Estudos Agostinianos

Sobre a Mentira (De Mendacio)

Resenha

Sobre a Mentira (De Mendacio)

de Santo Agostinho
Editora Vozes, 2018

Contexto histórico da obra

Agostinho escreveu Sobre a Mentira (De Mendacio) em 395. Oito anos após sua conversão. As acusações dos cristãos serem responsáveis pelo declínio do império romano o levaram a escrever algumas obras (A Cidade de Deus é um exemplo) para mostrar a falsidade dessas alegações. E um dos assuntos incluídos nesse esforço é a mentira (G. Greggersen). Além disso, Marcos Roberto Nunes Costa aponta a motivação pastoral; dada a frequência com que os fiéis mentiam. Isso o incomodava.

Um detalhe importante é que, nas suas Retratações (427), ele considera De Mendacio um texto “obscuro, espinhoso, cheio de dificuldades” (Retr. 1,17). Inclusive, declara ter ordenado sua destruição – ordem essa desobedecida pelos seus copistas. Sua insatisfação com esse texto, assim como sua preocupação com aqueles que pensavam haver tipos de mentiras necessárias, úteis e moralmente aceitáveis (“que havia um determinado tipo de mentira que se fazia ‘necessária’ para evitar um dano maior; ou então, que, no caso, a revelação da verdade não traria benefício algum”, G. Greggersen); moveram-no a escrever outro opúsculo: Contra Mendacium (420).

Foco de De Mendacio

Agostinho declara o foco do texto manifestando sua inquietação, como já dito, sobre o costume cotidiano de reprovar como mentira o que talvez não seja; ou julgar como “necessário mentir uma mentira honesta, conforme o dever e a misericórdia” (1.1).

Ele faz uma ressalva sobre piadas, que, a meu ver, destinou-se a não permitir uma interpretação da vida cristã como amarga, sombria, mórbida, sem alegria. Piadas “não são de modo algum enganadoras, embora não anunciem a verdade” (2.2). Faz parte do senso de humor; o qual também tem sua gênese no Criador.

Definição de mentira

Para Agostinho, “diz uma mentira quem tem uma coisa em sua mente e enuncia outra por meio de palavras ou quaisquer outros signos” (3.3). O restante da definição, exposta a seguir, mostra que Agostinho via a pessoa que mente repleta de maus propósitos: “o coração do mentiroso é duplo, ou seja, que nele existe um raciocínio duplo: pensa ou sabe a verdade de uma coisa, mas não a exprime, e diz outra no lugar daquela, sabendo ou pensando que é falsa” (3.3). Assim, o mentiroso não sofre fraqueza moral (akrasia). Ele mente deliberadamente. Este desejo de mentir reside na alma do mentiroso e nisto consiste a sua culpa (3.3). Ele reforça a motivação interna como definidora da mentira ao dizer que “não é todo aquele que diz algo falso que está mentindo, se crê ou opina ser verdadeiro o que diz” (3.3).

Oito tipos de mentira

Agostinho, ao levantar e responder várias questões em sua argumentação contra a mentira, parece usar o recurso literário conhecido entre exegetas religiosos como “diatribe”, no qual o autor responde a objeções de um interlocutor imaginário[1].

No parágrafo 5.5 toma exemplos das Escrituras do Antigo e Novo Testamentos (nos quais levanta as possíveis mentiras de Sara, Jacó, as parteiras egípcias, etc.). Até 5.9, sua conclusão é direta: “nunca é lícito mentir, nem é lícito, por consequência, ocultar alguma coisa mentindo” (10.17). Com este pano de fundo, um pouco adiante cita oito tipos de mentiras: 1) “aquele que se faz contra a doutrina da religião” (14.25), que é a pior de todas; 2) que prejudica alguém injustamente; 3) que beneficia alguém enquanto prejudica outro; 4) que é pelo prazer de enganar; 5) que é para agradar; 6) a que beneficia a um e leva prejuízo não físico a outro; 7) a que traz benefício próprio, não prejudica ninguém, mas não ajuda a ninguém; 8) que não prejudica ninguém, e que liberta alguém de prejuízo físico.  

Epílogo

Após as afirmações acima, analisa algumas passagens bíblicas, como o preceito de não jurar (Mateus 6.33-37) (15.28). E finaliza: “Fica claro, portanto, a partir de tudo que foi discutido, que os exemplos das Escrituras não aconselham outra coisa senão que nunca se deve mentir” (21.42), fazendo uma recapitulação desta conclusão com respeito aos oito tipos de mentiras. Com isso, encerra o opúsculo lamentando e criticando os que mentiam e usavam passagens das Escrituras para se defenderem e continuarem na prática da mentira.

Nota

[1] O apóstolo Paulo usa este recurso no capítulo 6 da carta ao Romanos; e Tiago também no capítulo 2 de sua carta.

Imagem: montagem com capa do livro resenhado sobre obra de Philippe de Champaigne retratando Santo Agostinho (século XVII)

Sobre o autor

Martinho Lutero Oliveira

Bacharel em Teologia Seminário Presbiteriano Brasil Central/Unicesumar – Maringá - PR. Especialista em Novo Testamento (Centro de Pós Graudação Andrew Jumper - Universidade Mackenzie – SP. Pós-graduado em Docência no Ensino Superior (Instituto Paranaense de Ensino – Maringá – PR; em Missiologia Cristã Contemporânea (Faculdade Unida de Vitória - ES); e em Estudos do Antigo Testamento (Unicesumar, Maringá - PR. Pastor Auxiliar na Missão Evangélica Praia da Costa (Vila Velha-ES). Pesquisador no Núcleo de Estudos Agostinianos do Laboratório de Política Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.