A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade

Democracia, amadurecimento e o que Paulo Francis tem a ver com isso?

Se o povo está determinado a acabar com a democracia, ao menos em sua definição dentro dos termos estabelecidos pela semântica do chamado Estado Democrático de Direito, quem há de ser contra? A favor, sustentando que o povo é favorável à democracia e à liberdade, uma dúzia de populistas à espera de lhe ser o porta-voz. Roger Eatwell (2002) os chama, povo e porta-voz, de Nacional-Populistas. Embora o nome seja feio, nos fazendo lembrar de tenebrosos passados, o autor não lhes atribui a alcunha “fascistas”, desculpando-lhes os maus modos argumentando que a oposição é a certos aspectos da democracia liberal, como, por exemplo, a falta de representatividade das instituições. Yascha Monk (2018) diz que a democracia liberal vem sendo ultrapassada, na corrida pelo gosto popular, por duas formas do exercício democrático que se querem mais ágeis, a democracia iliberal e o liberalismo antidemocrático – fora as formas autoritárias. Na democracia iliberal, se supõe ser descartável a tolerância em nome do exercício do poder pelo povo. Exemplos: nos EUA, a eleição de Donald Trump; no Brasil, Bolsonaro; na Europa, os bons resultados eleitorais de uma extrema-direita que voltou sem nunca ter ido; na Hungria, Orbán; na Itália, os populistas e Movimento Cinco Estrelas; na Grã-Bretanha, o Brexit; nas portas das universidades, os cartazes contra os fascistas que não passarão. No liberalismo antidemocrático, altas autoridades não eleitas fazem avançar o progresso em detrimento da opinião do povo. Exemplos: no alto escalão do funcionarismo burocrático sem mandato, as decisões “técnicas” dos engravatados da União Europeia ou dos togados das altas cortes judiciais dispensam a voz de Deus.

Ambas as formas parecem amarrar um bode, como se dizia antigamente, quando expostos aos pesos e contrapesos das instituições e do complexo ritualístico, formal, processual e burocrático da democracia liberal. Especialistas em bode disseram que o problema estaria justo em seus corpos intermediários, aqueles que obrigam a que a satisfação seja adiada. Temos pressa e queremos tudo para agora, o que se choca com a democracia liberal em seu core, a espera, a mediação. Aos apressadinhos, a existência de mediações adiando a satisfação imediata ao complemento da frase “tenho direito a” ou limitações a validade da frase “o poder é do povo” lhes parecem o amálgama de engrenagens enferrujadas e carcomidas, eflúvios de tempos imemoriais em que o poder, juntamente com as empertigadas perucas, era legado aos consanguíneos. Como resto, dado à percepção popular, a sugestão de tantas e tantas camadas médias que compõem a democracia liberal mais não são do que o lugar em que o poder é propriedade de algum grupelho conspirador que, às escuras, trama o rumo de toda coletividade. 

Não é preciso concordar com percepções e formulações paranoicas e amalucadas sobre a democracia liberal para reconhecer, objetivamente, suas falhas – seja pelo dito elitismo seja pelo fosso entre representados e representantes, abuso de poder ou pelas promessas não cumpridas.

A democracia liberal não é das melhores, pode-se dizer. Mas, será mesmo por isso que ela esteja a um quezinho de ser descartada? E o que se estaria sendo descartado na democracia liberal, senão

o respeito aos direitos básicos das pessoas e aos direitos políticos dos cidadãos, incluídas as liberdades de associação, reunião e expressão, mediante o império da lei protegida pelos tribunais; separação de poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário; eleição livre, periódica e contrastada dos que ocupam os cargos decisórios em cada um dos poderes; submissão do Estado, e de todos os seus aparelhos, àqueles que receberam a delegação do poder dos cidadãos; possibilidade de rever e atualizar a Constituição na qual se plasmam os princípios das instituições democráticas. E, claro, exclusão dos poderes econômicos ou ideológicos na condução dos assuntos públicos mediantes sua influência oculta sobre o sistema político. (CASTELLS, 2017)

E não são justamente os corpos intermediários da democracia liberal os garantidores da mansidão dos lobos?

Não é necessário o vínculo entre algo que falha e seu descarte em nome de uma novidade qualquer; mais importante que as falhas da democracia liberal são as razões pelas quais suas falhas a torna insuportável.

Em nosso metier, uma hipótese psicológica se faz necessária: o vínculo entre democracia e amadurecimento pode esclarecer por que nos parece lógico trocar a democracia liberal mediada por algo mais “à mão”, mais imediato. 

D. W. Winnicott, a propósito da democracia, disse que a justificativa para uma investigação psicológica está no elemento maturacional, porque para ele a “democracia é definida como uma sociedade bem ajustada a seus membros saudáveis” (WINNICOTT, 2021). De modo que a razão da “revolta crescente contra a política e os valores liberais convencionais” (EATWEEL e GOODWIN, 2020) não se deve apenas aos aspectos objetivos das falhas da ordem liberal. A “crise de legitimidade política” (CASTELLS, 2017) pode ter suas raízes em casa, onde se gesta, se vê nascer e se sustenta (ou não) o crescimento do fator democrático inato, que é o termo usado pelo psicanalista inglês para dizer que uma democracia depende de que a quantidade de indivíduos maduros supere a quantidade de indivíduos antissociais. O psicanalista nos apresenta uma “álgebra” em que o fator democrático inato é o resultado da totalidade dos indivíduos que compõem uma sociedade, subtraídos os indivíduos saudáveis, os antissociais, os antissociais ocultos e os indeterminados. Há um jogo mútuo de relações, influências e cuidados entre os indivíduos maduros, os antissociais à céu aberto (aqueles que romperam de vez com a sociedade, sentem que a sociedade lhes deve algo, e, no afã de o tomar de volta, lhes é impossível empatizar com o outro), os ocultos (os que precisam projetar fora de si o conflito impossível de conter, quem sabe aderindo a uma figura forte: o populista, antidemocrata liberal ou o democrata iliberal) e os indeterminados (que ainda estão amadurecendo, separando os mundos interno e externo e que, portanto, podem ir para um lado ou para o outro). Pouco interessa aqui as especificidades, importa o aspecto geral, a incapacidade para lidar com os conflitos, ambiguidades e paradoxos e, portanto, com a realidade.

Grosso modo, uma pessoa madura pode conter em si um conflito, seja interno seja externo, sem a necessidade de o fazer desaparecer milagrosamente. Exemplo é o voto secreto que faz com que, durante um tempo, uma pessoa tenha que identificar o conflito fora de si, trazê-lo para dentro de si, suportar que tal conflito reverbere compondo com as tensões internas pessoais (as maluquices próprias) resultando na escolha do abençoado que nos governará por um tempo:

no exercício do voto secreto, toda a responsabilidade pela ação é assumida pelo indivíduo, se ele for suficientemente saudável para isso. O voto expressa o desfecho de uma luta dele consigo mesmo, em que a cena externa é internalizada e associada ao interjogo de forças em curso em seu mundo interno pessoal. Isto é, a decisão de como votar é a expressão da resolução de uma luta interna. (WINNICOTT, 2021)

Os indivíduos antissociais ou imaturos, na impossibilidade de lidar com os conflitos internos e externos, aderem a imagem construída do “mal” como deflexão do conflito pessoalmente insustentável. “Como os populistas não estão dispostos a admitir que o mundo real pode ser complicado” (MONK, 2018), diz Winnicott (2021) que os imaturos são “pró-sociedade, mas anti-indivíduo”. Adesões a soluções populistas, autoritárias ou pedidos por democracia “mais direta”, menos mediada, têm aí sua base emocional porque permitem “encontrar e controlar a força conflitante no mundo externo, fora do self” (WINNICOTT, 2021).

O fator democrático inato é o efeito de uma sociedade constituída majoritariamente por elementos maduros – aqueles que puderam avançar na linha do amadurecimento; dito de modo mais descritivo, os que alcançaram as matrizes unitárias para viver os conflitos internos e externos, suportam as tensões que lhe são decorrentes, vivem as convocações agressivas e têm abertura empática (concernimento) para com o outro.

Como na tragédia, trilhar a linha do amadurecimento depende de condições ambientais satisfatórias enquanto suportes para a realização das “tarefas” (DIAS, 2021) maturacionais.

Em sua ausência, presença excessiva ou ineficácia, resta o destino.

Onde a maturidade começa

Winnicott acredita que tudo começa em casa. A casa sustenta as condições para que o amadurecimento aconteça: “Numa sociedade o fator democrático inato deriva do funcionamento do bom lar comum” (WINNICOTT, 2021). Mais especificamente, o pediatra e psicanalista se refere aos primórdios da relação mãe-bebê, em que a dedicação da mãe a seu bebê constitui a “capacidade para maturidade emocional futura” (WINNICOTT, 2021). E daí seguindo para a família mais extensa e dessa, para escola e sociedade. 

Como esse conselho está fora de moda, estamos encalacrados.

O que Paulo Francis tem a ver com isso?

Numa entrevista ao Roda Viva (1998), Paulo Francis disse que para certos problemas do Estado brasileiro, como enfrentar lobbies que emperram certas mudanças estruturais que beneficiariam o conjunto da sociedade, a democracia falha. Despontando, para o pânico dos presentes, o problema das relações entre democracia mediada, democracia imediata e autoritarismo ou regime de força, imediatamente um entrevistador experiente replica que tal inferência coteja o Estado autoritário, ao que o entrevistado responde, num momento posterior, “é um paradoxo!”.

Imaturidade política diz respeito a necessidade de negar as ambiguidades, os conflitos e os paradoxos.

Maturidade política não tem relação direta com o conteúdo do que se está afirmando ou negando, mas com a forma, se cabe ou não a sustentação das ambiguidades, dos conflitos e dos paradoxos.

A pressa por encontrar soluções unívocas através de formas diretas de exercício do poder, na democracia iliberal ou no liberalismo antidemocrático, decorre das inaptidões maturacionais para ter, manter e administrar as ambiguidades, os conflitos e os paradoxos.

Como o fator democrático inato depende da maturidade dos elementos que compõem a sociedade e que esta depende das condições de sustentação oriundas do lar comum, a democracia liberal tende a desmoronar junto com as paredes da casa (assunto para o próximo texto), nos fazendo evitar os conflitos, interno e externo, igualando conflitos, ambiguidades e paradoxos a perigos a serem indexados na censura benevolente dos sábios.

Referências

CASTELLS, M. Ruptura: A Crise da Democracia Liberal. Trad.: Joana Angélica d’Ávila Melo. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

DIAS, E. A Teoria do Amadurecimento de D. W. Winnicott. São Paulo: DWW Editorial, 2021.

EATWELL, R.; GOODWIN, M. Nacional-populismo: a revolta contra a democracia liberal. Trad.: Alessandra Bonrruquer. 1ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2020.

GENTILE, E. Quién es Fascista. Trad. Carlo A. Caranci. Alianza Editorial: Madrid, 2019.

MONK, Y. O Povo Contra a Democracia – por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

WINNICOTT, D. W. Algumas Reflexões Sobre o Significado da Palavra Democracia. In Tudo Começa em Casa. Trad. Paulo Cesar Sandler. São Paulo: UBU, 2021.

Imagem: Alisdare Hickson/Wikimedia Commons (Londres, 2023)

Sobre o autor

Ricardo Rodolfo de Rezende Prado

Psicanalista e consultor em escolas da rede particular de ensino. Graduado em Filosofia pela PUC-Minas, com formação e especialização em Psicanálise (Cinpp-Vale/Univap). Pesquisador do Grupo A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo /PUC-SP – LABÔ.