Sala Michael Oakeshott

Notas sobre “A Place of Learning”, de Michael Oakeshott

OAKESHOTT, Michael Joseph. A Place of Learning
In: The Voice of Liberal Learning, 1975.

“A Place of Learning” (Um Lugar de Aprendizado) é o ensaio que abre a coletânea The Voice of Liberal Learning, de Michael Oakeshott. Publicado em 1975, não antes dos outros escritos que compõem o volume, foi escolhido para iniciar o leitor ao seu pensamento sobre educação por um motivo bem claro. Para além do propósito explícito no título, adianto, definir o mundo da experiência como o lugar de aprendizado, Oakeshott nos convida a um diferente entendimento da “natureza” humana que será fundamental para a compreensão do pensamento do autor. A proposta deste artigo, portanto, é registrar os principais tópicos debatidos pelo Núcleo de Filosofia Política e traçar o caminho argumentativo do ensaio em questão.

Em primeiro lugar, “A Place of Learning” não começa com a tentativa de entender o que é a educação ou com qualquer outra questão dessa natureza. Oakeshott começa com a investigação do que é o homem. Das diversas manifestações de entendimento que temos de nós mesmos, só é possível concluir que podemos ter um entendimento próprio a respeito da nossa natureza. Essas manifestações surgem de uma inquietação do homem de querer definir a si mesmo, e nos acompanham desde sempre – são inerentes a nós. E isso é o que ele define como homem “livre” (“free man”). Não é negada a natureza biológica do homem, mas sim ressaltado que existe seu complemento, a mente, capaz de “agir de forma inteligente”, que explica fenômenos que não explicam a si próprios. A mente organiza, por meio da razão (juízo), o que percebe do mundo e cria um sentido próprio; nessa criação reside a liberdade: liberdade para afirmar a si mesmo.

“Um ser humano é “livre”, não porque tem “livre-arbítrio”, mas porque é em si o que é para si.”

E a ação inteligente que possibilita tal liberdade de juízo tem seu início e seu fim no pensamento: o que caracteriza o ser humano são os seus pensamentos. Como todas as formas de pensamento (preferências, emoções, etc), e suas manifestações em ações dotadas de sentido, têm como sua condição necessária a educação (aprendizagem), é dito que a educação é condicionante da liberdade humana e define o entendimento que o homem tem de si. O que o homem pensa, diz e faz é o que ele aprendeu. Essa noção deve muito à definição aristotélica do homem como animal racional. O que nos diferencia dos demais animais é uma faculdade, não apenas uma característica dada. Somos humanos por exercermos o raciocínio; em termos oakeshottianos, por nos engajarmos no aprendizado.

Essa inseparabilidade de aprender e ser humano é central para nossa compreensão de nós mesmos. Significa que nenhum de nós nasce humano; cada um é o que ele aprende a se tornar. Significa que o que caracteriza um homem é o que ele realmente aprendeu a perceber, pensar e fazer, e que as diferenças importantes entre os seres humanos são diferenças em relação ao que eles realmente aprenderam.

Ou seja: o homem é o que entende de si e por isso é livre. O que entende de si são formas de pensamento, possíveis apenas por meio da educação, e a única “natureza” humana é a consciência e a inseparabilidade do agir humano da educação. No mesmo sentido, duas citações de Kant resumem bem esse pensamento: “o ser humano é aquilo que a educação faz dele” e “é no problema da educação que assenta o grande segredo do aperfeiçoamento da humanidade”.

A educação deve ser aqui é entendida como um fazer autoconsciente, não uma mera mimese comportamental ou execução mecânica de tarefas. É um “compromisso reflexivo que surge da vontade de aprender”. Por ser um fazer, não pode ser um objetivo final. A educação segue os próprios critérios e traça sua própria trajetória. E para que o caminho a ser percorrido seja descoberto é fundamental que a educação envolva autorreflexão; “conhece-te a ti mesmo” é “aprenda a conhecer a ti mesmo”, não pode ser um processo mecânico predefinido. [A] “vida humana é (…) uma aventura na qual uma consciência individual confronta o mundo em que habita” Esse enfrentamento é o processo de aprendizado, o reconhecimento e a internalização do mundo ao nosso redor; o mundo passa a ser um mundo humano porque o reconhecemos com nosso próprio critério – a partir do sentido que damos às coisas – e o sentido que damos às coisas precisa ser aprendido; logo, todos somos aprendizes. Além disso, por ser autoconsciente, depende da vontade humana para engajar nesse fazer. O mero contato com o ambiente propício ao aprendizado (que nos torna humanos) não é suficiente para o aprendizado, não é uma atitude responsiva e adaptativa.

Também em função disso, a educação não pode ter pretensões universalistas. Ela trata da relação do indivíduo com o mundo, e cada um tem particularidades, limitações e contextos diferentes, que serão decisivos para definir o caminho traçado pelo processo educativo. A ideia de uma unidade centralizadora que define a pauta da educação (o que será estudado nas salas de aula) é completamente oposta à proposta de Oakeshott de termos um modelo educacional baseado nas particularidades da experiência de cada aluno com o mundo ao seu redor.

Oakeshott passa então para a definição de onde deve acontecer o engajamento da educação: deve ser um lugar em que todos os frequentadores estejam dispostos a aprender; um lugar em que se aprende um objeto definido (o conteúdo, a tradição); e, por fim, um lugar que não seja preso ao aqui e agora da vida quotidiana. E o lugar que apresenta as características listadas é a universidade. Cada um nasce em um lugar em uma determinada época, mas a universidade é um lugar isolado onde um aprendiz é emancipado das limitações de seus desejos e circunstâncias locais e é movido por sugestões do que nunca sonhou. É nela que cada um pode ser inserido em uma tradição, aprender (e, principalmente, entender) habilidades e práticas que possibilitam a manifestação das vontades humanas. Um estudante entende mais de si quando percebe o seu redor e consegue se enxergar em meio a uma longa tradição – que está em constante formação conforme seu uso.

Chega-se então ao panorama geral do ensaio: a educação é liberal propriamente dita porque está livre das urgências da rotina. O estudante tem a oportunidade de imergir na “aventura do autoentendimento humano”, fazer parte de uma tradição, dentre várias, e perceber o que ela tem a dizer sobre o entendimento da condição humana. E o melhor lugar para esse investimento ocorrer é dentro de uma universidade, nela é possível o melhor contato do indivíduo com a cultura.

E, se as tradições estudadas para nosso autoentendimento provêm de uma herança de hábitos, sentimentos, técnicas e ideias, o conjunto dessas diferentes formas de manifestação do homem é o que chamamos de cultura. As forças que a compõem não são homogêneas e nem sempre coadunam umas com as outras, elas não formam uma doutrina, mas uma conversação. Cada voz desse diálogo é, então, um convite para entendermos a nós mesmos de uma perspectiva diferente. “Um homem é sua cultura, e o que ele é teve que aprender para se tornar”, “do ponto de vista do aprendizado liberal, uma cultura é (…) [o conjunto de] expressões que temos da autocompreensão humana”.

São muitas as tentativas de desvirtuar a proposta da educação liberal: um sistema voltado para o mercado de trabalho e técnicas próprias de ensino que separam o conteúdo da forma são algumas delas. Oakeshott explora os pormenores de cada um dos modelos de ataque, mas o ponto em comum de todos é negar a educação como uma aventura de autoconhecimento, negar o comprometimento de entender a tradição e se ver imerso em um mundo próprio que cada voz da conversação proporciona. Educação nunca pode ser confundida com um processo industrial, que tem métricas de eficiência e padrões uniformes de produção. Como dito anteriormente, a educação é um fazer com lógica própria, em que o caminho a ser percorrido é desvelado ao longo do trajeto; não existe um fim prévio e nem um ponto de saturação, o processo de se educar é a investida em entender melhor a nós mesmos.

Somando-se às tentativas de corromper o projeto de uma educação liberal, o mundo que nos cerca é cheio de acontecimentos, infindáveis trivialidades e seduções imediatistas. Somos tentados a nos deixar levar, sem o engajamento necessário para que entendamos a nossa própria condição. Um mundo com vontades, opiniões e apetites em excesso. A isso a universidade deve contrastar.

Por fim, a cultura – a inesgotável conversação – é um convite para o homem entender mais sobre si, um convite ao exercício da liberdade. O engajamento que surge desse convite é um retiro das urgências do quotidiano. Da mesma forma que precisamos de linguagem para manifestar ideias, desejos e sentimentos, as vozes dessa conversação nos dão o vocabulário do gênero humano. Nos vemos e nos identificamos em uma tradição, enxergamos o mundo de uma determinada perspectiva que está em contínua renovação. A educação é a possibilidade de o homem criar um sentido próprio em um mundo tão vasto. Leo Strauss diz que a educação é uma modesta troca com as grandes mentes. É a superação da nossa decadência natural – a superação da apeirokalia (vulgaridade/barbarismo). Educação é uma educação em cultura e seu produto acabado é o ser humano em cultura.

E talvez possamos reconhecer a aprendizagem liberal como, acima de tudo, uma educação na imaginação, uma iniciação na arte dessa conversa em que aprendemos a reconhecer as vozes; distinguir seus diferentes modos de elocução, adquirir os hábitos intelectuais e morais apropriados a essa relação conversacional e, assim, fazer nossa estreia na vida humana.

O relato contém pontos levantados por diversos pesquisadores; ainda que eles não tenham sido identificados, a exposição vai além do mero resumo do ensaio estudado e não seria possível sem a contribuição de cada um. Concluo, então, parafraseando o professor Luiz Bueno, que também marcou o fim do encontro:

A cultura não é um objeto, mas uma variedade de distintas linguagens do entendimento. Não é só algo para aprendermos e internalizarmos, pois não temos uma postura exclusivamente responsiva com o ambiente. A cultura é o próprio ambiente em que estamos imersos. O “place of learning” é a própria cultura, que é um processo dinâmico e contínuo. Criamos e somos criados por ela. Eliot afirmava que o problema de se politizar a cultura é que ela passa a ser avaliada por um elemento que não ela própria, ela passa a responder a uma plataforma de interesses. A cultura não é determinada pela educação, ao contrário. A educação é uma das vozes dessa conversação, é uma linguagem de entendimento do mundo, expressa uma linguagem do nosso entendimento. A cultura é (expressa) um entendimento de como somos agora, uma explicação de como vivemos. Não somos condicionados culturalmente, nós agimos culturalmente, nós somos a cultura. A cultura é o estar fazendo; é em movimento, não estática. O imediatismo do mundo atual impede a reflexão desvinculada do instante.

Imagem: Michael Oakeshott (autor não identificado)

Sobre o autor

Pedro Balen

Graduado em economia pela Faculdade de economia da Universidade do Porto. Pós graduando em administração de empresas pela FGV Rio. Pesquisador do Núcleo de Filosofia Política, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.