
Você já deve ter passado por uma situação em que, falando sobre política, uma pessoa lhe interpela para dizer que a sua opção política é equivocada. Pela minha cabeça passam argumentos respaldados por uma suposta autoridade daquele que fala. E isso porque a pessoa que possui essa dose de assertividade dá uma carteirada, colocando-se no lugar de quem conhece a verdade sobre o assunto.
Já faz algum tempo que tenho pensado que muito dificilmente deixamos de proceder dentro do binômio proposto que é de uma classe que se julga superior e outra que pretende sair de seu lugar determinado. Repetimos o que se moldou na colônia e no império e reproduzimos os mecanismos de sobrevivência que tivemos que aprender na marra, sob o risco iminente do fracasso ou do esquecimento. Tenho dificuldade de perceber o que quer que possa sair dessa lógica que é a da dominação de um sobre o outro.
Podemos supor que tenha faltado a nós uma ruptura ao nível de uma revolução e que não fosse tornada corriqueira na forma da violência cotidiana que se abate sobre todos nós. Sensação de insegurança é uma verdade consistente que se constata no vidro do carro que é estilhaçado, no automóvel que é blindado ou nos achaques do estado que tem sócios no monopólio do uso da violência.
Somos kafkianos por proximidade, mas sem que tenhamos visto, como ele, alguns dos acertos da burocracia que lhe rodeava. Do mundo dito civilizado, adentramos com volúpia ao que quer que se pareça uma desconstrução. Mas jamais temos a mais insípida noção do que tenha sido uma prática de estado funcionando para nos servir. Menciono com frequência os chamados grandes intérpretes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda ou Raymundo Faoro, uma vez que manifestaram a sensibilidade na percepção do modo como conseguimos ajustar os nossos vícios mais nocivos ao aparato que se julgou virtuoso quando de sua elaboração pelos arautos iluministas.
A desigualdade de renda, raça ou gênero em nosso país tem sido iluminada e fustigada a todos nós desde antes de nascermos. Não que esses temas não sejam de fato, problemas reais e concretos. Mas estranhamos aqui as maneiras através das quais essas tensões são manifestadas publicamente. Mesmo que não seja somente um privilégio nosso, a pauta dos problemas sociais é bastante encampada pelo espectro ideológico de esquerda, uma orientação que ainda detém lugar de fala no Brasil, mesmo que suas práticas e atitudes possam ser mais e mais questionadas a partir de infâmias que são perpetradas: Ah, como o exercício do poder dá um barato tão bom!
Nessa dinâmica, podemos retomar a permanência do exercício da autoridade de uma classe sobre outra, o que reproduz uma sina havida em solo brasileiro. Por aqui, nomes próprios, cultura infantil, jardins da infância, colégios e faculdades, ter ou não uma religião. Livros e filmes indicados, aprendizado de línguas e viagens. Tudo isso e mais um pouco é bastante definidor da distinção de um grupo social sobre outro.
Cada um desses marcadores se configura em habilitações para o credenciamento de classe, que aliás não se mede somente pelo dinheiro, mas ele continua a ser bastante necessário. Relegar os seus efeitos é se manifestar como a favor de políticas públicas de distribuição de renda, o que já é uma manifestação de viés e de pertencimento a um lado.
Há um verdadeiro repertório de expressões informais que lhe designam como participante ou não desse grupo bastante fechado. Os elementos indicados acima atestam a dificuldade da situação. Tem dúvidas? Pesquise sobre esses dados em relação a quem você aprecia por estar antenado com as causas sociais, comprometidos com a cultura brasileira, que tenha se destacado na cena artística brasileira ou que seja um político de expressão junto ao espectro de esquerda em nosso país. Não esqueça de sondar a religião de simpatia.
Esses elementos reunidos fazem jus ao que Thomas Sowell nos dispôs como sendo o intelectual ungido:
“Ao lutar pela ‘justiça social’, ‘preservação do meio ambiente’, ‘abolição das guerras’, um sujeito se identifica como participante de algo muito maior, o qual transcende um simples conjunto de crenças sobre fatos empíricos. Essa visão o coloca num patamar moral superior, como alguém preocupado e misericordioso, promotor da paz no mundo, defensor dos oprimidos, alguém que luta por preservar a beleza da natureza e salvar o planeta da poluição perpetrada por outros que não comungam a mesma consciência. Portanto, diferentemente da primeira, essa é uma visão que torna o sujeito alguém marcadamente especial, e essas visões não são simétricas.” Thomas Sowell, Os Intelectuais e a Sociedade. São Paulo: É Realizações, 2011, pp. 132, 133.
Falta-nos conhecimento para julgar o modo como a superioridade intelectual se manifesta nos Estados Unidos de uma classe para outra. Mas, no entanto, sobram argumentos em nosso país que sinalizam a perpetuação de um estado de coisas que faz recordar, em alto em bom som, quem está no comando da situação e quem é o comandado. Marcadores de comportamento são abundantes e podem ser buscados nas pesquisas de opinião corretamente fundamentadas. Sugiro aqui que o aparato sociológico oferecido por Pierre Bourdieu (1930-2002) seja levado em consideração.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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