A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade

Mentira e misericórdia

Há mentiras que não são redutíveis à verdade como seu contraponto. Há mentiras que fazem mais do que ser o oposto da verdade; há mentiras que nos protegem contra o insuportável da verdade. Dessa natureza é que são feitas aquelas mentiras desejáveis, rodriguianas – aquelas que devem ser ditas por misericórdia.

Dias Gomes escreveu, em 1963, a peça O Berço do Herói, que mais tarde, em 1985, seria o estrondoso sucesso televisivo Roque Santeiro. A premissa da história é a de que toda a vida de uma cidade está ligada a um acontecimento que nunca acontecera. Teias de relações simbólicas, regras da ascensão comercial e financeira, poderes políticos, afetivos e sociais do município, tudo estava ligado ao acontecimento não acontecido. Quando a verdade do acontecido é revelada a alguns, o dilema ético passa a ser: se a verdade for revelada, a cidade desmorona. Ideia semelhante é trabalhada por Philip K. Dick em Humano é, conto publicado na coletânea Sonhos Elétricos (2018). Quando o marido de Jill Herrick, o intragável Lester Herrick, volta diferente de sua missão ao planeta Rexo IV – habitado por seres capazes de tomar o corpo do outro como hospedeiro e nele viver. A diferença entre o Lester que foi e o Lester que voltou está na ternura, no valor dado à Terra e, sobretudo, no amor que passa a devotar à mulher. Como a Lei de segurança contra invasores alienígenas impunha o extermínio do corpo habitado pela criatura estrangeira, o depoimento de Jill passa a ser decisivo para a condenação de Lester, ou de quem quer que esteja alojado em seu corpo. Jill decide declarar que é o marido, e não o alien, quem habita aquele corpo.

São mentiras que não estão em oposição a verdades. Ou melhor, são mentiras que contam verdades. É quando a mentira tem o sentido de defesa a nos proteger do encontro com uma verdade – como naquele curta metragem indiano de Ashim Ahluwalia, parte do longa Mentes Malignas (Amazon Prime, 2018): quando os olhos não são capazes de ver a verdade, é melhor deixá-la no porão.

O título interrogativo provocativo do Seminário de Verão de 2021 do LABÔ, O século XXI será da mentira, do marketing e da psiquiatria? me faz pensar que a psiquiatria sustenta, ou melhor, nos ajuda a sustentar a mentira que evitaria o encontro com aquele tipo de verdade capaz de, como em Édipo Rei, nos fazer arrancar os olhos. Quantos dos habitantes do reino moderno dos direitos (GARSCHAGEN, 2018) não se situa no mundo como quem precisa, por exemplo, daquela sustentação social (moral, psicológica e financeira) dada pela nomenclatura escrita e carimbada pelo médico para agilizar sua situação no INSS, garantindo que os olhares maldosos e recriminatórios tenham moderação enquanto se pode dedicar ao judô, jiu-jitsu ou às caminhadas vespertinas com direito à vista do mar (DARLYMPLE, 2011)? Dizer que psiquiatria atual sustenta uma mentira social, ou que suas bases são incertas, inespecíficas, arbitrárias (como é, aliás, qualquer classificação)[1], é pouco. Sobre os problemas metodológicos da psiquiatria – e suas implicações nas vidas social e pessoal – muito se tem escrito e não vale aqui retomar[2]. Não carece também dizer que o problema seja iluminado através do conceito foucaultiano de biopolítica, de que a medicina sempre surge e funciona em acordo com os motores de alguma engrenagem social, seja a formação do Estado, a necessidade de urbanização ou o controle/purificação dos corpos (FOUCAULT, 1974/86). Não está na oposição a uma verdade o problema, ainda que seja real nas esferas metodológica, sociológica e histórica e, nestes termos, discutíveis. Importa pensar a mentira como modo de habitar o mundo sem pagar a alva libra de carne necessária à participação no modo capitalista de viver. É preciso imputar ao outro, ao mecanismo, a causa secreta (ASSIS, 2013) do sofrimento. Como é preciso remediar, a psiquiatria nos conta a mentira que queremos ouvir como verdade. Sofro, mas não abro mão. Ou, como diz a letra de uma antiga canção argentina “No pase el tiempo/al menos para mí/ya tomé pastillas/y sigo sin dormir” (PAÉZ, 1987). O sujeito recebe do outro sua própria mensagem de forma invertida (PRATES, 2004), diz o lacaniano. A mentira é desejada para que a funcionalidade social não escape: na escola, é bem-vindo o diagnóstico que justifica alterações adaptativas que eximam os pais e a escola de modificar seus modos de ser e produzir; de quebra, garante sono tranquilo aos agentes do Estado no cumprimento de sua tarefa transformadora da sociedade em direção ao Bem. Nas corporações, o imperativo da felicidade transforma o piso em casca de ovo – quem o pisa precisa da leveza do bailarino clássico: tudo ofende, tudo estressa, tudo deprime[3]. E, quando a roda para de girar, é preciso depositar a culpa noutro lugar: se for em algum neurotransmissor em curto-circuito, melhor. Todo insatisfeito fica feliz: o sindicato, o INSS, o advogado, o mercado, as ONG’s e o psiquiatra, sobretudo o psiquiatra – é o oráculo do retorno ao bem-estar perdido: é ao médico que se vai, como quem vai ao xamã, pedir a explicação metafísica para o Mal; a ele se pede o manipanso contra aquilo que impede o giro da roda. Seus diagnósticos dão nome ao mal-estar e, uma vez nomeado, exclui-se da cena qualquer verdade que ponha em xeque libra de couro dada em troca da participação no mecanismo. A psiquiatria, assim como o marketing, ao mentir nos diz uma verdade, nos devolve nossa verdade: a de que é preferível um mal-estar administrável ao insuportável da verdade.

Referências

ASSIS, Machado. A Causa Secreta. In 50 Contos de Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

BORGES, Jorge Luís. O Idioma Analítico de John Wilkins. In Outras Inquisições. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

COLLARES, Cecília Azevedo Lima; MOYSES, Maria Aparecida Affonso. A transformação do espaço pedagógico em espaço clínico (a patologização da educação). Série Ideias n. 23. São Paulo: FDE,1994. Páginas: 25-31. Disponível em: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/amb_a.php?t=008 .

FRANCES, Allen. ¿Somos todos enfermos mentales?. Editorial Planeta: Barcelona, 2014.

DALRYMPLE, Theodore. Podres de Mimados – As consequências do sentimentalismo Tóxico. São Paulo: É Realizações, 2011.

DICK. Philip K. Humano é. In Sonhos Elétricos. São Paulo: Aleph, 2018.

GARSCHAGEN, Bruno. Direitos Máximos, Deveres Mínimos. Record: Rio de Janeiro, 2018.

FOUCAULT, Michel. (1974) O Nascimento da Medicina Social. In Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

GOMES. Dias. Roque Santeiro ou o Berço do Herói. Rio de Janeiro: Ediouro/Tecnoprint, 1991.

LAPLANCHE, Jean. Vocabulário de Psicanálise Laplanche e Pontalis. Martins Fontes: São Paulo, 2000.

MANTOAN. Maria. Dilemas e desafios da Educação Inclusiva nos primeiros anos do século XXI. [Entrevista concedida a] Aldo Ocampo González. Polyphōnia. Revista de Educación Inclusiva Publicación Científica del Centro de Estudios Latinoamericanos de Educación Inclusiva de Chile, Vol. 1, (2), Agosto-Diciembre 2017, pp. 149-158. Disponível em: https://www.aacademica.org/polyphnia.revista.de.educacion.inclusiva/12.pdf

MANTOAN. Maria Teresa Eglér. Inclusão Escolar O que é? Por quê? Como fazer?. São Paulo: Moderna, 2003.

O Palácio dos Horrores. Direção: Ashim Ahluwalia. In Mentes Malignas. Produção: Aurum Film. Nova Zelândia, 2018. Amazon Prime (117 min).

PAÉZ, Fito. Track-track. In Ciudad de Pobres Corazones. Buenos Aires: Sony Music, 1987.

PEREIRA, Mario Eduardo Costa Pereira. A crise da psiquiatria centrada no diagnóstico e o futuro da clínica psiquiátrica: psicopatologia, antropologia médica e o sujeito da psicanálise. Physis 24 (4). Oct-Dec 2014. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-73312014000400004

PRATES, Ana Laura. Que destino dar à mensagem recebida? Apontamentos sobre a questão da transmissão na Psicanálise. Psicologia USP, 2004, pp. 149-167. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-65642004000100017

SHAKESPEARE, William. (1600) O Mercador de Veneza. In Grande Obras de Shakespeare. Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. 

SLOTERDIJK, P. Esferas I Borbujas. Microsferología. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid: Siruela/Turolero, 2017.

SÓFOCLES. (430 a.c.) Édipo Rei. In Trilogia Tebana. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

WINNICOTT, D. W. Natureza Humana. Tradução de Davi Litman Bogomoletz. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

[1] “Não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjetural” (BORGES, 2000).

[2] Por exemplo: Allen Frances, Thomas Insel, Mario Eduardo C. Pereira, Maria Aparecida Affonso Moyses.

[3] Mas não se engane, leitor, ainda que o texto tenha caminhado pelas sendas da neurose, como se à mentira que é verdade coubesse, bem justinha, a interpretação de haver no fenômeno uma “formação de compromisso” (LAPLANCHE, 2000), a coisa ainda pode ser pensada pelo lado das falhas ambientais, do quanto a modernidade é por si um evento traumático na medida mesma em que faz repetir a falha nos cuidados iniciais (falhas nos sistemas de imunidade, diria Sloterdijk) – e aí, pensando com Winnicott, atribuir ao outro, à externalidade (e dele cobrar o custo) não seria tão absurdo, embora sinal de que há algo podre no reino do amadurecimento.

Imagem: detalhe de “The blind Oedipus commending his children to the Gods”, de Bénigne Gagneraux (1784)

Sobre o autor

Ricardo Rodolfo de Rezende Prado

Psicanalista e consultor em escolas da rede particular de ensino. Graduado em Filosofia pela PUC-Minas, com formação e especialização em Psicanálise (Cinpp-Vale/Univap). Pesquisador do Grupo A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo /PUC-SP – LABÔ.