
A criação de filhos tem sido uma das mais desafiadoras e conturbadas tarefas da vida contemporânea. Com as ferramentas tecnológicas, é possível avaliar a qualidade de óvulos, espermatozoides e embriões, e definir que tipo de bebê se deseja gerar. Para além da eliminação de anomalias genéticas, pretende-se selecionar características físicas que se adaptem ao produto desejado pelos pais. Se isso ainda não é possível é para lá que caminhamos num futuro próximo.
Essa preocupação exacerbada também se observa em todas as tarefas do desenvolvimento. Manuais sem fim se dedicam a orientar os pais, desde a escolha do tipo de parto, escolha do método educacional, tipo de alimentação, etc. Somado a isso, uma enxurrada de diagnósticos obriga os pais a enquadrarem os filhos em alguma categoria patológica diante de qualquer situação que lhes pareça estranha – e que na maioria das vezes não passam de manifestações de integração do Estar Vivo de um organismo complexo e insondável como o ser humano.
Nesse sentido, entende-se que a Identidade Pessoal pode ser construída ou direcionada por meio de métodos educacionais, racionais e organizados. De posse de instrumentos ‘científicos’, pretende-se favorecer o surgimento de atitudes benéficas e eliminar o desenvolvimento de condutas perniciosas e socialmente destrutivas.
Esse fenômeno, que a um olhar desavisado pode parecer aleatório, tem suas origens bem localizadas já na década de 1920.
Frank Furedi analisa em uma detalhada pesquisa descrita em seu livro 100 years of Identity Crisis (100 anos de Crise de Identidade) o surgimento da Engenharia Moral criada com o intuito de reformar o comportamento humano, visando a construção de um mundo melhor para se viver. Seus adeptos atribuem às tradições culturais transmitidas pelas gerações passadas, e à moralidade a elas associadas, os dissabores enfrentados pela humanidade, na tomada de decisões e consequentemente nas principais tragédias sociais até então vivenciadas.
Segundo essa linha de pensamento, é possível – através de convencimentos racionais, argumentos supostamente científicos e uma condução que pudesse levar o indivíduo a rejeitar toda herança cultural e comportamental recebida da geração anterior – construir um homem mais consciente, mais produtivo, eficiente e evoluído. Para os teóricos da Engenharia Moral, as tradições e valores do passado – que segundo eles serviam para aprisionar e limitar a pessoa humana em padrões arcaicos e ineficientes – levariam o homem e a humanidade à destruição e ao retrocesso
Esse movimento efetivamente acabou se implantando nas principais áreas humanas – psicologia, sociologia, educação, política e muito do que vemos hoje no que chamamos de Crise de Identidade tem a ver com a disfunção provocada por uma intervenção que, sem perceber, acaba por interromper o amadurecimento vivo e saudável de uma geração.
Segundo Furedi, “O principal meio pelo qual o cientificismo deslocou a moral foi a Psicologia e, mais especificamente a medicalização da vida diária” (FUREDI, 2021. p. 12)
De forma geral, para a Engenharia Moral, a identidade é um “objeto” possível de ser construído a partir de treinamentos e escolhas racionais. Com base na Teoria do Amadurecimento de Winnicott, no entanto, podemos olhar tal fenômeno a partir de um outro ângulo.
Em primeiro lugar, Winnicott apresenta um novo modelo de desenvolvimento humano, afirmando que não é possível considerar o bebê sem o papel fundamental desempenhado pelo ambiente. Ele diz:
Certa vez arrisquei este comentário: “Não existe tal coisa chamada bebê”, significando com isso que se decidirmos descrever um bebê, encontrar-nos-emos descrevendo um bebê e alguém. Um bebê não pode existir sozinho, sendo essencialmente parte de uma relação. (Winnicott, 1947).
Essa relação marcará todo o desenvolvimento humano. Todas as tarefas do amadurecimento deverão ser avaliadas não só a partir da saúde física do bebê, mas da qualidade do ambiente e, principalmente da singularidade da relação da dupla bebê-ambiente ao longo dos anos. No início, uma mãe que se adapte suficientemente bem às necessidades do recém-nascido, amparada por um pai que tenha um papel e chame para si a responsabilidade que lhe caiba, a família extensa, a escola, a sociedade, e até a morte todos ambientes que fizerem parte da vida do indivíduo – este é o cenário onde a identidade é construída. Não apenas uma sobreposição de conceitos, técnicas e racionalidades, mas relações vivas seriam o suporte para a formação da identidade. Encontros humanos, ainda que norteados por valores culturais específicos de cada grupo social, promovem o fenômeno sempre imponderável e de certa forma imprevisível que resultará em um ser incomparável e único.
Ainda sobre esse processo, Winnicott afirma em uma carta para o Editor do Times (provavelmente na década de 1950)
O lar comum, no qual pais comuns estão fazendo um trabalho comum bom, provendo os bebês e as crianças daquela base para a saúde mental que os capacitará a se tornarem parte da comunidade. Não se deve permitir que nada interfira nisso, que não apenas é algo bom, mas também uma questão delicada e sujeita a perturbações. (Winnicott, 1950/1987)
Segundo Winnicott, o bom lar comum possui uma suficiência que não deve sofrer intervenção externa, pois cada sistema familiar está apto a conter e dar suporte a sua prole, conjugando as experiências que são vividas a fim de formar um novo indivíduo.
Para isso contribuem toda a bagagem recebida pelos pais em seus próprios lares de origem, e todo o conjunto cultural que os acompanhou gerando princípios naturais que serão não só transmitidos formalmente às gerações, mas participarão da tecitura do crescimento. Se tudo correr bem, a mãe e o pai se modificarão juntamente com o crescimento de seus filhos, oferecendo o suprimento e sendo usados para as várias tarefas do amadurecimento. Não se diz com isso que será esse encontro livre de sofrimentos e agruras. Tampouco que todas as mães necessariamente serão boas. Mas é desejável que elas tenham a possibilidade de desempenhar essa tarefa sem saber que o fazem, ou ainda que sejam criticadas ou desqualificadas quanto às suas decisões.
O melhor que um profissional pode fazer, segundo Winnicott, é permitir que a mãe se sinta confiante em si mesma e nos processos que surgem como resultado simples da manifestação da natureza humana na díade inaugurada pelo nascimento do bebê.
Quando a Psicologia, como ferramenta da Engenharia Moral e da Reengenharia do Comportamento, se dispõe a substituir os valores morais e culturais, mina a confiabilidade dos pais acerca de seu papel e sua eficácia, deixando-os perdidos. A exaltação dos especialistas como divindades inquestionáveis, possuidores do conhecimento científico que substituam os “arcaicos arcabouços morais destrutivos” não deixa lugar para o saber paterno, intuitivo e natural. A mãe não confia mais em sua maternagem, o pai não confia mais em sua habilidade e autoridade. A família é colocada em xeque em seu domínio e desrespeito à inteligência e proeminência de sua majestade, a criança. A multiplicação dos experts e a divisão das especializações acabam por turbinar esse mercado de ofertas de cursos, coaches, sugestões e estratégias que acabam por invadir a casa das famílias com receitas e soluções mágicas que raramente se comprovam.
O desamparo familiar, logicamente, é somado a questões infantis dos próprios pais que se sentem inseguros em conduzir a tarefa de maternar.
Um novo fenômeno observado com o advento das redes sociais foi a disseminação maciça de conceitos, orientações e profissionais tornados confiáveis por critérios discutíveis. Não somente os artigos acadêmicos, ou o conhecimento “cientificamente comprovado”, garantem a confiabilidade, mas o número de seguidores, o nível de popularidade do emissor ou ainda uma estratégia mercadológica aprazível. Não importa a veracidade do argumento, mas a imagem que agrada e o poder de convencimento do discursante. Não mais a Psicologia Profissional mas a psicologia popular – de vieses, de práticas insólitas, de experiências particulares transformadas em aplicações generalizadas sem comprovações de eficácia – é aceita e desesperadamente procurada.
Um pai de um filho único aclamado e imitado como entidade; mães de filhos recém-nascidos transformadas em coaches parentais, coaches de sono, troca de fraldas e amamentação… e a “mãe cliente” relegada a incompetente e fracassada. O filho entregue à arrogância e à estranheza de outros braços e a artificialidade de orientações científicas que acabam por substituir a única experiência que provocaria a integração – a naturalidade do encontro mãe e bebê.
Perde-se a tolerância (e a intolerância) necessária para provocar o devido confronto que na oposição necessária fará surgir o desenho de um novo indivíduo. Tudo é permitido, tudo é iluminação. Tudo precisa ser “pragmatizado”, toda experiência particular transformada em “manual”.
O adolescente não tem mais em quem “bater”, a quem confrontar ou a quem admirar, pois os muros geracionais transformaram-se em areia movediça da indecisão, da inconsistência e da dúvida.
Surge, então, esse “novo ente” para o mundo compartilhado sem o amadurecimento que deveria ter sido experimentado nos meandros das imperfeições e não saberes necessários para que sua IDENTIDADE se constituísse.
Com a audácia “mal curada” nos varais das relações familiares que já não existem porque os que a constituem abandonaram por incompetência atribuída por terceiros o “Barco do Ambiente Amadurecedor”, busca o indivíduo órfão de referências o reconhecimento da identidade montada, retalhada e estabelecida sob as colunas da sabedoria das redes sociais. Quer ser, mas só consegue falsear-se. Sem reconhecimento dos limites de si e do outro – o concernimento – habilidade que deveria ter sido construída no círculo benigno das relações maternas e paternas, não sabe seu lugar e não sabe o lugar do outro. Não sabe do legado do passado, tampouco respeita o trajeto e a experiência dos que lhe precederam. Confronta inadequadamente, quer sentar-se na cadeira do CEO sem sequer ter cumprido uma jornada inteira de trabalho. Fracassa, colapsa e desintegra-se. Não quer o processo, não quer a labuta. Quer uma nova ideia que lhe poupe o estudo e o caráter. Tem pressa de enriquecer, pois inveja o colega menos inteligente que, iluminado por uma sacada brilhante, se tornou famoso da noite para o dia. Seu sonho não é o legado, mas os milhões de ‘views’ que poderão transformar sua existência… Pobre órfão. Não é… nunca “Ser-á”…
Imagem: autor não identificado, Inglaterra, 1942 (Ministry of Information Photo Division Photographer/Wikimedia Commons)
