A mão naquilo, aquilo na mão. Assim se inicia efetivamente a vida erótica do ser humano, sem muito mistério ou novidade. É nesse vuco-vuco, ninguém sabe se é dois para lá, dois para cá. Depois do pulo do impulso, é no susto do improviso, tentativa e erro, entre desejo e medo, e costuma ser graças a uma falha na vigilância, na fresta de tempo em que os olhos dos pais dão mole.
Pelo menos, costumava ser desse jeito: começava com dar esperanças, depois ofertar o beijo, em seguida o prazer das carícias e, enfim, a entrega total. Há muito tempo essa era considerada a fórmula de Bhaskara para o amor, seus quatro graus, como escreveu André Capelão, no século XII, em Tratado do Amor Cortês. Diferentemente da matemática, essa nunca foi a fórmula certeira para alguma solução, mas para o princípio de muitos dos nossos problemas, alguns até bem saborosos.
Nossa conduta com relação ao sexo é um dos comportamentos que mais nos distingue das outras espécies (eu ainda acho que os nossos primos bonobos estão à nossa frente nesse quesito, mas, como sois dizer, quem sou eu na fila do pão?). Do ponto de vista biológico, fazer sexo e reproduzir-se é garantir a sobrevivência de nossa espécie. Em contrapartida, fazer sexo é opcional para o indivíduo, uma vez que não afeta diretamente sua sobrevivência, ao contrário de outros impulsos como fome e sede.
“A história da sexualidade humana tem sido marcada muito mais por mudanças do que por constância”, escreve o sociólogo William Simon. Hoje podemos falar de sexo mais abertamente e, sem exagero, nossa cultura nunca foi tão tolerante com o sexo. Mas estamos fazendo mais sexo? As pesquisas sugerem que não. A pergunta “você já fez sexo?” recebeu a resposta “sim” de 54% dos estudantes americanos do ensino médio em 1991 e de apenas 40% em 2017[1]. No espaço de uma geração, passamos de mais da metade dos estudantes dando o pontapé inicial em sua vida sexual para menos da metade.
O conceito de geração, vale mencionar, é oriundo do marketing americano dos anos 1950 e 1960, configurado no intuito de mapear os jovens encarregados de reconstruir os EUA no pós-guerra. O conceito acabou migrando para a sociologia, antropologia, economia, “psicologia e mesmo para a filosofia”, virando uma “ferramenta de análise do mundo contemporâneo” (Pondé, prefácio do livro IGen).
Então, em 1995, veio a geração Z. É a primeira geração nascida em um ambiente completamente digital. Em pesquisa para traçar o perfil desses jovens, a psicóloga Jean Twenge (2018) identificou que, em relação às gerações anteriores, a geração Z (ou iGen) adia o amadurecimento, sofre mais mentalmente e tem mais medo de sexo.
Adultar é chato, essa é a mensagem introjetada pela geração Z (e por alguns adultos). Convenhamos, sexo é coisa de adulto, e ser adulto é ter responsabilidades. Só que, olhando os pais desses jovens, a conclusão de que ser adulto é chato porque dá trabalho demais tem até respaldo. Pais paranoicos e que não tombam as pálpebras por um instante sequer, porque não confiam nem neles mesmos. Hipervigilantes, estão tão dedicados a fazer filhos melhores para um mercado cada vez mais competitivo, que as crianças acabaram viciadas em atenção parental (Furedi, 2008). O fato é que os jovens tampouco querem ficar sozinhos e, em termos de estrutura emocional, não dão conta, pois estão mentalmente frágeis.
Os índices de depressão e ansiedade dispararam desde 2011. Cresce a todo momento o número de crianças diagnosticadas com uma doença psiquiátrica (Furedi, 2008). Verdade que a oferta do catálogo de doenças aumentou. Em 1952, havia 106 categorias diagnósticas no DSM I, o manual americano de estatística dos transtornos mentais; já em 2013, na sua quinta edição (o DSM 5), passamos para mais de 300 categorias – ou seja, o número praticamente triplicou. Como disse o psiquiatra infantil Francisco Assumpção-Jr. em um simpósio recente, logo vamos funcionar igual ao alienista de Machado de Assis, com exceção do psiquiatra e do psicólogo, todo o restante vai ser louco.
A libido moderna também não anda bem das pernas. Parece que está funcionando no volume-morto. Pressão econômica, privação de sono, ansiedade, estrógenos ambientais liberados por plásticos, redução dos níveis de testosterona, pornografia digital, obesidade, preocupação com o rótulo de assédio, amplo uso de antidepressivos – a lista vai longe. A libido moderna não tem um minuto de sossego. Nem o indivíduo, empreendedor de si mesmo, ávido consumidor de bens e significados, encontra um segundo de paz.
Hoje, todo mundo se posiciona como consumidor diante da vida. Mas o erotismo é consumível? O erotismo, segundo o escritor francês Georges Bataille (2014), dá-se entre dois polos, o do interdito e o da transgressão. O mundo do interdito é o mundo do trabalho, da identidade, da conservação, é o domínio da utilidade. A transgressão é a experiência do pecado, é o ápice do humano, é o domínio do inútil. O erotismo é um gasto inútil de energia e, consequentemente, o erotismo atrapalha o trabalho. Portanto, podemos supor que o maior terror do hipercapitalismo é a orgia: é muita gente não trabalhando e não comprando.
Nem só o capitalismo teme o erotismo. “O sexo é um jogo muito arriscado”, “é o sexo que perturba nossas vidas naturalmente ordenadas” (Roth, p. 34). Sexo envolve riscos. Não podemos esquecer que “o homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança” (Freud, 1997, p. 72). Acontece que, para o homem, não basta estar seguro, ele precisa se sentir seguro, e sexo gera ansiedade.
E temos uma geração de jovens mais seguros fisicamente e mais vulneráveis mentalmente, além de muito preocupados com o corpo exposto nas redes sociais. É importante lembrar que, no sexo, a ação decisiva é o desnudamento. Todo jovem sofre eventualmente com relação ao próprio corpo. Como que fica sem roupa, sem filtro, sem edição, sem legenda inteligente? E, pior, sem PROCON? É um bicho indefeso num descampado. Mas, afinal, essa não é a condição humana?
“A sexualidade é inseparável do nosso paradoxo existencial, o dualismo da natureza humana” (Becker, 2019, p. 65). Somos assim: metade bicho, metade símbolo. Resultado: “um animal hiperansioso que inventa constantemente razões para sua ansiedade” (Becker, 2019, p. 38). Ernest Becker (2019) escreveu que “o que realmente incomoda as pessoas é a incongruência, a vida tal como é” (Becker, 2019, p. 57). Para ele, nossas angústias são angústias de vida e morte, “o sexo faz parte do corpo, e o corpo é da morte” (Becker, 2019, p. 201). Para que adultecer, se adultecer é envelhecer e envelhecer é se aproximar da morte?
Melhor deixar para depois. Ironicamente, apesar de evitarem a intimidade, esses jovens dizem querer um relacionamento duradouro no futuro – relacionamento este que certamente os espera (em suas fantasias) na prateleira do supermercado, com um extenso rótulo descrevendo todos os componentes, projetos, metas de curto e médio prazo, ideologias e, óbvio, com selo de troca.
Para Byung-Chul Han (2017) e Ernest Becker (2019) a depressão é uma forma de se evitar o ônus das responsabilidades; assim, é mais negócio não ter oportunidades e nem procurar por elas, o que é o mesmo que evitar ter autonomia. No entanto, a vida erótica não é terceirizável. O erotismo é uma ousadia individual, “é a aprovação da vida até na morte”, “é uma exuberância da vida” (Bataille, 2014, p. 35). Portanto, o erotismo é arriscado, requer coragem.
Em As obras do amor (2013), o filósofo e teólogo dinamarquês Søren Kierkegaard escreveu que o amor se conhece pelos frutos. Parece que agora quem deveria regar a árvore não quer encher o balde ou tem medo da árvore. Ou será que estamos numa geração de entressafra?
Referências bibliográficas
Bataille, G. (2014). O erotismo. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora.
Becker, E. (2019). A negação da morte. 11ª ed. Rio de Janeiro: Record.
Freud, S. (1997). O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago.
Furedi, F. (2008). Paranoid Parenting: why ignoring the exports may be best for your child. New York: Continuum.
Han, B. (2017). Agonia de Eros. Petrópolis: Vozes.
Kierkegaard, S. A. (2013). As obras do amor: algumas considerações cristãs em forma de discursos. 4ª ed. Petrópolis: Vozes.
Roth, P. (2006). O animal agonizante. São Paulo: Companhia das Letras.
Twenge, J. M. (2018). Igen: por que as crianças superconectadas de hoje estão crescendo menos rebeldes, mais tolerantes, menos felizes e completamente despreparadas para a idade adulta. 1ª ed. São Paulo: nVersos.
[1] Fonte: Centers for Disease Control and Prevention’s Youth Risk Behavior Survey.
Imagem: Heritage Library