Sala Michael Oakeshott

Um encontro com a História


Agradecemos à Liberty Fund, editora de Law and Liberty, por autorizar a publicação deste artigo.

Tradução: Rafael Albuquerque | Revisão: Luiz Bueno e Flávia Sarinho | © Labô
Texto original: “An Encounter with History” – publicado em lawliberty.org  (publicado em 21/10/2021)

O filósofo britânico Michael Oakeshott merece nossa atenção intelectual por uma variedade de razões, sendo uma delas o fato de que Oakeshott é sui generis: um pensador único. Seus posicionamentos singulares sobre filosofia, relações internacionais e educação, para citar alguns, por vezes levaram outros a, ocasionalmente, deixar de compreendê-lo, e, assim, atribuir rótulos limitantes que não combinam com Oakeshott como pensador. Na verdade, poder-se-ia dizer que o pensamento de Oakeshott está além da categorização filosófica e política usual. O mesmo pode ser dito de suas palestras sobre história.

Ele se recusava a falar sobre assuntos importantes de forma simplista e se baseava em nuances e distinções cuidadosas em termos filosóficos. Talvez seja por isso que ele tenha sido frequentemente desconsiderado. Mas ele sabia que, se não fizermos distinções intelectuais, se não definirmos certos aspectos de nossa sociedade, então toda a civilização poderá se encontrar em situação turbulenta[1]. E assim, precisamente, estamos hoje. Negligenciamos o passado pelo presente fugaz, e não temos nenhuma noção do futuro. Estamos, com efeito, preocupados apenas com o “presentismo”, a fim de atender às nossas necessidades ideológicas. Essa estranha noção de tempo foi anunciada pela autora e crítica cultural Camille Paglia: “Presentismo é um grande flagelo – uma superabsorção no presente e no passado próximo, que produz uma distorção de perspectiva e uma histeria do tipo “o céu está caindo”, de Chicken Little”.

Histeria em massa parece ser a norma geral ultimamente, e parte disso é a nossa grave incompreensão da história. Mas de que forma estamos compreendendo ou utilizando mal o conceito de tempo? Quais são as maneiras pelas quais podemos aprender o que é a história em si e, então, como nos relacionarmos com ela? Em “Sobre a História e outros ensaios”, Oakeshott oferece sua visão sobre os significados de passado, presente e futuro. Para Oakeshott, a noção de modo de ser e modo de experiência é o que orienta todo o seu projeto filosófico, e esse é o caso aqui também.

Embora tenha posições bem definidas, Oakeshott não pretendeu redefinir nem a história nem o papel do historiador. Mantendo sua abordagem habitual, ele é respeitoso, mente-aberta e, sobretudo, preocupado com a condição humana. Concentramo-nos demais em aplicações práticas, seja da educação seja na tentativa de quantificar cientificamente a sabedoria, e esquecemos de outros aspectos de ser humano. O mundo de Oakeshott é repleto de “possibilidades humanas”, como Timothy Fuller escreve em seu prefácio ao livro. Aplicações práticas (especialmente na tentativa de encontrar a “utilidade” das humanidades) tendem a deixar de fora análises cuidadosas sobre um campo particular. Como Fuller escreve, “O estudo da política (por exemplo) em uma universidade pode iluminar os acontecimentos da atividade política, mas não pode dirigir a política; ao contrário, quando estudantes de política entram na política, a política os submeterá às suas próprias contingências”.

Oakeshott não buscou simplificar, de forma a reduzir a complexidade do pensamento em um gráfico mensurável que pudesse ser referência e tratado como a verdade. Ao contrário, como Fuller aponta, “para ele, o ponto mais importante a ser estabelecido é que filosofia e história buscam explicar o mundo filosoficamente e historicamente, aceitando que essas investigações são bem-sucedidas apenas quando deixam de lado pleitos de competência para interferir no mundo ou para transformá-lo”.

História como um Modo de Investigação

Oakeshott alerta-nos imediatamente que a palavra história é “ambígua”, pode significar muitas coisas e, assim, talvez, confundir uma investigação. Ele não está interessado na cronologia dos eventos ou da história de um determinado grupo de pessoas. Tampouco está preocupado com uma abordagem sociológica da história, mas com a “história como uma investigação e com o caráter de investigação histórica”. Em uma maneira tipicamente singular, Oakeshott vai ainda mais longe, ao escrever que “a palavra história” é “um modo distinto de investigação” e “um modo de compreensão”.

Mas, como escreve Oakeshott, isso “não é meramente uma atitude ou ponto de vista. É uma maneira autônoma de compreensão, especificável em condições exatas, que é logicamente incapaz de negar ou confirmar as conclusões de qualquer outro modo de compreensão, ou mesmo de fazer qualquer enunciado relevante a seu respeito”. Ao longo desse projeto sobre a história, Oakeshott está preocupado sobretudo em encontrar uma maneira “de especificar as condições de um modo de compreensão”, o que não significa que seja especificamente com conclusões filosoficamente lógicas, mas com enxergar um caminho (ou condições) até uma compreensão, por assim dizer, interna da história (interna denotando um distanciamento da missão historiográfica e uma aproximação ao interior da investigação que mostre as condições).

Mesmo quando não se refere a isso literalmente, as preocupações filosóficas de Oakeshott residem nos modos de ser, ou nas relações. É uma forma de fazer distinções que permitam uma melhor compreensão não apenas do conhecimento em si, mas de diferentes esferas da vida que interagem umas com as outras (isso é visto especificamente nas suas notáveis discussões sobre o significado da educação liberal). Aqui, também, Oakeshott vê a necessidade da relação entre passado e presente, e, de certa forma, da preponderante incerteza do futuro. Segundo Oakeshott, “a subjetividade não é uma categoria ontológica” e, dada essa conclusão, devemos perguntar: como um ser humano se encaixa nessa empreitada de compreender a história? E, mais importante, o que a visão de Oakeshott proporciona para nos afastarmos da atual “era antimetafísica”, para usar a frase de Iris Murdoch?

Oakeshott escreve que “O presente-futuro da compreensão prática é também relacionado ao passado. E o passado aqui, claro, é um passado relacionado com este presente; isto é, nossa preocupação prática com o passado é nossa preocupação com os objetos presentes em relação a nós mesmos, para determinar seu valor para nós e usá-los para a satisfação de nossos desejos”. Muito do nosso presente é composto de futuro, e vice-versa. Recordamos o tempo todo, mesmo os breves momentos que passaram, poderíamos até dizer que recordamos precisamente porque nos preocupamos com o futuro. Estamos continuamente nos relacionando com objetos (sejam eles animados ou inanimados), e essas relações são baseadas na percepção individual da realidade. Mas seria uma tolice assumir que a única realidade que existe é a nossa. Isso é o que torna complexa a investigação histórica, ou, melhor, o modo de investigação histórica. Se olharmos para a história e o tempo de forma meramente subjetiva (como visto na afirmação de Paglia sobre o presentismo), então estamos negando categorias ontológicas do passado tanto quanto do futuro.

Oakeshott oferece um antídoto para a ideologia do tempo, e nos convida para um encontro com a história

Mas Oakeshott não é ingênuo. Ele sabe que os “seres humanos viveram o suficiente apenas com a mais vaga noção de um modo histórico de compreensão e com poucos incentivos para aprender”. No entanto, há muito a se aprender com a visão de Oakeshott sobre a história. Sem refletir muito sobre isso, estamos em um encontro constante com objetos do passado, e, assim, experimentando a causa e o efeito desse encontro. Encontramo-nos no tempo presente, ao mesmo tempo que estamos conectados com o presente de outra pessoa. A verdade é que raramente temos consciência dessa relacionalidade, e de que a própria consciência tem suas limitações, particularmente na tentativa de desvendar a vida de alguém apenas por meios lógicos. Como Oakeshott escreve, “O que normalmente percebemos, de fato, raramente tem essa ausência de ambiguidade: é uma questão muito mais confusa em que nós vamos e voltamos mais ou menos inconscientemente entre uma variedade de universos de discurso. E quanto à prioridade, algumas de nossas experiências mais antigas não são práticas, governadas pela utilidade, mas poéticas e governadas pelo prazer”.

Algumas coisas na vida não podem ser completamente articuladas, e, diferentemente da maioria dos filósofos, Oakeshott aceita integralmente isso em sua humildade enquanto pensador. No entanto, até as questões não articuladas têm uma forma de emergir na nossa relação com o tempo.

A Linguagem dos Eventos Históricos

Assim como em sua discussão sobre a relação entre passado, presente e futuro, Oakeshott enxerga os eventos históricos pelas lentes da modalidade. Nós, que estamos vivendo no presente, somos inextricavelmente ligados ao passado, especialmente o passado mais remoto. Temos uma tarefa diante de nós: continuar relembrando os eventos que hoje fazem parte da nossa consciência, ainda que não estejamos totalmente cientes disso.

Eventos históricos não podem existir sem objetos ou artefatos históricos. Mas essas não são coisas que podem ser simplesmente descartadas. Eles se impõem sobre nós, e, como escreve Oakeshott, “… para um historiador, é um objeto que provoca questionamento: para ele, uma exploração registrada, seja qual for o seu interesse imediato ou sua inteligibilidade, é algo ainda não compreendido”. Esta falta de compreensão é a causa da imposição do artefato. Não temos escolha a não ser observá-lo, estudá-lo e entrar, por assim dizer, na consciência (ou modo de ser) de outro ser humano.

Nesse caso, Oakeshott usa um exemplo bem bonito de um fragmento encontrado na costa do Mar de P’uch’ang em 1908 que dizia o seguinte: “A garota tártara se dirige a você. Desde que partimos eu segui para o oeste e, quando lembro dos dias que passamos juntos, meu coração fica pesado. Escrevo esta carta com pressa e o tempo só me permite algumas linhas. O coração está partido pela ausência.” O que devemos fazer com tal fragmento? Talvez, para Oakeshott, o melhor seria não olhar para ele sob uma perspectiva de historiador, mas deveríamos olhá-lo primeiramente como seres humanos – perplexos e intrigados pelo objeto.

Este objeto em particular – um fragmento do que parece ser uma declaração de amor e sofrimento – em virtude de sua própria ontologia é totalmente separado de nós no presente e torna-se parte de uma investigação histórica. À primeira vista, este fragmento não está interessado no futuro de nenhuma forma porque seu autor está preocupado com a preservação do amor, sofrimento e memória de tais eventos metafísicos. Mas, se olharmos mais de perto, veremos que, paradoxalmente, é precisamente (quiçá somente!) o futuro que interessa ao autor. Ele chora para ser lembrado no futuro porque não consegue compreender totalmente a possibilidade e a inevitabilidade de sua morte. Em certo sentido, é apenas a consciência que continua a viver e é reanimada no momento em que o presente toca o passado, no momento em que um ser humano experimenta um encontro com o passado concretizado de um acontecimento histórico.

Oakeshott julga tal artefato como uma “performance”. Ele escreve que “O presente na investigação histórica é, então, composto de performances que sobreviveram, e o primeiro compromisso de tal investigação é o de distinguir e compreender essas performances segundo suas conexões com outras com as quais possam estar circunstancialmente relacionadas.” Além disso, “Cada performance tem uma linguagem… uma performance, contudo, nunca é meramente uma adesão a uma prática. É também uma ação ou expressão substantiva que pertence a uma transação e busca uma satisfação; isto é, um futuro.”

Nós não precisamos levar essa noção de “linguagem” em sentido literal. A arte, por exemplo, tem sua própria linguagem, que não depende de palavra alguma, mas de um conjunto próprio de formas estéticas para apresentar seu significado e essência. Tampouco devemos considerar a noção de “performance” como significando exatamente isso. Ao contrário, o uso dessas palavras por Oakeshott exemplifica uma qualidade de sua própria investigação filosófica. Os eventos estão ligados por uma série de “performances”, que funcionam simultaneamente como modos separados e inextricavelmente conexos de investigação e ser. Em outras palavras, uma performance ou expressão do passado (como o fragmento da carta) funcionam puramente em seu próprio nível metafísico, dissociados de sua própria visão do passado ou do futuro. Mas a própria criação de tal evento histórico que está contido no fragmento da carta é “lançada ao mundo” e, inevitavelmente, sua presença metafísica torna-se nossa também.

Identidade Histórica

Assim, a imposição desse artefato não é apenas física, mas, naturalmente, metafísica. Nossa identidade começa a mudar em razão do contato com o passado. Oakeshott escreve que “A ideia de mudança [histórica] é a junção de duas ideias aparentemente opostas, mas de fato complementares: aquela de alteração e a de semelhança; a de diferença e a de identidade.” Novamente, estamos, de alguma forma, nos relacionando com o objeto e, por conta dessa relação, testemunhamos algum tipo de mudança.

Um dos aspectos mais interessantes da análise de Oakeshott sobre mudança histórica é a sua inclusão da teleologia na investigação histórica. Com apenas alguns golpes da caneta proverbial, Oakeshott destrói as intenções obsessivas de historiadores ideológicos, que estão mais interessados em mudar ou ler uma teleologia em um evento ou circunstância históricos do que em estudar as suas condições. “A noção de que ‘o passado’ constitui um único processo teleológico, cuja demonstração integral se pode esperar de um historiador magistral… é absurda… Agostinho, por exemplo, poderia representar a história do mundo desde a Criação… até a vinda de Cristo como uma passagem singular de mudança no modo teleológico somente porque identificara sua condição inicial e seu fim…” Em outras palavras, Agostinho não usou um evento histórico e uma identidade histórica para mudar a metafísica do evento. Havia uma realidade mais ampla do que a filosofia de Agostinho em jogo, que eram os eventos teológicos do Cristianismo. Tais eventos se dão além do tempo cronológico, e são caracterizados mais pela noção de Kairós. Agostinho, por exemplo, entendeu o significado ontológico da “vinda de Cristo”, e por isso se esvaziou para ser preenchido de Cristo. A abordagem de Agostinho à história não foi histórica de forma alguma, mas, como Oakeshott indica, se havia qualquer teleologia no caso de Agostino, ela foi exemplificada em uma expressão: Soli Deo Gloria.

Este parece ser o ponto em que nos encontramos atualmente. Estamos cercados por uma variedade de linguagens incompreensíveis, definitivamente cheias de “som e fúria, significando nada”. A ideia de questionamento histórico foi retirada de nossa expressão corrente de consciência coletiva, que não parece consciente ou ciente de nada, exceto do presente como representado pelos fugazes noticiários. Oakeshott oferece um antídoto para a ideologia do tempo e nos convida para um encontro com a história.

[1] Usei frase no sentido do texto, mas sem a metáfora das “águas agitadas”.

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Sobre o autor

Emina Melonic

Escritora e crítica bósnia radicada nos EUA. Tem Ph.D. em Literatura Comparada pela Universidade de Buffalo e três mestrados: em Humanidades pela Universidade de Chicago, em Filosofia pela Universidade de Buffalo e em Teologia pelo Seminário Cristo Rei. Seu trabalho é divulgado nas publicações American Greatness, Splice Today, The Spectator, Law and Liberty, New English Review, The New Criterion, National Review e The University Bookman, entre outras.