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A pandemia como um ativo político

No fim do mês (agosto de 2020), o período de mortalidade excessiva parecia estar chegando ao fim. Se não houvesse mais onda no outono, se uma ou duas vacinas passassem por seus testes de Fase III, se a economia acompanhasse o mercado de ações, Trump reivindicaria o crédito por ter evitado o desastre temido pelos epidemiologistas a um tolerável custo. A questão era se acreditariam nele ou simplesmente o culpariam pelas dificuldades econômicas e o caos dos protestos. O futuro político de Trump parecia claro em agosto: derrota em novembro. (…) No entanto, a análise convencional, associadas às metodologias de uma era passada, ainda tendia a subestimar o papel contínuo da desinformação on-line, nacional e estrangeira, e isso pode ajudar a explicar por que o resultado das eleições de 2020 se provou muito mais próximo do que as pesquisas previam. (Niall Ferguson. Catástrofe: uma história dos desastres – das guerras às pandemias – e o fracasso em aprender a lidar com eles. São Paulo: Planeta, 2021, p. 349.)

Agora muitos podem saber o que as pessoas já tinham percebido nos anos 20 do século passado: a pandemia é um evento sob um descontrole tamanho em que a ausência de qualquer possibilidade preditiva quanto ao seu início somente se equipara à suposição de quando ela chegará ao fim. Mas talvez outros aspectos possam ser levados em consideração nessa aproximação, em especial, o contexto histórico. A impaciência em relação à chegada das vacinas, bem como a predisposição para somente se ver os lados negativos e pessimistas devem fazer parte dessa comparação.

Chegamos à pandemia, em 2020, bastante turbinados e crentes na eficácia dos algoritmos, na nossa capacidade de sermos precisos e até na viabilidade das previsões. Acostumamo-nos a delegar essas investidas aos mais variados tipos de institutos de pesquisa, assim como aos centros médicos na maior parte das vezes, situados na Europa ocidental ou nos Estados Unidos. Grande parte do desconcerto inicial pode, quem sabe, ser fruto desse excesso de confiança.

Na sequência, buscamos toda sorte de indícios que pudesse atestar quem teria sido o culpado pelo acontecimento. Nessa direção, políticos obtiveram destaque, assim como autoridades que teriam deixado o vírus se apresentar ao mundo. Perdeu-se muito tempo com isso, ou talvez ele somente tenha sido aproveitado uma vez que o tivemos de sobra para imaginar, supor ou fantasiar: as gerações envolvidas nesse evento nunca viveram algo parecido e são, em sua maioria, bastante descuidadas com o conhecimento da história passada. Habituamo-nos também a nos desfazer de muitos de nós que viveram nos anos que nos antecederam.

Padecemos também de infodemia. Escolhemos as nossas leituras guiados pelo desejo de concordar que já tínhamos antecipadamente, e fizemos o mesmo para o tipo de informação que já nos chegava de modo enviesado, mas em sinal contrário. Demos atenção a todo tipo de ruído e microfonia, àqueles que tínhamos a predisposição para aceitar e aos outros que não contavam com nenhuma identificação. Mas tudo passava, contanto que nos pilhasse ainda mais e que viesse a confirmar que nada estava sendo feito, que a ciência tinha se equivocado, que os caminhos mais corretos tinham sido abandonados.

Demos igualmente espaço para todo tipo de crendice, como se falava no passado, aos rumores e boatos. Os chamados negacionistas foram bastante mencionados e divulgados, mas aparentemente não são um problema especificamente brasileiro, ao menos não em relação a serem um número expressivo. Áustria, Alemanha, França e Estados Unidos se destacaram nesse quesito, e exatamente por isso estão sendo superados pelo Brasil, que conta com mais pessoas vacinadas. Perdemos de vista o sentimento de estarmos agradecidos e de declararmos isso para mais de uma pessoa. Terminamos o ano de 2021 com a terceira dose da vacina podendo ser aplicada em muitos de nós, e falamos pouco disso. Permanecemos atados à política pequena, aquela que sinaliza em relação a quem devo me colocar como contra ou a favor. Isso também nos diferencia em muito da geração que viu a Gripe Espanhola.

Toda pandemia, terremoto, erupção de vulcão, ou qualquer acidente assemelhado sempre será um ativo político a ser disputado. Trata-se de escolher um lado em meio à aceitação inevitável da contingência e segui-lo. Na década de 20 não foi diferente.

Salvo o reconhecimento ao final de todo o sofrimento.

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.