Uma comparação histórico-filosófica a partir de Gilles Lipovetsky
Em sua obra A Era do Vazio, o filósofo francês Gilles Lipovetsky traz um sentimento-chave para compreendermos o indivíduo contemporâneo. Trata-se da ideia de “indiferença pós-moderna”, algo que surge a partir do declínio cada vez mais acentuado das instituições, valores e finalidades que organizaram épocas anteriores. No entanto, mesmo com o findar dos significados, o sistema continua funcionando e as instituições reproduzem-se e desenvolvem-se – mas, como diz o autor, “em roda livre, no vazio, sem adesão nem sentido, cada vez mais controladas pelos “especialistas”, os únicos que querem ainda injetar sentido e valor onde já nada reina além de um deserto apático”.
Uma diferenciação válida pontuada pelo autor é a de que a “indiferença pós-moderna” não traz consigo o niilismo “passivo” – deleite comprazido na vacuidade universal – nem o niilismo “ativo” – de ânsia pela autodestruição. Trata-se, principalmente, da absoluta apatia pela contingência que nos rodeia. Diz Lipovetsky: “Deus morreu, as grandes finalidades extinguiram-se, mas toda a gente está a se lixando para isso”. Um deserto que não parece nos mostrar qualquer tipo de caminho e que não se traduz pela revolta, mas sim por uma indiferença pelo sentido, uma ausência inelutável.
O autor consegue sintetizar esse misto na busca por sentido enquanto sujeito flexível e efêmero moderno:
[…] pode-se ser simultaneamente cosmopolita e regionalista, racionalista no trabalho e discípulo de intermitente de certo guru oriental, viver em uma época permissiva e respeitar, escolhendo à lista, as prescrições religiosas. […] O pós-modernismo não passa de um grau a mais na escalada da personalização do indivíduo consagrado ao self-service narcísico.
A internet, que já se mostrou como uma poderosa fonte de informações, pode ser compreendida como um fator importante para a ideia de uma aldeia global, de um novo cosmopolitismo. A pandemia ainda intensificou a digitalização, o consumo de produtos, serviços e ideias através da web. Temos aqui um sentimento de vivermos em uma aldeia global, sem qualquer tipo de fronteira. E, uma vez que instituições políticas não são mais representativas e estão vazias de sentido, os sujeitos se fecham cada vez mais em si mesmos, buscando cuidados e a autopreservação. A proliferação de coachs, oferecendo um verniz filosófico partindo de antigas tradições para um individualismo e protagonismo do sujeito cada vez maiores, pode ser um ponto focal para analisarmos e traçar certos paralelos a partir da experiência histórica.
No ano de 323 a.C. ocorreu a morte precoce de Alexandre Magno e, consequentemente, a divisão de seu grande império, passando para os novos reinos formados no Egito, na Macedônia, na Síria e em Pérgamo. Dessa forma, era destruído o valor fundamental da vida espiritual da Grécia clássica, que era o ponto de referência do agir moral – conforme demonstrado por Platão, em A República, e Aristóteles, na Política. Obras nas quais seus autores apresentam suas teorias fazendo da pólis não uma simples forma histórica, mas a forma ideal de Estado.
Nesse contexto germinaram as monarquias helenísticas, que foram organismos instáveis e que não conseguiram lograr com êxito a tarefa de envolver os cidadãos ou construir um ponto de referência para a vida moral. A vida nos novos Estados se desenvolve independentemente da vontade deles. As novas habilidades valorizadas não são mais as antigas “virtudes cívicas”, mas são os conhecimentos técnicos específicos que nem todos possuem. O administrador da coisa pública torna-se um funcionário, um soldado, um mercenário e, concomitantemente, nasce o homem que, não sendo mais nem o antigo cidadão nem o novo técnico, assume uma postura de desinteresse neutro – quando não de aversão – perante o Estado.
O pensamento, com isso, não vislumbra uma alternativa à pólis e se refugia no ideal do cosmopolitismo, considerando o mundo todo uma Cidade, ocasionando a dissolução da antiga equação entre homem e cidadão, e o indivíduo é obrigado a procurar sua nova identidade. As ligações entre o homem e o Estado se tornam cada vez menos estreitas e obrigatórias; as novas formas políticas permitem a cada um forjar sua própria vida e a própria pessoa moral. Temos então as grandes correntes de pensamento do helenismo, que trazem para o centro e como o fim a felicidade a partir da autarquia, da autopreservação.
Esse é o ponto nevrálgico que observamos fazendo o paralelo com o período helenístico e a contemporaneidade, um contexto social e político que beneficiou pensamentos mais individualistas e que são recuperados agora, reinvestidos, em uma sociedade com indivíduos buscando a felicidade em si mesmos. A pandemia é um fator que pode ter acelerado esse processo, trazendo a necessidade maior de autopreservação e de autarquia.
No entanto, existem outras nuances que funcionam como motores para que essas filosofias sejam rememoradas e colocadas como guias de autoajuda em livros e cursos oferecidos pela internet. O próprio capitalismo moderno aloca o sujeito cada vez mais no papel de protagonista, tirando o ônus e custos das empresas. Inflando a busca pela felicidade em si e a partir de si, confundindo a autonomia com a autossuficiência e colocando em xeque qualquer tipo de discurso ou vida prática moral.
Na obra A Corrosão do Caráter, de Richard Sennett, notamos este aspecto logo no primeiro capítulo, em que o autor nos introduz a história de Rico, filho de um faxineiro chamado Enrico. Chamam atenção os modelos de vida e trabalho divergentes entre as duas gerações. O faxineiro estruturava sua vida de uma forma linear, mesmo pertencendo a uma classe social baixa, com poucas mudanças e conquistas cumulativas, trazendo um sentido dentro de sua existência e narrativa. Já a geração de Rico vive o contexto do capitalismo moderno, uma experiência flexível, um mercado dinâmico, com o tempo a ser gerido da forma mais produtiva possível, tudo a curto prazo e a partir do próprio indivíduo.
Dessa forma, o comportamento ético e moral perante a sociedade, as pessoas e as instituições também é alterado. O desenvolvimento da confiança mútua é dificultado, tornando cada vez mais árduo estabelecer um grau de representatividade e participação na comunidade. Rico enxerga esse dilema: ao mesmo tempo que tenta seguir e transmitir para seus filhos os valores éticos de trabalho que aprendeu com seu pai, percebe que existe um abismo entre a teoria e a prática, sendo incapaz de estabelecer em sua própria rotina o juízo moral que lhe fora ensinado.
Os valores, para Rico, se transformam em um caso de nostalgia que são retomados por ele para que tente guiar sua vida, ao mesmo tempo que não consegue estabelecer-se para seus filhos como um exemplo a ser seguido, já que a linearidade e estabilidade já não acompanham mais as narrativas cotidianas. Para Richard Sennett, a existência de Rico, assim como de todos, está à deriva.
Justamente esse reinvestimento em conceitos que tratam sobre a autarquia e o individualismo condizem com o atual mercado de trabalho, que foi potencializado pela pandemia, e a aceleração que ela trouxe na digitalização das funções. O modelo que já vinha separando os trabalhadores em filiais mais enxutas da empresa agora permite com que cada um fique em casa, transformando o indivíduo em uma ilha e afirmando ainda mais a impessoalidade perante seus colegas, aumentando a competitividade, como já alertava o sociólogo Ricardo Antunes.
Os discursos sedutores de conservar a si mesmo se inserem na lógica da indiferença que observamos atualmente. Da mesma forma que é uma ferramenta utilizada para corroborar o discurso da autogestão e do prazer como noções de liberdade, ambos valorizados pela hipermodernidade. O resultado é um esvaziamento das doutrinas helênicas, de seu contexto histórico e, mais importante, dos reais problemas filosóficos que os pensadores buscavam responder.
Referências
LIPOVETSKY, Gilles. A Era do Vazio. Lisboa: Edições 70. 1ª edição.
ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. Filosofia: Antiguidade e Idade Média. São Paulo: Paulus Editora. 1ª edição.
SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter. Rio de Janeiro: Record. 21ª edição.
TV PUC-RIO, Uberização do trabalho e o proletário da era digital. Youtube. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=e1aEgvIfz14>. Acesso em: 20 de set. 2021.