
Na entrevista que concedeu ao canal Democracia na Teia, em 2020, o antropólogo Michel Alcoforado falou dos resultados de suas pesquisas sobre tecnologia e relacionamentos amorosos. Disse que os aplicativos de relacionamento deram ocasião para que o amor seja metrificado. O infeliz que se lança à caça sexual em um desses aplicativos deve seguir as regras sobre as melhores maneiras de expor sua mercadoria – o corpo, por exemplo – na prateleira virtual, e aguardar as respostas quantificadas em likes, visualizações, entre outros critérios. Caso o candidato opte por fazer a exposição de sua figura sem camisa, para saber se agradou a freguesia, basta aguardar o feedback. Sendo positivas as respostas, continue; caso contrário, o macambúzio deverá cobrir suas vergonhas e esperar por resultados melhores – ou iludir-se colocando a culpa pelo seu fracasso na conta da feiofobia. Até no ramo do onanismo a tecnologia promete ao solitário uma experiência sexual de maior qualidade. Numa feira de tecnologia, foi apresentado um vibrador que, a partir de dados informacionais, sabe, melhor que o próprio quiromaníaco, o que deve ser feito. E se o usuário não se satisfizer, o erro é do usuário, claro.
Uma das consequências apontadas pelo antropólogo é o fato de que ficar em casa vendo Netflix, com senha compartilhada, é preferível a tirar o pijama, pegar o carro e atravessar a cidade para uma transa que, com tanta coisa em jogo, tende a ser rápida e insatisfatória. Por isso, o périplo, em obediência ao imperioso e inegociável desejo, “o que será que será, que dá dentro da gente, e não devia”, kraft de sublimação impossível, doravante é coisa do passado. Assistimos à abolição do “se” com função de pronome reflexivo que outrora integrava a palavra “relacionar-se”. Hoje, a palavra relacionar é conjugada com a palavra performar. Os algoritmos indicam quais comportamentos devem ser adotados no mercado das trocas afetivas para que o reclameaqui.com.br não seja acionado por algum consumidor sexual insatisfeito. Sendo calculáveis, as informações relevantes para a eficácia da relação oferta/entrega/satisfação do cliente estão disponíveis para qualquer cidadão emancipado, bastando para isso fazer o download da ferramenta em qualquer loja confiável de aplicativos, porque nelas há verificação contra sífilis (virtuais) e malware. Aquele tempo em que o encontro amoroso era envolto em uma aura de mistério, que a sedução se pautava pelos desacertos de insabidas regras de sedução “muito prazer, vamos dançar, que eu vou falar no seu ouvido coisas que vão fazer você tremer dentro do vestido” é coisa de quem tem mais de 70 anos. A noção de desejo enquanto mistério, quando o desejo do outro tinha a chave para o “meu” desejo, “pois quando eu te vejo, eu desejo o teu desejo”, foi substituído por um conjunto de regras sabidas e insossas que não resistem à concorrência com a Netflix. No lugar do obscuro desejo, o translúcido comportamento regrado pela eficiência. Não queremos mais saber de frio na barriga, queremos evitar as angústias dos encontros. Quando, porém, junto com a passagem do cometa Haley, acontecer de um encontro dar match evencer a concorrência com os streamings, forçando-nos, como ao salmão do Norte, a ir contracorrente até a boca do urso, queremos sair do quarto certos de que “demos conta” do checklist de tudo aquilo que nos dá a sensação de que não seremos pegos de calça-curta na hora H. Ou seja, o outro deve ter um manual de instruções. Melhor dizendo, queremos que o outro não seja outro, que seja igual à imagem virtual pré-construída, como fazem os engenheiros nas maquetes: todos os bonecos que nos representam atravessam a rua na faixa, os ciclistas trafegam pela ciclovia, os carros não são dirigidos por pessoas distraídas pelo celular e ninguém joga papel no chão.
Byung-Chul Han deu o nome de expulsão do outro a esse fenômeno social em que o outro só pode se apresentar enquanto igualdade, nunca como diferença. Em seus termos, o outro desaparece enquanto negatividade e emerge enquanto positividade. Negatividade é o outro como “mistério, o outro como sedução, o outro como Eros, o outro como desejo, o outro como inferno, o outro como dor” (HAN, 2022). A positividade se refere ao igual, àquela igualdade que não surpreende, que nos permite saber o que fazer diante do outro, que deve vir com o manual de funcionamento no bolso. Na vida sem angústia, os acidentes foram abolidos. Quem poderia dizer que vida assim fica sem graça e asséptica, já o disse no tempo em que se queimavam sutiãs. Para o antropólogo, nossa angústia é a de se encaixar no padrão exigido pelo outro, sendo que somos, portanto, obrigados a virar aquilo que o mercado quer. Submeter-se ao mercado (ou ao outro) não é apenas questão de economia, financeira ou libidinal.
Submissão é questão de amadurecimento e podemos ler isso na obra de Winnicott. Segundo o psicanalista, no começo da vida há duas possibilidades: ou o ambiente sustenta repetidamente o gesto espontâneo do bebê, matriz de instalação da contínua sensação de ser si-mesmo e base para que se alcance a realidade compartilhada; ou o ambiente não é capaz de sustentar o gesto espontâneo do bebê, caso em que substitui o gesto do bebê pelo gesto do cuidador, exigindo a sua submissão. Antes do bebê estar maduro para abrir mão de sua onipotência, se forçado nessa direção, o que lhe resta é defender o núcleo do si-mesmo através de um tipo de submissão chamada por Winnicott de falsoself, organização defensiva destinada a proteger o núcleo do si-mesmo, designado verdadeiro self. A função do falso self é proteger o verdadeiro self, mantê-lo guardado, escondido até que novas condições ambientais se apresentem e sejam dignas de confiança para que se arrisque na retomada do desenvolvimento congelado. A adesão aos algoritmos, como submissão ao que se espera de “mim”, pode ter por fundamento a operação do falso self protegendo o verdadeiro self de uma arriscada aventura, sentida como fadada ao fracasso, não apenas no mundo dos afetos, mas da espontaneidade interrompida. A preguiça de investir num relacionamento, mais do que um sintoma da liquidez do contato, tem as pegadas do amadurecimento castrado[1]. O pijama e a Netflix passam a ser mais interessantes, não por uma economia erótica ou pela adesão a uma lógica da mercadoria, mas porque protegem o self verdadeiro, que, retirado, vive em repouso na espera por uma oportunidade de (re)aparecer.
Pipoca e maratona de série é menos arriscado que um encontro casual.
Significa que toda Netflix é defesa tipo falso self? Não. Um charuto, às vezes, é só um charuto.
Referências
Livros:
HAN, Byung-Chul. A Expulsão do Outro: sociedade, percepção e comunicação hoje. Rio de Janeiro: Vozes, 2022.
LOPARIC, Zeljko. O paradigma winnicottiano e o futuro da psicanálise. Revista Brasileira de Psicanálise – Volume 42, n. 1, 137-150, 2008. Disponível em: untitled (bvsalud.org)
WINNICOTT, Donald W. Distorção do Ego em Termos de Self Verdadeiro e Falso Self (1960), in Processos de Amadurecimento e Ambiente Facilitador. Trad. Irineo C. S. Ortiz. São Paulo: Ubu Editora, 2022.
Audiovisual:
ALCOFORADO, Michel. Transformações na vida afetiva após os apps de relacionamento. [Entrevista cedida a] Luiz Felipe Pondé. Democracia na Teia, março, 29, 2020. Disponível em: Transformações na vida afetiva após os apps de relacionamento | Michel Alcoforado. Acesso em: 23 mar. 2023.
Canções:
RAMALHETE rua. Intérprete: Tavito. Compositor: Tavito e Ney Azambuja. In Tavito. Intérprete: Tavito. Rio de Janeiro: CBS, 1979. 1 disco vinil, lado A, faixa 2 (4 min).
MENINO do rio. Intérprete: Caetano Veloso. Compositor: Caetano Veloso. In Cinema Transcendental. Intérprete: Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Phillips, 1979. 1 disco, lado A, faixa 4 (2:28 min).
[1] A escolha do termo é estética. Não desconhecemos as discussões conceituais pertinentes ao uso do termo “castração” e sua reformulação no âmbito daquilo que Loparic chamou de paradigma winnicottiano.
Imagem: L’incontro amoroso – detalhe de aquarela de Filippo Indoni (Itália, 1908)
