A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade

Ordem, caos e responsabilidade

Cada experiência humana está, de alguma forma, perpassada pelo Caos e pela Ordem. Como seres humanos, contamos com a estabilidade e com a previsibilidade do mundo ao nosso redor, como o nascer do sol, o passar das horas em determinado ritmo, o funcionamento social de acordo com valores compartilhados… contamos com a ordem porque, quando sabemos o que esperar, simplificamos o mundo.

Mas a imprevisibilidade da vida é inegável. Apesar da relativa ordem que nos rodeia, somos constantemente lembrados da possibilidade de as coisas saírem do controle. Exemplo recente vivido com a pandemia em 2020, quando, do dia para a noite, toda normalidade se transformou em uma desconhecida realidade, sem garantia de retomada da ordem anterior. Nosso apego à estabilidade é tanto, que muitos tiveram dificuldades para entender que não se tratava apenas de uma quarentena de quinze dias.

Em 12 regras para a vida – um antídoto para o caos, Jordan Peterson descreve a Ordem como o território explorado, aquilo que é familiar e conhecido. É o espaço e o tempo em que os axiomas invisíveis pelos quais vivemos organizam nossas “experiências e ações para que o que deveria ocorrer, de fato, ocorra” (p. 37). Essa afirmação é tão verdadeira que nos estruturamos enquanto seres humanos a partir dessas noções. Winnicott, psicanalista inglês cujo trabalho sobre amadurecimento humano é extenso e profundo, afirma em O primeiro ano de vida: uma nova visão sobre o desenvolvimento emocional:

Pela mente, a criança é capaz de usar o tempo como forma de medida e também medir o espaço. A mente também relaciona causa e efeito. (…) é a mente a responsável pela gradual aquisição, pela criança, da capacidade de esperar a comida ficar pronta, enquanto ouve os barulhos que indicam a proximidade da hora de alimentação (WINNICOTT, 1958/1980, p. 9).

Enquanto seres humanos, precisamos das dimensões de tempo e espaço para que seja possível a estruturação de uma noção de “eu”. A ideia de espaço nos permite entender que temos limites físicos, limites esses que nos separam do “não-eu”. Enquanto a noção de tempo, mesmo quando somos bebês, nos ajuda a suportar e esperar o atendimento de nossas necessidades. Além disso, na medida em que relacionamos causa e efeito, ou seja, certa previsibilidade em determinadas situações, passamos a nos dar conta dos limites de nossas ações. Entendemos que nossas atitudes têm consequências e, por isso, são importantes.

A Ordem é tão importante para o ser humano que, se o ambiente for caótico e inconsistente no início da vida de um indivíduo, ele não consegue se integrar em um si-mesmo pessoal. Ele não consegue ter noção da própria existência. Winnicott defende que, em um primeiro momento, o bebê humano precisa que a mãe (leia-se, aqui, ambiente) se adapte prontamente às suas necessidades, para que ela experimente certa continuidade de ser. Precisamos de um contexto em que possamos confiar.

Mas e o Caos? Peterson diz que, apesar da possibilidade de o Caos ser insuportável, a Ordem não nos é suficiente. Em um mundo completamente previsível, só haveria monotonia. Quando sabemos exatamente o que esperar do minuto seguinte, o que nos resta? Se não enfrentamos desafios, corremos o risco de cair em um tédio absoluto, nos tornando enfadonhos e sem graça. O óbvio aparece: estagnados, não temos para onde ir. De um jeito interessante, ao fazer um paralelo com a famosa história do Jardim do Éden, Peterson parece quase agradecer a entrada da serpente no Paraíso:

[…] mesmo se fosse possível banir permanentemente tudo de ameaçador – tudo de perigoso (e, portanto, tudo o que é desafiador e interessante), significaria que outro perigo emergiria: o infantilismo permanente e a inutilidade absoluta dos seres humanos. […] Talvez Deus achasse que Sua nova criação conseguiria dominar a serpente e considerou a presença dela como o menor dos males. (PETERSON, 2018, p. 48)

Individualmente, em nosso processo de amadurecimento pessoal, precisamos que o ambiente responsável por cuidar de nós comece a falhar. Paradoxal, mas, caso contrário, nos manteríamos eternamente na dependência absoluta. “De acordo com a crescente necessidade que o bebê tem de experimentar reações à frustração” (WINNICOTT, 1967, p. 4), a adaptação do ambiente às necessidades dele vai gradativamente diminuindo. Temos a necessidade de experimentar a frustração para que possamos encarar a realidade, amadurecer e nos tornar responsáveis.

A realidade, por si só, abriga o Caos. É claro que ele pode ser insuportável, quando não encontramos nada familiar e estável para nos apoiar por muito tempo. Mas, paradoxalmente, necessitamos da abertura para as possibilidades que somente o desconhecido nos proporciona. Em termos winnicottianos, talvez seja possível dizer que a realidade, por si só, abriga a ambivalência. Sentimentos bons e ruins estão presentes na realidade interna de todos os seres humanos. Todos gostam do sentimento de conquista, mas a frustração nos mostra em que podemos melhorar, nos desafia a continuar em frente. Não temos o controle de tudo e a realidade nos mostra isso constantemente.

A palavra-chave para uma possível aproximação entre Jordan Peterson e Winnicott parece ser responsabilidade. A Regra nº 2 proposta no livro de Peterson é: Cuide de si mesmo como cuidaria de alguém sob sua responsabilidade. Se você não for responsável pela própria vida, outra pessoa será sobrecarregada pela necessidade de cuidar dela e de você. Mas agindo com maturidade você poderá, de certa forma, aliviar o fardo das pessoas ao seu redor e tornar o mundo um lugar melhor. Winnicott também aponta que a capacidade de lidar com e se responsabilizar pelas próprias ações e conflitos é característica de um sujeito maduro e saudável:  

O principal é que o homem ou a mulher sintam que estão vivendo sua própria vida, assumindo responsabilidade pela ação ou pela inatividade, e sejam capazes de assumir os aplausos pelo sucesso ou as censuras pelas falhas. Em outras palavras, pode-se dizer que o indivíduo emergiu da dependência para a independência, ou autonomia. (WINNICOTT, 1967, p. 10).

Com certa ousadia, Peterson também nos aponta um possível caminho de equilíbrio, ao dizer que devemos colocar um pé firmemente na ordem e na segurança, onde o terror da existência está sob controle, e outro no caos, na possibilidade, no crescimento, onde estamos alertas e engajados. Ouso dizer que se trata de um espaço potencial, onde a experiência e a criatividade caminham juntas. É nesse lugar que encontramos o significado.

Referências

PETERSON, Jordan. 12 regras para a vida: um antídoto para o caos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018.

WINNICOTT, Donald Woods. (1967) O conceito de indivíduo saudável. In: Tudo começa em casa. Tradução de Paulo Sandler. 3 ed., p. 3-22. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Imagem: Heraldo Galan

Sobre o autor

Lorraine Bim

Mestranda em Psicologia Clínica pela PUC/SP; psicóloga pela Universidade de Taubaté e pesquisadora do Núcleo de Filosofia Política e do Grupo de Pesquisa A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ