduct, Oakeshott apresentou a oposição entre “associação civil” e “associação empresarial”. Ele pensava que essa era a descrição mais abrangente do caráter de oposição da história moderna que vinha tentando descrever ao longo de seu estudo da política moderna. Pode-se ver a conexão dessa descrição da oposição com as outras tentativas que remontam a seus esforços, começando com Experience and Its Modes em 1933, e expressos também em seu livro de 1939, Social and Political Doctrines of Contemporary Europe, e em suas palestras em Harvard em 1958, The Morality and Politics of Modern Europe. Em On Human Conduct (1975), Oakeshott elabora longamente a distinção entre uma sociedade de indivíduos amplamente autogovernados e autorregulados, apoiados pelo império da lei ou nomocracia, e a ideia do Estado moderno como um empreendimento gerencial envolvendo a busca de um único objetivo no qual os governantes nos administram por meio de leis e normas, tratando-nos como indivíduos que desempenham seus papéis em uma vasta divisão de trabalho, apontando para um resultado ou fim unificados, ponto em que a conversação da humanidade se tornará uma canção em uníssono.

Se considerarmos todas essas tentativas, esses ensaios para compreender a nós mesmos e o mundo que habitamos, poderíamos dizer que a oposição fundamental no século XXI é entre a impaciência com o fracasso da materialização do fim da história e a desilusão com a proclamação da sua vinda. Nós ficamos desconfiados do projeto iluminista, mas achamos difícil desistir dele. Como Ícaro, voamos muito perto do sol; ao contrário de Ícaro, sobrevivemos à nossa queda e devemos entender o que nos aconteceu.

Assim diz Oakeshott: “O dilema da moral ocidental, conforme eu o vejo, é, primeiro, que nossa vida moral passou a ser dominada pela busca de ideais, um predomínio desastroso de um hábito de comportamento estabelecido; e, segundo, que passamos a pensar nesse predomínio como um benefício pelo qual devemos ser gratos ou como uma conquista da qual devemos nos orgulhar. E o único propósito a ser servido por esta investigação de nossa situação é revelar a consciência corrupta, o autoengano que nos reconcilia com nosso infortúnio” (“The Tower of Babel”, Oakeshott, 1962).

Esta conclusão é um aspecto da autorrevelação de Oakeshott; sugere uma resignação estoica em relação à condição humana, visto que o mundo deve ser como é e como será. Além disso, contudo, havia alegria e entusiasmo pela vida perceptível a qualquer um que o conhecesse. Isso é evidente em seu ensaio de 1929, “Religion and the World”, em que ele critica o “mundanismo”, a disposição atormentada pela culpa sobre o que passou e intensa ansiedade sobre o que está por vir. O resultado é depreciar as possibilidades presentes, procurando talvez desesperadamente viver em outro lugar que não no momento que foi dado e que, no entanto, permanece inevitável. Superar isso era, acredito, o ponto de vista que informava o trabalho de uma vida de Oakeshott. Ecoando Montaigne, Oakeshott procurou superar as ansiedades da autoconsciência por meio da abertura para as sugestões da imortalidade, em que a imortalidade é entendida não como um estado futuro de coisas, mas como a experiência poética que transcende o cotidiano da vida.

Referências

HUME, David. Essays Moral, Political, Literary. Ed. Eugene F. Miller. Indianapolis: Liberty Fund, 1987.

OAKESHOTT, Michael. Experience and its Modes. Cambridge: Cambridge University Press, 1933.

_____ . Social and Political Doctrines of Contemporary Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 1939.

_____ . Rationalism in politics and other essays. Indianapolis: Liberty Fund, 1962. 

_____ . On Human Conduct. Oxford: Clarendon Press, 1975.

_____ . On history and other essays. Oxford: Blackwell, 1983. 

_____ . 1993. The Morality and Politics of Modern Europe. Ed. S. R. Letwin. New Haven: Yale University Press. 

_____ . 1996. The Politics of Faith and the Politics of Scepticism. Ed. T. Fuller. New Haven: Yale University Press.

[1] Obra já publicada no Brasil: OAKESHOTT, M. A política da fé a política do ceticismo. São Paulo, SP: É Realizações, 2018.

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Sobre o autor

Timothy Fuller

Professor de Ciência Política no Colorado College. Publicou muitos ensaios e editou livros, incluindo The Intellectual Legacy of Michael Oakeshott (2005), Reassessing the Liberal State (2001), The Voice of Liberal Learning: Michael Oakeshott on Education (2000), mais recentemente contribuiu com Political Philosophy in the Twentieth Century, Authors and Arguments (2011). Foi co-editor com Shirley Letwin de uma série em vários volumes para a Yale University Press, Selected Works of Michael Oakeshott.