Estudos Agostinianos

Salmodia bíblica e o pensamento de Agostinho de Hipona

A partir do ano de 392, Agostinho empreende a construção do texto que viria a se tornar sua maior obra em extensão. Enarrationes in Psalmos tem mais que o dobro do tamanho de De Civitate Dei, por exemplo. É curioso que, ao mesmo tempo em que é o texto agostiniano mais longo, é também um dos menos lidos, embora seja uma das obras mais interessantes. É composta de comentários advindos de homilias e sermões das comunidades em que era Bispo. Faz parte das últimas obras que escreveu; são os escritos da maturidade.

O hiponense demonstra toda a sua capacidade de retórico em cada linha escrita. Trata-se da interpretação que seria autoridade utilizada pelo Ocidente por mais de um milênio. É obra da maturidade agostiniana; “não revela apenas sua diligência como exegeta, sua infatigabilidade como pregador, seu zelo como apologista, sua habilidade como filósofo e sua profundidade como teólogo, mas também uma mente dotada de surpreendente mestria das Escrituras”[2].

O texto do saltério foi basilar para todo o estudo teológico de Agostinho. Sua capacidade interpretativa e relacional o conduziu à – além de escrever a obra explicativa de cada versículo dos salmos – utilidade pastoral do texto sagrado. Como dito acima, a obra nasce de um contexto litúrgico. Apesar de estar situada dentro dos escritos da maturidade, é um trabalho de toda sua vida como cristão; desde o primeiro contato com a salmodia bíblica até o dia de sua morte Agostinho estudou, meditou, pregou e rezou os Salmos.

No início do catecumenato, Agostinho escreve a Ambrósio, porque estava com certa dificuldade nos textos do profeta Isaías, e o mentor lhe responde com a indicação de que se dedicasse à leitura dos Salmos[3]. A partir daquele momento, abrem-se as portas para a leitura exegética e filosófica, na qual Agostinho faria uma espécie de ponte entre a história do povo Judeu, contada nos Salmos, e a vida de Cristo. Posteriormente, ele relatará nas Confessiones o amor que inflamava em si sobre os salmos – na ocasião se encontrava catecúmeno, junto a Alípio (um amigo) e sua mãe, de férias no campo.

E como soltava a voz para ti, meu Deus, ao ler os salmos de Davi, cantos de fé, sons de piedade que não admitem espíritos orgulhosos, eu, iniciante em teu amor genuíno, catecúmeno em férias […]. Como soltava a voz naqueles salmos e como era inflamado para ti por eles e me animava a recitá-los, se pudesse, para o mundo inteiro.[4]

Agostinho viveu muito tempo em busca da Verdade e o processo de conversão ao cristianismo foi longo. Certa vez, começou a participar de rituais litúrgicos na igreja de Milão, a cantar e recitar os salmos. Foi uma prática inserida por Ambrósio e que se perpetua até os dias atuais. Além do caráter pedagógico, o primeiro contato de Agostinho com os salmos lhe causou sentimentos de bem-estar, conforto e comoção. “Quanto chorei comovido profundamente por teus hinos e cânticos, que faziam ressoar suavemente tua igreja! Aqueles sons enchiam meus ouvidos e destilavam a verdade em meu coração”[5].

Por volta de 392, Agostinho já havia reunido um conjunto de notas e comentários acerca de alguns salmos utilizados nas pregações homiléticas. Na igreja de Milão, os salmos eram recitados e cantados, ao passo que, na igreja de Hipona, Agostinho os utilizava para as homilias com caráter pedagógico. Agostinho tem profundo estudo sobre as Sagradas Escrituras e tem necessidade de passar o conhecimento erudito para os fiéis que não eram letrados.

O salmo é o remédio divino pelo qual o cristão vai recebendo o conhecimento da virtude e curando assim as feridas do pecado. O fiel, com a ajuda principalmente dos comentários que seus pastores fazem sobre os salmos, aprenderá a ver neles o resumo da doutrina contida em todos os demais livros da Escritura, a síntese de toda a história da salvação.[6]

Os comentários tecidos acerca dos salmos são a reunião de toda a bagagem dos estudos de Agostinho. Não deixa o caráter especulativo dos primeiros escritos, contudo, já é um bispo maduro, seguro de suas convicções e embasado na literatura e história bíblica. Por se tratar de homilias dirigidas à comunidade, precisou de ajuda de seus secretários, os taquígrafos, que transcreviam suas falas durante os discursos homiléticos. Certamente, depois revisava estes textos; há um questionamento se efetivamente os comentários são provenientes de pregações reais, mas não há evidências em contrário.

O conteúdo dessas pregações era diverso. Em um único versículo, Agostinho se debruçava em conceitos e histórias, o que justificaria a extensão física da obra. “A maior parte das homilias pregadas tem o estilo vívido da conversação, com traços de espontaneidade e com várias referências à vida cotidiana”[7]. Nos textos são encontradas algumas reações imediatas a indivíduos da comunidade (comentário ao salmo 26, 88, 120); se desculpa por delongar ou fazer muitas digressões (comentário ao salmo 103, 72) e até justifica o porquê de a homilia do dia ter sido encurtada por motivo de anúncio de funeral (comentário ao salmo 103). Esses aspectos espontâneos dos textos nos levam a crer que, se não todo o texto, mas parte dele, foi realmente pregado a fiéis em Cartago e Hipona.

As homilias de Agostinho eram abraçadas com o calor humano e a simpatia do povo simples da comunidade. Isso enchia seu coração da animação do antigo jovem filósofo orador e a eles endereçava seus mais íntimos pensamentos[8]. Agostinho conhece bem seu rebanho, sabe de suas súplicas e necessidades. Os fiéis ouvem atentamente as palavras do pastor, vigilantes para nada perder. “Agostinho associa incessantemente o auditório às suas buscas, às suas descobertas e às suas perplexidades, como também às suas luzes. Ele sabe ler nas fisionomias, interpretando tanto as reações como os silêncios”[9].

O aporte musical da salmodia bíblica era a oportunidade que Agostinho possuía de transmitir o conhecimento filosófico, de difícil compreensão, para os fiéis leigos da comunidade. Os sermões agostinianos eram um reabastecimento espiritual para o povo. “Para eles [o povo], domingo significa reforço da alimentação, quase abundância, sobretudo quando conseguem encontrar o Bispo, que lhes promete dizer algumas palavras em seu favor. Sabem que podem contar com Agostinho”[10].

O pensamento de Agostinho sobre a salmodia bíblica parte da dimensão e alcance pastoral que os Salmos possuem. “Agostinho intenciona dar a conhecer aos fiéis que já conheciam as letras dos Salmos o seu sentido espiritual, o que não estava ao alcance de todos”[11]. Além da prática do cântico, como exercício espiritual, Agostinho insere a interpretação detalhada do texto no sermão, o que certamente conduz o fiel à melhor entronização do Hino.

[1] CAMERON, Michael. Enarrationes in Psalmos. In: FITZGERALD, Allan D. (Org.). Agostinho através dos tempos. São Paulo: Paulus, 2018. p. 364.

[2] Cf. FRANGIOTTI, Roque. Introdução. In: AGOSTINHO. Comentário aos Salmos. São Paulo: Paulus, 1997.

[3] AGOSTINHO. Confessiones, IX, IV, 8.

[4] AGOSTINHO. Confessiones, IX, VI, 14.

[5] BASURKO, Xabier. O canto cristão na tradição primitiva. São Paulo: Paulus, 2005, pp. 34-35.

[6] CAMERON, Michael. Enarrationes in Psalmos. In: FITZGERALD, Allan D. (Org.). Agostinho através dos tempos. São Paulo: Paulus, 2018. p. 365.

[7] Cf. HAMMAN, A. Santo Agostinho e seu tempo. São Paulo: Paulinas, 1989.

[8] HAMMAN, A. Santo Agostinho e seu tempo. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 185.

[9] HAMMAN, A. Santo Agostinho e seu tempo. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 174.

[10] FRANGIOTTI, Roque. Introdução. In: AGOSTINHO. Comentário aos Salmos. São Paulo: Paulus, 1997, p. 17.

Imagem: Heraldo Galan

Sobre o autor

Gustavo Augusto da Silva

Bacharel e licenciado em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás (IFITEG). Mestrando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás) – Bolsa CAPES. Músico violoncelista e pesquisador do Núcleo de Estudos Agostinianos, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.