Esta é uma tradução do verbete “Michael Oakeshott” de autoria do Prof. Terry Nardin na Stanford Encyclopedia of Philosophy, originalmente publicado em 8 de março de 2016 e revisado em 14 de fevereiro de 2020:
- Nardin, Terry, “Michael Oakeshott”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2020 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/spr2020/entries/oakeshott/>
Versões atualizadas do verbete traduzido podem ser encontradas em: https://plato.stanford.edu/entries/oakeshott/
Agradecemos ao Prof. Terry Nardin e aos editores da Stanford Encyclopedia of Philosophy pela autorização para a tradução e publicação nesta Sala Michael Oakeshott, mantida pelo Núcleo de Filosofia Política do Laboratório de Política Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.
Tradução: Victor Oliveira | Revisão: Luiz Bueno e Flávia Sarinho | © LABÔ
Michael Oakeshott (1901-1990) é geralmente descrito como um pensador conservador. Mas essa descrição informa apenas um aspecto de seu pensamento e pode gerar mal-entendido por sua ambiguidade. Suas ideias florescem de toda uma vida de leituras da história do pensamento europeu, apurado pela reflexão filosófica em seus argumentos e pressupostos. Oakeshott trabalhou com a premissa de que questões filosóficas são interligadas e de que suas respostas demandam uma reflexão crítica abrangente. Um tema recorrente em seus escritos a respeito da vida moral e política é a tensão entre individualidade, que implica pluralidade, e sua negação, que ele designa como barbárie. A liberdade individual é ameaçada quando a política é concebida como a perseguição de ideais. O interesse recente de filósofos políticos pela ideia republicana de liberdade como independência ou não-dominação sugere a relevância contínua de seu pensamento. O mesmo ocorre com o seu interesse pelo realismo político como uma alternativa ao moralismo. Mas a contribuição de Oakeshott para a filosofia não se limita à filosofia política. Inclui a reflexão sobre os critérios para distinguir diferentes modos de pensamento uns dos outros, definindo a investigação histórica como um desses modos, identificando diferentes concepções de racionalidade e o seu lugar no juízo prático, e distinguindo compreensões concorrentes a respeito do Estado moderno. Oakeshott também escreveu sobre religião, moral, educação, estética, Hobbes e a história do pensamento político. No lugar de examinar todos estes tópicos, este verbete irá focar nas suas contribuições mais importantes para a filosofia: sua teoria da modalidade, sua crítica ao racionalismo político, seu argumento de que a principal distinção na política moderna diz respeito ao caráter e ao propósito do Estado e sua filosofia da história.
- Vida e Obra
- Modos de Experiência
- Racionalidade e Racionalismo
- Associação Civil
- História e as Ciências Humanas
- Bibliografia
1. Vida e Obra
O pai de Michael Oakeshott, Joseph Oakeshott, foi um membro da Sociedade Fabiana, uma organização socialista, mas não radical (seu símbolo era uma tartaruga), muitos de cujos membros participaram do estabelecimento do Partido Trabalhista Britânico. Os líderes da sociedade, Beatrice e Sidney Webb, estavam entre os fundadores da London School of Economics. Quando jovem, Oakeshott estudou História em Gonville & Caius College, Cambridge, no início de 1920, e se tornou um associado vitalício em 1925. Depois de servir o exército britânico entre 1940 e 1945 ele retornou a Cambridge e lecionou brevemente em Nuffield College, Oxford, antes de se tornar professor de Ciência Política na LSE em 1951. Em certo momento durante seus anos na LSE, ele lançou um curso anual de palestras sobre a história do pensamento político. Inicialmente voltado aos autores e textos canônicos, após o sucesso das palestras que ele proferiu em Harvard em 1958 (Oakeshott 1993b)[i], o curso gradualmente se tornou um exame mais abrangente da experiência e pensamento político de quatro povos: os Gregos antigos, os Romanos, os Cristãos medievais e os Europeus modernos (Oakeshott 2006). Ele também dirigiu um seminário sobre a história do pensamento político para estudantes de Pós-Graduação e, como professor emérito, nele atuou até 1980, contribuindo com artigos sobre o estudo histórico do pensamento político e da filosofia da história. Breves relatos da vida de Oakeshott podem ser encontrados em duas coleções memoriais (Norman 1993; Marsh 2001) e em um ensaio bibliográfico (Grant 2012). Os cadernos de notas que Oakeshott manteve durante grande parte de sua vida (Oakeshott 2014) oferecem percepções adicionais, assim como suas cartas não publicadas.
Apesar de Oakeshott ter criticado a crença em planejamento do governo Trabalhista do pós-guerra, na sua juventude ele se considerava um socialista. Mas era um socialismo romântico, preocupado com a transformação espiritual, não com a redistribuição econômica (L. O’Sullivan 2014). E, embora tenha passado a repudiar o Fabianismo, o Marxismo e outras ideologias de esquerda, o Oakeshott mais maduro ainda simpatizava com o anarquismo de Pierre-Joseph Proudhon, compartilhando de sua visão de uma ordem liberal combinando comunidade e igualdade com individualidade e independência. Sua reputação como um pensador conservador foi substancialmente moldada pelos seus incisivos ensaios a respeito dos limites da razão na vida política, organizados como Rationalism in Politics and Other Essays (Primeira edição de 1962, adiante citada como RP). Com base nesses ensaios, ele foi comparado a uma série de figuras conservadoras, de Burke a Wittgenstein. Outros argumentam que ele é mais bem caracterizado como um liberal. Como um teórico do império da lei, ele incita comparações com Friedrich Hayek e Carl Schmitt. Mas os esforços para rotular Oakeshott tanto como um conservador quanto um liberal tropeçam não apenas na ambiguidade desses termos, mas no partidarismo que eles carregam. Oakeshott foi enfaticamente não engajado politicamente. Como ele provocativamente informou aos participantes da celebração do vigésimo aniversário da National Review em 1975, as diferenças da direita e da esquerda eram uma disputa mesquinha sobre como os despojos do Estado – à semelhança de um empreendimento corporativo – deveriam ser distribuídos (RP 459). Para captar o significado filosófico do pensamento de Oakeshott, é preciso ir além do vocabulário da disputa política do século XX.
Em seu primeiro livro, Experience and Its Modes (1933, citado como EM), Oakeshott mal menciona a política. Mas isso não significa que ele não estava interessado em política quando o escreveu. O livro surgiu de suas palestras em Cambridge do fim de 1920, “The Philosophical Approach to Politics”, hoje incluídas em Early Political Writings (Oakeshott 2010). Nessas palestras, ele distingue diferentes formas de pensar sobre política, mas no livro essas diferentes formas de pensar são desvinculadas do assunto da política, e se apresentam como modos gerais de experiência. No período em que ele escreveu Experience and Its Modes, Oakeshott passou a acreditar que a filosofia política era necessariamente deficiente – que era limitada pelo seu compromisso com uma esfera da experiência demarcada pré-filosoficamente e, portanto, não uma filosofia genuína. O livro é uma realização eminentemente individual no estilo do idealismo filosófico britânico, escrito em uma época em que esse tipo de abordagem da filosofia estava saindo de moda com rapidez. Nele, Oakeshott credita a influência de Hegel, Bradley e Bosanquet, mas era evidente que ele tinha absorvido suas visões “em uma insistente personalidade literária que se movia livre e sugestivamente em vários tipos de literatura” (Cowling 2003: 256). Quando Oakeshott retomou a política no final de 1930, foi em relação às controvérsias do dia. A pedido do Cientista Político de Cambridge Ernest Barker, e parcialmente motivado pela esperança de que isso lhe daria uma cátedra, ele compilou uma antologia de textos expondo as “doutrinas” da Europa contemporânea: Democracia Representativa, Catolicismo, Comunismo, Fascismo e Nacional Socialismo (Oakeshott 1939). Sua primeira publicação no pós-guerra foi uma edição do Leviatã de Hobbes, com uma introdução influente posteriormente publicada junto a outros ensaios sobre Hobbes em Hobbes on Civil Association (Oakeshott 1975b). Em 1947, ele fundou o Cambridge Journal, um veículo de curta duração, mas estimado pela crítica, tratando política e cultura como tópicos para conversas civilizadas, ao invés de polêmicas ideológicas ou pesquisa acadêmica. Muitos dos ensaios reimpressos em Rationalism in Politics apareceram primeiramente lá.
O Magnum opus de Oakeshott, On Human Conduct (1975, citado como OHC) aparece tardiamente em sua carreira. Foi recebido em alguns ambientes com incompreensão e em outros com hostilidade, mas principalmente com silêncio. Mesmo aqueles que julgaram o livro importante acharam seu estilo proibitivo e seu impacto foi abafado. Também são difíceis os três últimos ensaios sobre filosofia da história, inclusos em On History and Other Essays (1983, citado OH). Seus ensaios sobre a ideia de educação liberal e suas implicações práticas, organizados em The Voice of Liberal Learning (1989, citado como VLL) são mais acessíveis e continuam a receber atenção (Williams 2007; Backhurst e Fairfield 2016). Após a morte de Oakeshott, outros escritos apareceram, primeiro em uma série de volumes publicados pela Yale University Press (Oakeshott 1993a, 1993b e 1996), depois em uma série da Imprint Academic (Oakeshott 2004, 2006, 2007, 2008, 2010 e 2014). Também tem havido um fluxo contínuo de trabalhos secundários, incluindo dois volumes complementares (Franco e Marsh 2012; Podoksik 2012). A comparação com filósofos contemporâneos – Collingwood, Wittgenstein, Schmitt, Strauss, Hayek, Gadamer, Arendt, Foucault, MacIntyre – oferece outro ângulo para enxergar o seu lugar no pensamento do século XX (Dyzenhaus e Poole 2015; Plotica 2015; N. O’Sullivan 2017). Essa literatura, aliada à atenção que seus escritos menos acessíveis estão começando a receber, sugere que Oakeshott ocupa um lugar cada vez mais seguro na história da filosofia e do pensamento político.
2. Modos de Experiência
Filósofos têm usado a palavra “modo” para se referir a um atributo que uma coisa pode possuir ou à forma que uma substância pode assumir. Para Oakeshott, essa coisa ou substância é experiência, termo pelo qual ele se refere tanto à atividade de experienciar quanto ao que é experienciado, entendido como inseparável e, portanto, como uma unidade. Olhada de qualquer lado, a experiência envolve pensar e, portanto, ideias. Ele tem em mente o tipo de relação sujeito-objeto mutuamente correlacionada que Hegel examina em Phenomenology (que Oakeshott leu nos anos 1920), segundo a qual aquilo que é experienciado – o objeto – é em si mesmo pensamento. Quando um corpo de ideias alcança um nível substancial de integridade e diferenciação, é possível afirmar a emergência de um modo de pensamento. Por vezes, um modo é entendido como sendo um aspecto de algo maior ou mais real do que ele próprio (Descartes 1641: 27–28, 31). Em Experience and Its Modes há vestígios dessa visão, também discernível em Spinoza e Hegel, de que essa “coisa maior” é tudo o que existe, a soma total da experiência, identificada como Deus ou o Absoluto. Oakeshott não usa a palavra “modo” em escritos posteriores de uma maneira que postule uma realidade última ou universal. Mas um modo de pensamento tampouco é uma forma de reflexão qualquer. É um tipo de pensamento “autônomo”, “especificável em termos de condições exatas” e “logicamente incapaz de negar ou confirmar as conclusões de qualquer outro modo” (OH 2). Um modo constitui um “todo de significados interligados” distinto e autoconsistente (VLL 38), um mundo de ideias apoiado em seus próprios critérios de verdade, fatualidade e realidade. Um problema, então, é como os modos podem falar uns com os outros, e a solução é que, enquanto modos, eles não podem. Há uma diferença entre modos tomados como tipos ideais e sua instanciação em pensamentos e ações reais e, portanto, entre diferenciá-los filosoficamente e investigá-los histórica ou sociologicamente.
O pensar que é associado a um ato é um modo do tipo que Oakeshott designa como “prática”. Outro é “história”, o que ele define nem como “o grande imaginário total de tudo o que já aconteceu” nem como parte disso, cujos criadores são os participantes nas ocorrências que a constituem, mas, em vez disso, como um tipo distinto de investigação e compreensão dos eventos. Uma vez que eventos não são dados, mas devem ser inferidos do que o historiador trata como evidência, a história é feita pelo historiador (OH 1–2). É, além disso, uma investigação que objetiva dar conta de eventos passados como resultados inteligíveis de eventos antecedentes. Em contraste com a história, assim entendida, “ciência” como um modo é definida por sua busca por regularidades que podem dar conta da ocorrência de eventos repetitivos e por formas de expressar essas regularidades como relacionamentos entre quantidades. Essa maneira de distinguir entre história e ciência situa Oakeshott na tradição do neokantismo alemão da geração anterior, especialmente Windelband e Rickert, em que Naturwissenschaften[ii] e Geisteswissenschaften[iii] eram tratadas como formas epistemológicas distintas. História e ciência são ambas intrinsecamente explanatórias, mas os tipos de explanação que elas fornecem são diferentes. A História genuína também se distingue das ideias sobre o passado que são moldadas por preocupações práticas atuais (o “passado prático”). O mesmo vale para a ciência: como um modo de investigação, a ciência é diferente da aplicação prática do conhecimento científico. A partir dessa perspectiva, nós podemos ver a engenharia como uma disciplina prática ao invés de científica.
Os modos, então, são tipos de conhecimento distintos e provisoriamente coerentes. Em Experience and Its Modes, Oakeshott visa identificar os pressupostos segundo os quais um modo pode se fazer coerente e distinto de outros modos. Distinções modais são categoriais. Uma distinção categorial é de tipo e não de grau. Filósofos têm discordado sobre se os tipos identificados são naturais (ontológicos) ou conceituais (epistemológicos): os primeiros são categorias do ser (Aristóteles), os últimos categorias do entendimento (Kant). Filósofos também têm discordado sobre se um esquema categorial deve ser exaustivo e fixo ou, alternativamente, pode ser aberto e mutável. Os modos que Oakeshott identifica em Experience and Its Modes – história, ciência e prática, aos quais ele mais tarde adicionou a “poesia” (experiência estética) – podem ser vistos de certo ângulo como categorias epistemológicas, não ontológicas. Mas, de outro ângulo, a distinção entre ser e saber não faz sentido (Hegel). Não pode haver uma diferença absoluta entre o que uma coisa é e como ela é concebida em um contexto particular, porque não há “coisas em si” no sentido Kantiano que sejam independentes do pensamento. E apesar dos modos serem mutuamente exclusivos, Oakeshott não pensa que eles formam um conjunto fechado. Os modos que ele identifica são construções intelectuais que surgiram no curso da experiência humana. Isso sugere que eles podem mudar ou até mesmo desaparecer, e que novos modos podem surgir. Mas aqui devemos distinguir entre um modo e sua instanciação. A história era uma forma possível de pensar antes de qualquer um começar a pensar historicamente e permaneceria como uma possibilidade, mesmo que os seres humanos cessassem de pensar historicamente.
Uma série de outras conclusões decorrem desse entendimento da modalidade. Primeiramente, um modo de experiência implica um tipo de entendimento distinto e autônomo. Implica um universo de discurso com argumentos e formas próprias de avaliação e fundamento. Uma vez que proposições em um modo de discurso não têm importância em outro, a verdade é coerência, qualquer que seja sua definição, em um modo estabelecido. Argumentar além de uma fronteira modal é cometer a falácia da ignoratio elenchi (irrelevância). Se há qualquer relação entre os modos, esta é conversacional, não argumentativa: encontros intermodais produzem diferenças, não conclusões supramodais. Oakeshott às vezes defende essa tese ao tratar dos modos como “vozes” em uma conversa intermodal (RP 488–491, 497). Em uma conversa, as regras de relevância são relaxadas: uma conversa não é um argumento. Em segundo lugar, dado que o que é tido como racional no discurso depende do modo do discurso em si, não há nenhuma definição extramodal de razão ou racionalidade. A ilusão de que exista surge de privilegiar o que é tido como razoável dentro de um certo modo e depreciar o que é considerado razoável em outros modos. Essa ilusão de superioridade gera a característica limitada, por vezes arrogante, de cada modo, definidas pelos rótulos “historicismo”, “cientificismo”, “pragmatismo” e “esteticismo”. Uma justaposição conversacional das vozes modais, em oposição à argumentativa, é respeitosa das diferenças e, por essa razão, intrinsecamente civilizada – o que significa que insistir na primazia de qualquer um dos modos não é apenas grosseiro, mas bárbaro. E porque os modos são independentes uns dos outros, e nenhum é mais expressivo de uma realidade imaginada independente de modo que qualquer outro, não pode haver nenhuma hierarquia de modos.
Ao defender esses pontos, Oakeshott difere de idealistas filosóficos na Alemanha, Itália e Inglaterra, que propunham esquemas categoriais similares no mesmo período. Isso inclui Benedetto Croce, que distingue os modos teóricos de arte, história e filosofia dos modos práticos da economia e da ética, e R.G. Collingwood, que em Speculum Mentis, uma obra inicial, começa com a tríade de Hegel de arte, religião e filosofia, identificando a filosofia, definida de forma mais ampla, com “conhecimento” e distinguindo três tipos de conhecimento – ciência, história, e filosofia, em sentido estrito – para gerar uma hierarquia de modos em cinco níveis. No esquema de Collingwood, a arte é o nível mais baixo, seguida da religião, a primeira preocupada em imaginar ou “supor” e a última em “afirmar”, sucedidas, então, pelos três tipos de conhecimento genuíno, que se distinguem da arte e da religião por serem críticos. A filosofia propriamente é a mais crítica de todos porque almeja transcender as outras formas (Collingwood 1924; Connelly 2015). Oakeshott, em parte como resposta a Collingwood, une arte e religião na prática, nega que os modos podem ser ordenados hierarquicamente e define filosofia como a atividade de interrogar pressupostos, incluindo os seus próprios, portanto, não sendo um modo em si mesmo. Mas, apesar de caracterizar a filosofia como supramodal, ele rompe o vínculo entre a filosofia e o conhecimento ilimitado – “o Absoluto” – aquele que se encontra na metafísica idealista de Hegel a Collingwood. A distinção entre o pensamento modal e a filosofia que Oakeshott afirma em Experience and Its Modes reaparece em On Human Conduct como uma distinção entre teorização “condicional” e “incondicional”, a primeira apoiada em pressupostos que a última questiona.
A ideia de uma hierarquia dos modos não é particular do Idealismo. Onde há entendimentos diferentes, alguém interessado em reconciliá-los pode argumentar que eles representam diferentes níveis de entendimento, alguns mais inclusivos e nesse sentido mais elevados que outros. Em contraste com filosofias unificadoras, incluindo o Idealismo filosófico, a posição de Oakeshott é pluralista e anti-hierárquica. A esse respeito, ele tem mais em comum com Wilhelm Dilthey, que lutou com a questão da relatividade na metafísica e como distinguir as ciências humanas das naturais, do que com os Idealistas Britânicos – Bradley, Bosanquet e McTaggart, entre outros – aos quais ele é geralmente associado (Boucher 2012). Para Oakeshott, todo conhecimento é condicional. Teorizar é “um compromisso de chegadas e partidas”, em que “a noção de um entendimento incondicional ou definitivo pode pairar ao fundo, mas … não tem parte na aventura” (OHC 2–3). Na tentativa de construir uma visão coerente do mundo, o filósofo “se lança ao mar” (OHC 40) e está eternamente en voyage[iv]: não há “soluções finais” na filosofia tanto quanto nos assuntos práticos.
3. Racionalidade e Racionalismo
O que Oakeshott chama de “Racionalismo” é a crença, em sua visão ilusória, de que há respostas “corretas” para questões práticas. É a crença de que uma ação ou política é racional apenas quando se baseia em um conhecimento cuja verdade possa ser demonstrada. Seu erro é pensar que decisões corretas podem ser tomadas simplesmente ao se aplicar regras ou calcular consequências. Em um ensaio de sua juventude, Oakeshott faz uma distinção entre conhecimento “técnico” e “tradicional”. Conhecimento técnico é conhecimento, seja de fatos ou regras, que é facilmente aprendido e aplicado, mesmo por aqueles que não possuem experiência. Conhecimento tradicional, ao contrário, é “saber como”, ao invés de “saber que” (Ryle 1949). É adquirido ao se engajar em uma atividade e envolve julgamento ao lidar com fatos ou regras (RP 12–17). Conhecimento geralmente envolve um elemento de observância de regras, mas usar regras com habilidade ou prudência significa ir além das instruções que elas fornecem. Mesmo uma norma simples, como “proibido veículos no parque” (Hart 1958), implica um elemento de juízo. Isso vale tanto para decisões coletivas quanto para individuais, bem como para decisões políticas ou privadas. Mas se o conhecimento técnico tem limites, o mesmo ocorre com o conhecimento tradicional. Nós não podemos concluir que a experiência e o julgamento são infalíveis: claramente, eles não são.
A deliberação política ocorre quando uma decisão pública precisa ser tomada e um curso de ação proposto necessita ser defendido. Mas decidir qual curso de ação seguir envolve mais do que simplesmente aplicar regras e calcular custos e benefícios. Requer interpretação e julgamento. Nós devemos decidir qual regra usar e então interpretar o que isso significa em uma dada situação. Se, alternativamente, escolhemos uma ação baseada em suas prováveis consequências, nós devemos julgar o valor esperado dessas consequências e isso envolve fazer julgamentos valorativos e calcular probabilidades. Quer estejamos aplicando regras ou calculando resultados, devemos trabalhar com o que presumimos ser fatos, embora estes sejam sempre incertos de diversas maneiras. Por essas razões, nunca há um curso de ação correto demonstrável. Argumentos políticos não podem ser provados ou refutados; eles podem apenas se mostrar mais ou menos convincentes do que outros argumentos. O discurso político, então, é um discurso de contingências e conjecturas, não de certezas ou de verdades independentes de contexto. É persuasivo e retórico, não uma questão de demonstração ou prova (RP 70–95).
Estes são argumentos familiares, desenvolvidos por Oakeshott com uma clareza particular. O que ele acrescenta a outras discussões filosóficas sobre raciocínio prático, como o tratamento de Aristóteles acerca da techne[v] e da phronēsis[vi] (Nichomachean Ethics 1142a), ou as observações de Kant sobre o julgamento como o meio termo entre regras e aplicações (Kant 1793: 8:275), são reflexões sobre como o discurso prático e, em particular, o político, pode causar desastres quando esses pontos são esquecidos. Suas conclusões repousam em uma dissecação da política ideológica, que, no pensamento de Oakeshott, reflete uma disposição moderna característica para substituir regras – que podem ser morais, históricas, científicas ou divinas – por julgamento mediante raciocínio prático. As regras que se pensa governarem a prática não são independentes da atividade prática, mas obtidas dela. São “sínteses” de costumes, hábitos, tradições e habilidades (RP 121). Pegando emprestado a linguagem de Michael Walzer, elas são interpretações e não descobertas e invenções (Walzer 1987). E o que elas interpretam, são formas de fazer as coisas:
o pedigree de cada ideologia política mostra que ela é criatura, não de premeditação anterior à atividade política, mas de meditação a respeito de uma forma de política. (RP 51)
Racionalistas, inconscientes das origens locais dos princípios universais que eles imaginam ter identificado, rejeitam o conhecimento obtido por meio da experiência em favor de algo que eles chamam de razão ou ciência. Quer seja dedutiva ou computacional, acredita-se que essa razão abstrata garanta uma certeza maior do que a experiência e o julgamento podem fornecer. A falácia do Racionalismo, em outras palavras, é a de que o conhecimento que é identificado como racional é, em si mesmo e efetivamente, produto da experiência e do juízo. Consiste em regras, métodos, ou técnicas obtidas como síntese da prática – ferramentas que, longe de serem substitutas da experiência e juízo, não podem ser efetivamente usadas em sua ausência.
Em seus ensaios sobre Racionalismo, Oakeshott discute vários exemplos de políticas ideológicas. Ele disseca as estratégias retóricas de Locke, Bentham e Marx e critica os contemporâneos por pensarem que conclusões políticas podem ser extraídas de princípios religiosos ou científicos ou pelo que se acredita serem as lições da história. O Marxismo, por exemplo, afirma que as leis de mudança histórica podem ser discernidas cientificamente e que o direcionamento prático é derivado delas. Mas tal afirmação deveria ser entendida como retórica, que pode persuadir somente aqueles que já acreditam nela (Oakeshott 2008: 168–177). Em suas Lectures in the History of Political Thought (Oakeshott 2006: 469–482) e On Human Conduct (OHC 263–316), ele discute os argumentos de Francis Bacon, dos Cameralistas Alemães e outros que imputam algum propósito coletivo ao Estado, como um empreendimento para promover algum objetivo substantivo específico. Esse objetivo pode ser religioso, econômico, imperial ou terapêutico. Bacon, por exemplo, argumenta que o propósito do governo é explorar a natureza, o que implica mobilizar o trabalho em prol do bem-estar coletivo – uma implicação explorada e desenvolvida por pensadores posteriores, usualmente, mas não apenas, por aqueles identificados como socialistas. Os elementos “coletivo” e “bem-estar” deste entendimento do Estado moderno, como o tema mais geral de explorar a natureza para propósitos humanos, se tornaram onipresentes. Oakeshott examina o Puritanismo do século XVII, o despotismo esclarecido do século XVIII, e o fascismo e o comunismo do século XX, todos enxergando o Estado como algum tipo de empreendimento corporativo, como instâncias do que ele chama de “telocracia” (ou “teleocracia”). Em cada caso, o objetivo coletivo está ligado a uma ideologia que professa oferecer orientação sobre como alcançar o objetivo.
Essas explorações da política ideológica levaram Oakeshott em duas direções. Uma, discutida na seção 4 abaixo, foi distinguir entendimentos alternativos do Estado moderno europeu, cada qual podendo aparecer como um conceito analítico ou como uma ideologia. A outra foi afirmar a independência da teorização explanatória do envolvimento prático, ao questionar a comumente afirmada “unidade da teoria e prática” – um argumento, discernível em Heidegger e Gadamer, no pragmatismo Americano, e na teoria crítica da Escola de Frankfurt, pelo caráter prático de todo o conhecimento (Neill 2013). Heidegger trata a experiência prática não como um modo de entendimento entre outros, mas como a experiência primordial da qual nada que seja humano pode se libertar. Para os pragmatistas, de Peirce a Rorty, ideias surgem da nossa relação com a natureza, que é como esta afeta a nós e nossos projetos. Para os teóricos críticos, toda teorização é determinada pelas preocupações práticas que a motivam e, portanto, é implicitamente, se não explicitamente, prescritiva. Até mesmo a filosofia é prática, ao menos quando lida com ética e política, para aqueles que oferecem orientação prática sob os rótulos de ética normativa ou aplicada. A filosofia moral, eles argumentam, tem por objetivo principal julgar e criar a conduta, sendo o entendimento desta uma meta apenas secundária e instrumental. Argumento similar se aplica à filosofia política.
Oakeshott trabalhou duro para refutar o argumento de que a filosofia política é intrínseca e inevitavelmente prática. Não apenas é possível distinguir a filosofia política de seu objeto, a atividade política, mas sua pretensão de ser filosófica exige que a distinção seja reconhecida. Na visão de Oakeshott, a filosofia moral, propriamente definida, é teorização sobre moralidade (metaética). Ela se preocupa em entender e explicar, não em prescrever. Ética prescritiva ou normativa, ele argumentou desde o início, é “pseudofilosofia” (EM 331–346), porque mistura teorização com moralização. Tal como uma teoria das piadas não é em si mesma uma piada (OHC 10), uma teoria da moralidade não é ela mesma uma moralidade. O objeto da teorização é um “movimento” a ser objeto de reflexão (“teorizado”) por um observador (um “teórico”) cujas reflexões podem gerar conclusões (“teoremas”), ainda que provisórias (Oakeshott 2004: 391; OHC 3). Teorizar é distinto do que o Oakeshott chama de “fazer”, no sentido de que o produto da teorização é um entendimento, um teorema ou proposição, não, como no caso de fazer, uma ação. No fazer, qualquer reflexão que surja envolve deliberar sobre o que fazer. A teorização que distingue a investigação histórica e científica genuína de pseudo-história ou pseudociência não é orientada para a ação e prescritiva, mas explanatória. O que distingue a investigação filosófica da histórica ou científica é o fato de a filosofia ser mais crítica ao examinar os pressupostos da investigação: enquanto cientistas e historiadores querem seguir em frente com seus trabalhos, o filósofo está preocupado em problematizar esse trabalho e em examinar a própria experiência de pensar. A filosofia política, então, é propriamente filosófica quando examina os pressupostos da atividade política.
Uma objeção a distinguir teoria de prática dessa forma é a de que ela trata como categorial uma distinção mais bem entendida como sendo de graus. A teoria política é confusa. Envolve descrever e julgar, explicar e prescrever, e não é sempre claro onde um começa e o outro termina. Eles estão certamente juntos nos escritos de Oakeshott, apesar de seus argumentos para mantê-los separados (Haddock 2005). Mas a objeção afirma ao invés de negar a distinção. Isso não quer dizer que não possa ser contestada, mas, para avançar na discussão, devemos repensar os termos envolvidos, por exemplo, definindo o raciocínio prático como raciocínio que resulta em mudanças tanto na crença quanto na ação (Wallace 2020). Alternativamente, devemos tratar a distinção entre teoria e prática como contextual: o argumento teórico de um filósofo pode parecer prático quando lido historicamente como um movimento em algum debate (Nardin 2015: 318–319).
Para Oakeshott, a filosofia é singular porque questiona ao invés de usar outros tipos de conhecimento. Teorizar a política não é, portanto, o mesmo que se engajar na política e, na medida em que a própria teorização é política, ela perde o seu caráter singular. A ironia da teoria crítica é que deve haver coisas das quais ela não é crítica para conseguir fazer o que pretende fazer: não se pode questionar e agir ao mesmo tempo. A contribuição da filosofia política, para Oakeshott, não é criar ideologias ou recomendar políticas, mas entender a atividade política em termos de suas premissas. Além disso, o conhecimento que é gerado é sempre provisório. Em razão de o conhecimento científico e histórico ser sempre provisório, isso poderia, aparentemente, obscurecer a distinção entre filosofia e outros tipos de investigação. Mas a filosofia se distingue pelo seu questionamento implacável de pressupostos: é uma investigação
na qual as questões são feitas não a fim de serem respondidas, mas para que elas próprias possam ser questionadas a respeito de suas condições. (OHC 11)
Abraçar essa atividade é escapar da prisão de seu atual entendimento. Para o filósofo, significa deixar a política e até mesmo a filosofia política para trás para seguir outras prioridades. Não se pretende que isso seja uma descrição do que filósofos políticos fazem (eles fazem muitas coisas), nem uma prescrição sobre como eles deveriam proceder; é o produto das reflexões de Oakeshott sobre sua própria experiência de sair do engajamento em argumentos políticos para descobrir seus pressupostos.
4. Associação Civil
Para que o estudo da política seja genuinamente filosófico, pensava Oakeshott, deve-se trocar o vocabulário da atividade política para um que explique a política em outros termos – termos diferentes daqueles a serem explicados. Mas isso pode levar a mal-entendidos porque os vocabulários não são intercambiáveis. A necessidade de se escapar das amarras de um vocabulário político herdado explica o porquê, especialmente em On Human Conduct, Oakeshott modifica esse vocabulário para distinguir o tipo de associação que ele chama de “civil” de uma associação para a promoção de propósitos substantivos; associação “empresarial”. Se aplicarmos a ideia de associação empresarial para o Estado, necessariamente geramos uma concepção deste como um empreendimento corporativo. A associação civil, pelo contrário, acarreta um Estado cujas leis deixam os cidadãos livres para perseguirem os propósitos por eles escolhidos: um Estado fundado sobre a premissa da independência dos associados e, portanto, comprometido em resistir à dominação que ocorre, na vida privada, quando alguém impõe suas preferências aos outros e, na esfera pública, quando o próprio Estado é organizado para impor um propósito coletivo a todos. Para que isso funcione, deve haver limites para a persecução de propósitos individuais, e na associação civil estes são entendidos como limites que impõem o respeito pela liberdade de todos. A terminologia Latina de Oakeshott – civitas para Estado, cives para cidadão, lex para lei, jus para a justiça da lei, respublica para o bem comum – emana de seu desejo de desviar o leitor das conotações convencionais das palavras inglesas ao usar palavras menos intimamente identificadas com os interesses da associação empresarial que permeiam a política moderna e, portanto, o discurso político moderno. Civitas é um modo de associação em que os cives se relacionam uns com os outros como cidadãos igualmente submetidos a leis comuns, e no qual as leis estabelecidas são não-instrumentais.
A objeção óbvia a essa visão é de que um Estado precisa tanto de leis instrumentais quanto não-instrumentais; nenhum Estado pode funcionar sem emitir ordens e formular políticas para assegurar observância, aumentar a receita, se defender de inimigos e assim por diante. Oakeshott não discordaria. Qualquer Estado real é uma mistura de elementos formais e substantivos, procedimentos e políticas, associação civil e empresarial. Mas definir associação civil não significa identificar os aspectos de um Estado existente; significa identificar os “postulados” da associação civil como um modo de associação. Esses são atributos de um Estado que determinam seu caráter civil e o distinguem de Estados nos quais esse caráter é recessivo ou até mesmo suprimido, como em um despotismo. Cives estão unidos em seu reconhecimento da autoridade da lex e das obrigações que ela prescreve. A lei identificada como lex restringe cidadãos da mesma maneira que Hobbes disse que as cercas restringem viajantes: elas os mantêm na estrada sem prescrever seus destinos (Leviathan, ch. 30). Dizer que as leis em uma civitas têm validade é dizer que o seu reconhecimento como lei independe de os cives aprovarem ou não as obrigações que elas prescrevem. Da mesma forma, considerar a conveniência de uma lei em uma associação civil é se envolver em uma atividade estritamente focada na questão de saber se aquela lei é uma expressão apropriada da respublica, concebida não como um bem, interesse ou propósito substantivos, mas como normas, procedimentos e órgãos governando a conduta dos associados (OHC 147–149): essa é a res publica, o “interesse público”, que é o assunto apropriado para a deliberação política na associação civil. Em um Estado real, contudo, o interesse público inclui bens substantivos que decorrem de, ou são necessários para sustentar, o império da lei, pois é o império da lei que define a condição civil. Esses bens, como Kant e outros observaram, podem incluir policiamento, estradas, escolas, hospitais e previdência social (Ripstein 2009: chs. 8 e 9). As leis civis não violam as premissas da associação civil quando elas corrigem “males públicos” como a pobreza, doença epidêmica ou poluição do ar (de Jongh, a ser publicado).[vii] Existe, em suma, amplo espaço para preocupações de bem-estar no âmbito da condição civil, uma vez que a ideia de associação civil é trazida à tona.
Oakeshott considera as implicações de uma compreensão “civil” do Estado moderno em vários escritos, porém mais sistematicamente nos seus ensaios “On the Civil Condition” (OHC Part II) e “The Rule of Law” (OH 119–164). Subjacente à teoria da associação civil que ele desenvolve nestes trabalhos há uma distinção entre dois modos de relacionamento humano, um moral e o outro prudencial. As leis no modo da associação civil, que é uma ideia abstraída do que pode estar ocorrendo em um Estado de fato, são normas não-instrumentais que permitem a coexistência de vontades independentes, não instrumentos para o avanço de um propósito coletivo. Tais leis são “morais” no sentido de que elas prescrevem restrições dotadas de autoridade sobre como os indivíduos podem agir para satisfazer suas vontades, não dispositivos prudenciais para alcançar satisfações substantivas. Ao contrário de pessoas transacionando ou cooperando para satisfazer vontades, aqueles que se relacionam moralmente (nesse sentido do termo) estão relacionados com base em regras enquanto tais: padrões não-instrumentais de conduta cuja autoridade é distinta de sua utilidade. Pode-se questionar o uso de Oakeshott da palavra “moral” sem contestar sua sugestão de que existe uma distinção entre a propriedade de um ato julgado por sua relação com uma regra e sua consequente conveniência. Uma regra moral obriga as pessoas independentemente de seus propósitos; obriga tanto inimigos quanto amigos. Como um relacionamento moral, então, a associação civil une pessoas não como sujeitos compelidos a perseguir um objetivo coletivo, mas como indivíduos perseguindo seus próprios objetivos, sujeitos às restrições de leis que não são instrumentos de algum propósito maior.
Lex é o que Oakeshott chama de um “caráter ideal”[viii], uma abstração que não pode ser confundida com a lei real de nenhum Estado existente. Teorizar a associação civil não é descrever os aspectos contingentes de um Estado particular, mas identificar os pressupostos do Estado como um modo de associação. Tendo identificado os modos de associação civil e empresarial, Oakeshott é capaz de distinguir um ordenamento jurídico organizado para a promoção de um propósito substantivo, moldado por leis instrumentais para tal fim, de um em que as leis são restrições não-instrumentais às escolhas de sujeitos perseguindo seus próprios objetivos. Uma vez que tenhamos compreendido a distinção, podemos ver por que ele identifica o império da lei com a associação civil: diferenciar o império da lei de outras formas de regras legais é necessário para se distinguir entre leis fundamentadas na independência dos cidadãos e leis destinadas a recrutá-los para propósitos que não os seus e, assim, dominá-los. Para Oakeshott, o império da lei é um conceito, não a descrição de qualquer ordenamento jurídico existente, muito menos (como é para um pensador menos filosófico como Friedrich Hayek) um ideal ou uma ideologia orientadora. No que foi chamado de “tese da ambiguidade” (Friedman 1989), Oakeshott sustenta que qualquer Estado concreto – qualquer ordenamento jurídico existente – é uma mistura de normas não-instrumentais regulando as interações entre os cidadãos e normas instrumentais para a consecução de propósitos substantivos: uma combinação ambígua de associação civil e empresarial.
Haverá, então, elementos empresariais mesmo em Estados em que o caráter civil predomina. Um Estado real deve ter, juntamente com as normas de associação, algum modo de reconhecer, alterar e aplicar essas normas. A associação civil, em outras palavras, requer instituições legislativas e judiciais e um aparato de “governo” (policiamento, licenciamento, recrutamento e coisas do gênero). Tais instituições são necessárias para ancorar a ideia de civilidade no mundo real. O governo de um Estado real ocupará edifícios, manterá registros e coletará impostos. E, como uma parte necessária do governar, por vezes, promoverá políticas substantivas, tentará produzir resultados particulares, emitirá ordens ou comandos específicos e preocupar-se-á não apenas com classes de pessoas, mas com indivíduos designados. Esses poderes podem ser, e geralmente são, mal utilizados, mas eles devem estar disponíveis se o império da lei for mais do que “o sonho de um lógico” (OH 149). Mas há uma diferença entre os pressupostos conceituais da associação civil e as condições para realizá-la nas circunstâncias de um Estado particular. Na associação civil, a persona do legislador, juiz ou administrador é definida pelas obrigações da lex. Um legislador não é um defensor de políticas. Um juiz não é um árbitro de interesses. Nem o administrador é o executor de um projeto coletivo. O que deve ser legislado, adjudicado e implementado é a lei não-instrumental, lex, não políticas para promover os propósitos substantivos de um Estado concebido como um empreendimento corporativo. Em qualquer Estado real, essas funções – legislador e formulador de políticas, juiz e árbitro, governante e gerente – podem não ser nitidamente diferenciadas. Mas no modo da associação civil elas são distintas.
Também existe uma diferença entre a validade de uma lei e sua conveniência: um ordenamento jurídico rejeitado pelos cidadãos a ele sujeitos pode ter dificuldades em se sustentar. A diferença é tanto conceitual quanto prática. Oakeshott se une aos positivistas legais ao distinguir a validade de uma lei como tal (o que ele chama de “autenticidade”) de sua conveniência ou justiça (sua “justeza”). Mas como o seu vocabulário sinaliza, existem diferenças sutis que ele acha importantes. Em uma associação civil, uma lei é autêntica se é o resultado de um procedimento legítimo para promulgá-la ou, de outro modo, reconhecê-la como parte do ordenamento jurídico. Isso deixa em aberto questões acerca de sua utilidade, legitimidade moral, conformidade com algum padrão de distribuição justa ou outras qualidades que podem influenciar em sua conveniência. Para Oakeshott, a justeza de uma lei (ou como ele coloca, a jus da lex) não é uma questão atinente às suas consequências. Ele não concorda com John Rawls, Ronald Dworkin ou com outros liberais igualitaristas que a justeza da lei (o que eles chamam de justiça) depende de ela distribuir benefícios e encargos de forma justa (OH 156). Ele também não concorda que depende do critério que Lon Fuller (1969) chama de “moralidade interna” da lei, o que requer, entre outras coisas, que as leis sejam públicas, gerais e não retroativas. Essas não são qualidades de justiça, mas de legalidade, argumenta Oakeshott. Uma lei que seja secreta, sob medida para beneficiar ou prejudicar determinados indivíduos, ou destinada a punir atos praticados antes de sua promulgação, é um comando disfarçado, não uma norma legal genuína (OHC 128). Ele também discorda daqueles que pensam que a justeza de uma lei depende de sua conformidade com uma lei superior, seja divina ou natural, com princípios de direitos humanos, ou com qualquer outro padrão universal ou categórico (OHC 174; OH 142).
Oakeshott é menos claro sobre o que é justiça ou justeza na associação civil do que sobre o que não é. Ele sugere que a consideração mais importante na avaliação da justeza de uma lei é se as obrigações que ela prescreve são apropriadamente impostas, em parte porque a lei é intrinsecamente coercitiva (OHC 160; OH 143). O fato de uma ação ser nociva, errada, ou de outro modo indesejável não é necessariamente uma razão decisiva para proibi-la legalmente. Se um Estado deveria ou não restringir as ações de alguém por tais motivos depende do que Oakeshott chama de autoentendimento moral-legal de uma comunidade (OH 160). Se os critérios usados para julgar a justiça das leis ainda não estão embutidos na maneira como a comunidade delibera sobre mudanças legais, o que é chamado de justiça se torna um padrão arbitrário que pode minar o império da lei. O defeito aqui surge quando julgamos as leis de uma comunidade segundo critérios abstratos não relacionados ao autoentendimento de seus membros. Aqui, novamente, a visão de Oakeshott se assemelha à de Michael Walzer, que argumenta que a “crítica social” apropriada e efetiva vem daqueles que são experientes nas formas da comunidade que eles criticam: eles são “críticos conectados” que baseiam suas críticas nos padrões da própria da comunidade. Eles se posicionam “um pouco para o lado, mas não do lado de fora” das comunidades cujas práticas eles criticam (Walzer 1987: 61). A conveniência de uma lei, então, deve ser julgada em relação às práticas de uma comunidade. Estas não são, contudo, unívocas, de forma que os julgamentos são uma questão de debate contínuo. Julgar bem requer uma atenção disciplinada nas obrigações que um Estado pode prescrever adequadamente. Uma lei pode ser tida como insuficiente, por exemplo, se sua aplicação exigir vigilância intrusiva. O caráter da deliberação em um Estado que comporte o caráter de uma associação civil é mais bem definido pelo seu estilo do que pelas suas conclusões em casos particulares (OH 161).
A ideia de Oakeshott de associação civil responde a uma pergunta fundamental na filosofia política: como pode o caráter não-voluntário da lei ser reconciliado com liberdade individual? E sua resposta, que de forma autoconsciente reafirma conclusões alcançadas por Rousseau, Kant e J.S. Mill, entre outros, é que a lei respeita a liberdade individual apenas quando é entendida como limitada a regular as atividades de cidadãos perseguindo objetivos próprios. Um ordenamento jurídico deste tipo deve garantir o cumprimento adequado de suas leis, mas a coerção para tal fim deve ser distinta da coerção destinada à promoção de políticas substantivas não relacionadas à manutenção da ordem civil. O Estado, como uma estrutura de leis para a coexistência de indivíduos livres, se torna uma tirania quando a lei é usada para impor os objetivos de uns a outros que deles não compartilham. O sujeito de direito em um Estado empresarial não é um cidadão independente, mas alguém para ser conduzido, administrado, mobilizado ou suprido: um subordinado a quem foi designado um papel em um projeto propositivo. Os atores dependentes de um papel em um Estado empresarial e os indivíduos independentes em um Estado civil são igualmente “livres”, em um sentido dessa palavra, porque ambos possuem “agência”, a capacidade de escolher mesmo quando suas escolhas são restritas. Mas apenas na associação civil esses associados desfrutam de “liberdade individual”, o que para Oakeshott significa liberdade de não ser legalmente submetido aos propósitos de outros.
Essa é uma versão da ideia republicana de liberdade como independência ou não dominação (Skinner 1998; Pettit 1997), embora tanto para Oakeshott quanto para Kant a independência seja definida em termos morais, e não materiais, e despojada de certos outros elementos do pensamento político republicano, como o de que o povo deveria fazer suas próprias leis. A liberdade individual, que é distinta da liberdade inerente à agência, não é comprometida pela lei na associação civil. Uma razão para isso é que, na associação civil, enquanto um modo de associação, leis são regras gerais, não comandos particulares. Quanto mais um Estado se assemelha, na prática, a uma associação empresarial, menos ele pode acomodar atividades “excêntricas ou indiferentes ao seu propósito” (OHC 316). Participar de um empreendimento propositivo pode expressar individualidade apenas se a participação for escolhida livremente. Os sujeitos de um Estado empresarial não são independentes, porque os objetivos que eles são obrigados a servir foram escolhidos para eles. E embora alguns possam eventualmente escapar da servidão, se eles têm permissão para ir (ou, neste caso, ficar) é uma decisão administrativa (OHC 317). Dado que a liberdade individual na associação empresarial é a liberdade para se desassociar e se associar, ela pode existir apenas se a própria associação for voluntária, e isto não se pode pressupor se a associação for um Estado.
Oakeshott constrói seu relato da associação civil em On Human Conduct por meio da exploração de seus pressupostos. Isso inclui as ideias de agência, agentes, ações, transações para satisfazer vontades, práticas instrumentais e não-instrumentais e a conduta dos agentes relacionados nos termos de tais transições e práticas. E ele explora ideias sobre o Estado moderno no pensamento e na prática europeus, um tópico que ele também discute em outros escritos (Oakeshott 1993b, 1996, 2006, 2008). Ele traça as distinções entre associação civil e empresarial até as ideias medievais de societas e universitas, termos que ele toma emprestado (e redefine) para seu propósito. Societas designa um relacionamento de agentes em uma prática (como uma linguagem comum), agentes
unidos não na busca de uma satisfação substantiva comum, mas em virtude de seu entendimento e reconhecimento das condições da prática em questão e das relações que isso enseja. (OHC 88)
Uma universitas, em contraste, é um empreendimento corporativo (como uma parceria ou a escola) estabelecida para promover um fim específico. Societas, entretanto, não é idêntica à associação civil; ela representa uma classe maior de relacionamentos baseados nas considerações não-instrumentais que os definem. A condição civil emerge apenas quando essas considerações são sedimentadas em normas (“leis”) e são complementadas por outras regras para o seu reconhecimento, alteração e aplicação. Oakeshott examina reflexões sobre o Estado moderno, assim concebido, encontradas em Maquiavel, Madison, Constant e Montesquieu, dentre outros, e mais filosoficamente (isto é, no que tange aos seus pressupostos e não aos aspectos incidentais) em Bodin, Hobbes, Spinoza, Kant, Fichte e Hegel. Ele também examina as ideias de pensadores que viam o Estado como um empreendimento propositivo. Isso inclui Francis Bacon, para quem o Estado era uma propriedade produtiva, Joseph de Maistre, que o via como “uma corporação religiosa no idioma católico” (OHC 281) e vários teóricos do despotismo esclarecido, do socialismo, da autodeterminação nacional e do desenvolvimento econômico. Mas a discussão de Oakeshott sobre esses pensadores e seus argumentos é apenas vagamente histórica, convidando à acusação de que ele os está usando para seus próprios fins e de uma forma que não atende ao seu próprio padrão de investigação histórica genuína.
5. História e as Ciências Humanas
Ao distinguir entre pensar para compreender e pensar para agir, Oakeshott almeja proteger a investigação histórica, científica e filosófica do imperialismo das preocupações práticas. Esse objetivo é evidente no seu tratamento da investigação histórica, especialmente na sua preocupação em distinguir a ideia de um passado distintamente histórico do que ele chama de “o passado prático”. A genuína investigação histórica está preocupada em estabelecer o que aconteceu, não em extrair conhecimento que atenda às preocupações do presente. É indiferente às “lições da história” (EM 316) ou ao “passado vivo” (OH 19). Seu argumento não é de que a experiência passada não possa guiar, mas que o passado que supostamente deveria guiar não é um passado “histórico”. Nem é função da investigação histórica criar estórias sobre a direção da história. Livros sobre o progresso da mente humana (Condorcet) ou sobre o fim da história (Fukuyama), escritos da perspectiva do tempo do seu autor não observam as considerações modais do pensamento histórico, mas são, na verdade, obras do que Herbert Butterfield (1931) chamou de “história Whig” – história destinada a ratificar, se não a glorificar, o presente. Um argumento similar pode ser apresentado sobre estórias de declínio. Ao separar o conhecimento histórico de preocupações presentes, Oakeshott articula uma teoria da história como um modo distinto de investigação e entendimento.
Implícita nessas reivindicações para a autonomia da investigação histórica está uma distinção entre os meios naturalístico e hermenêutico de compreender os assuntos humanos. Oakeshott usa a palavra “conduta” para identificar a escolha e a ação humana, contrastando-a com comportamento, explicado como o resultado de processos naturais. Ao contrário de um fenômeno natural, a conduta humana envolve ideias. E, ao contrário das ciências naturais, as “ciências humanas” (Geisteswissenchaften, as ciências da mente como um corpo de ideias) requerem interpretação de ideias, especialmente aquelas que moldam a ação intencional e autoconsciente. As ciências humanas são, de fato, duplamente interpretativas, porque elas interpretam a conduta humana, que é, em si, uma atividade que envolve fazer e agir com base em interpretações. E quando elas vão além de generalizar sobre a conduta humana para explicar atos particulares, as explicações que elas fornecem são explicações “históricas”.
Ao levantar esses pontos, Oakeshott se baseia no pensamento alemão do final do século XIX e início do século XX sobre o estudo da história, especialmente o antipositivismo de Windelband, Rickert e Dilthey. O argumento deles é baseado em uma distinção entre as esferas da liberdade humana e da necessidade natural articulada por Vico, Kant e Hegel, entre outros. No entanto, entender a conduta humana em termos de pensamento e ação pode ser científico – isto é, sistemático – à sua própria maneira. Tal investigação pode se concentrar no que Hegel chamou de “espírito objetivo”, ideias compartilhadas expressas em linguagens, tradições morais e outras práticas que demandam interpretação. Mas também pode se concentrar em desempenhos individuais: atos específicos, ideias, julgamentos, argumentos e outros produtos do pensamento. Em qualquer caso, as disciplinas das humanidades e das ciências sociais humanísticas estão preocupadas com o conteúdo do pensamento – ideias – não com os processos naturais que tornam o pensamento possível (VLL 23–24). Essa afirmação está em desacordo com a forma como as ciências sociais são amplamente entendidas e, especialmente, com grande parte das disciplinas de psicologia e ciência cognitiva.
Se separar as ciências sociais das humanidades é um erro, pensa Oakeshott, outro é imaginar que a palavra “social” designa um objeto de investigação. A sociologia, ele argumenta, não é uma disciplina com um assunto próprio; é o que resta quando disciplinas como economia e psicologia reivindicam certos aspectos da atividade humana como seus. O estudo de uma categoria residual não pode ser uma disciplina genuína, nem existe qualquer ciência geral da sociedade que fundamente as conclusões da economia, psicologia e outras ciências sociais. O que são vagamente chamadas de relações sociais são, na verdade, relações atinentes a práticas específicas – hábitos, costumes, regras e funções – que prescrevem considerações de utilidade ou propriedade no agir. Eles não são, como Oakeshott pensou que os sociólogos estavam inclinados a assumir,
componentes de uma interdependência ou relação “social” incondicional e inespecífica, algo chamado de “sociedade” ou “Sociedade”. (VLL 24)
Esse não é um ponto sobre nomenclatura, mas uma afirmação de que uma disciplina apropriada tem limites que permitem uma investigação coerente. Para Oakeshott, a categoria que define uma investigação coerente da conduta humana não é “social”, mas “inteligente”. Inteligência, aqui, não é qualidade de ser brilhante ou estúpido, mas de ter agência, a capacidade de pensar e escolher. Um objeto escavado é uma manifestação de inteligência (uma tábula escrita) ou não (uma pedra). Ao fazer essa distinção, ele não está sugerindo que o mundo experienciado é feito de dois tipos de coisas, mas sim que nós experienciamos o mundo de diferentes maneiras, de acordo com as categorias de entendimento que trazemos para ele. Para que um entendimento seja coerente, deve distinguir entre o inteligente e o não-inteligente, porque essas categorias são mutuamente exclusivas. Proposições sobre a bioquímica do pensamento não podem explicar o conteúdo cognitivo dos pensamentos de uma pessoa. Nenhuma investigação pode criar um corpo de conhecimento autoconsciente se seus objetos forem categorialmente ambíguos. Essas afirmações reforçam o ponto de Oakeshott de que argumentos intermodais são necessariamente incoerentes. Grande parte das ciências sociais é prejudicada por esforços para entender a conduta inteligente como o produto de processos fisiológicos, psicológicos ou sociais não-inteligentes vistos como naturais, isto é, operando independentemente do entendimento. Tais esforços não podem gerar conhecimento genuíno porque eles envolvem um erro categorial. Uma explicação coerente é impossível quando
regras são erroneamente identificadas como regularidades, piscadelas inteligentes como piscadas fisiológicas, conduta como “comportamento” e relações contingentes como conexões causais ou sistemáticas. (VLL 26)
Pensamentos e ações podem ser explicados, mas apenas historicamente, não cientificamente. Oakeshott está, aqui, deliberadamente rompendo com a visão de que explicações são sempre explicações “causais” que invocam leis científicas. Explicações históricas pressupõem uma concepção distintamente histórica de causalidade. Um argumento, escolha ou julgamento feito por um agente específico em um momento específico é um desempenho individual, um evento. A psicologia científica pode generalizar sobre como as pessoas tendem a agir, mas não pode explicar escolhas particulares, que podem não ilustrar as generalizações. E a razão para essa limitação não é apenas a impossibilidade categorial de explicar significados em termos de padrões estatísticos ou processos naturais, mas também a lacuna entre generalizações observadas e atos particulares. As generalizações acerca da natureza humana ou das condições sociais encontradas, confirmadas e levadas em conta por cientistas sociais, apesar de geralmente esclarecedoras, não podem explicar a ocorrência de atos particulares, que, vistos como conduta humana inteligente, são sempre desempenhos em relação a alguma prática. As ciências sociais buscam encontrar relações causais entre variáveis como idade ou renda, e oferecer explicações acerca dessas relações ao invés de uma escolha inteligente. Tais explicações são possíveis, mas o que elas explicam são variações nos dados, não desempenhos específicos.
Explicar atos específicos, argumenta Oakeshott, é uma explicação “histórica”, que, como ele a entende, é categorialmente distinta da explicação científica. Um padrão observado nos dados, uma generalização estatística, identifica um tipo de ação. Uma atuação, ao contrário, é a escolha de um agente real em um momento específico. A ciência, como um modo generalizado de investigação, almeja explicar tipos de eventos, não ocorrências particulares. As humanidades e as ciências sociais humanísticas, em contraste, estão preocupadas com atos específicos ou outros objetos individuais. A individualidade de um ato é explicada historicamente relacionando-o a eventos antecedentes que levaram à sua ocorrência como um ato com suas características particulares. Um ato individual é um em uma série de atos, cada um dos quais tendo significado em relação àqueles que o precederam. São esses atos antecedentes, ou alguns deles, que esclarecem seu caráter único. Apenas explicações desse tipo são propriamente históricas, argumenta Oakeshott.
Essa descrição da explicação histórica se afasta nitidamente de uma teoria positivista como o modelo de lei de cobertura (Hempel 1942; Nagel 1961) porque sustenta que a explicação histórica busca explicar não apenas a ocorrência de um evento, mas sua significância cognitiva, que Oakeshott chama de seu “caráter”. Diferentemente de explicações científicas, que postulam eventos repetíveis, explicações históricas postulam eventos que são individuais e singulares. As teorias positivistas da explicação histórica fazem uma inversão ao assumirem que o evento a ser explicado já é entendido como um exemplo de um tipo de evento, mas o historiador não pode fazer essa suposição. A investigação histórica não é um exercício para explicar um evento cujo caráter é conhecido antes do esforço para explicá-lo. Esse caráter ainda deve ser estabelecido e pode ser estabelecido apenas pela demonstração de como eventos antecedentes levaram a ele ao invés de a qualquer outro evento. A relação entre um evento antecedente e um subsequente é “contingente”, uma em que o sentido do subsequente é elucidado pelo antecedente.
A conclusão de Oakeshott de que a história é central para as ciências humanas resulta da reflexão sobre as limitações das ciências naturais e sociais em explicar performances individuais. Acadêmicos das humanidades e ciências sociais humanísticas normalmente interpretam tais performances em relação a práticas históricas, como cerimônias religiosas, gêneros musicais, tradições culinárias ou procedimentos legais, cada qual podendo ser entendido como uma “linguagem” da performance humana. Mas o entendimento obtido desse modo é incompleto, argumenta Oakeshott, porque o que revela não é a individualidade de uma performance, mas sim sua “convencionalidade” (OHC 99–100), o tipo de conduta que ilustra. Como explicação, esse tipo de interpretação ajuda a entender contextos, situações e tipos de ação (práticas), mas não pode explicar a ocorrência de atos específicos (performances): por que uma determinada pessoa fez algo e de tal modo nessa ou naquela ocasião.
Dada a visão de Oakeshott acerca da importância da história entre as ciências humanas, a contínua atenção que ele dedicou a ela não é surpreendente. História é o primeiro modo que ele considera em Experience and Its Modes e ele retorna ao tópico com frequência em escritos posteriores. A história como um modo de pensamento não é o registro de eventos passados, mas um meio distinto de identificá-los e explicá-los. A tarefa da filosofia da história, como Oakeshott enxerga, é esclarecer o que distingue a investigação histórica de outras formas investigação. A investigação histórica não pode simplesmente registrar eventos históricos, porque o que é identificado como um evento depende das evidências, e o que conta como evidência, em si, deve ser estabelecido. O ponto, fundamental para a disciplina moderna de história crítica, foi levantado em 1852, por Gustav Droysen, que argumentou que
os dados para a investigação histórica não são coisas passadas, pois estas desapareceram, mas coisas que ainda estão presentes aqui e agora, sejam lembranças do que foi feito, ou resquícios de coisas que existiram e de eventos que ocorreram. (Droysen 1893: 11)
O historiador não começa com o passado em si, mas com resquícios do passado que precisam ser autenticados e interpretados antes que possam ser usados como evidência. Um fato histórico não é simplesmente dado. É uma conclusão: não “o que realmente aconteceu”, mas “o que as evidências nos obrigam a acreditar” (EM 112). Nós identificamos como fatos históricos as conclusões que melhor sustentam as nossas investigações. A tarefa da investigação histórica é estabelecer conhecimento histórico, de acordo com os cânones do ofício do historiador, a partir de evidências que estão sempre dispersas, não confiáveis, e abertas à interpretação.
Conhecimento histórico, como enxerga Oakeshott, pode, portanto, ser considerado como sendo construído. As ideias (“identidades”) que o historiador usa para organizar uma investigação – a Renascença, a Índia, o caso Dreyfus – são determinadas, não descobertas. E elas são identidades maleáveis, não imutáveis, que se dissolvem sob o escrutínio na coleção de eventos, que são eles próprios identidades. Elas não são dados, mas ideias organizadas e em si mesmas abertas à reconsideração. A explicação histórica significa elucidar o significado circunstancial de um evento em relação aos seus antecedentes, que em uma investigação genuinamente histórica são sempre eventos e nunca leis ou processos científicos. Em uma explicação histórica, um evento a ser explicado é tornado inteligível como o resultado do que as evidências sugerem ser os seus antecedentes relevantes. Nessa teoria, que Oakeshott desenvolve no segundo de três ensaios tardios sobre a investigação histórica (OH 45–96), um passado histórico específico aparece como uma coleção de eventos fortuitamente relacionados, geralmente apresentado como uma estória. Mas não necessariamente: ele discorda da visão, que estava ganhando adeptos na época em que ele escrevia, de que o que distingue as explicações históricas de outros tipos de explicação é que elas assumem a forma de uma narrativa (Ankersmit 1983; Danto 2007). Historiadores frequentemente constroem narrativas, mas uma narrativa não é a única forma de apresentar o conhecimento histórico.
Se o conhecimento histórico é uma construção, segue-se que o que identificamos como o passado é na verdade o presente, porque é o que as evidências sustentam agora. Fatos históricos são presentes porque todos os fatos estão presentes, isto é, existem como conclusões dentro de um corpo de conhecimento presente. Um passado histórico é construído de acordo com as evidências atuais – um objeto, como um machado, um diário, uma pintura ou moeda, que tenha sobrevivido e seja tratado como evidência – compele o historiador a acreditar. Tampouco é esse passado histórico o único tipo possível de passado: se existe um passado histórico, então, deve haver outros passados, não históricos, construídos em modos diferentes do histórico (OH 9). Desses, Oakeshott está particularmente preocupado com o que ele chama de o passado prático, devido à dificuldade de distingui-lo de um passado resultante da investigação histórica:
mesmo a preocupação histórica mais severa com o passado ainda é passível de ser comprometida pela busca de respostas a questões que não são questões históricas e por apartes, e mesmo julgamentos, que pertencem a algum outro modo de entendimento. (OH 118)
Um passado científico, como o que aconteceu durante os três primeiros minutos de existência do nosso universo, também deve ser distinguido do passado histórico. Cosmologistas podem aprender algo sobre esse passado ao executarem suas equações retroativamente, mas historiadores não possuem equações para executar.
O que é peculiar sobre a concepção de Oakeshott a respeito da investigação histórica pode ser trazido à tona ao compará-la com a afirmação de R.G Collingwood de que a tarefa própria do historiador é reconstituir o passado (Collingwood 1993 [1946]: 282–302). Essa afirmação torna a verdade histórica subjetiva, exigindo que o historiador reconstrua eventos passados como eles foram experienciados por aqueles que deles participaram. Mas isso privilegia o entendimento dos participantes, que podem não ter entendido ou mesmo sabido o que estava acontecendo. Suas ideias são importantes na construção de um passado, mas não são tudo o que precisamos saber para entendê-lo. Argumentar o contrário é argumentar que o historiador está impedido de ter qualquer ideia sobre um determinado passado que “teria sido impossível para qualquer um que viveu naquele passado” (Oakeshott 2008: 49). Oakeshott também rejeita a afirmação de Collingwood de que “toda a filosofia é a filosofia da história” (Collingwood 1993 [1926]: 425) porque torna a filosofia, e por consequência todo conhecimento, subserviente ao conhecimento histórico (Collingwood 1993 [1926]: 425). O argumento de Collingwood para a primazia da história (historicismo) é tão reducionista quanto os argumentos para a primazia da ciência (cientificismo) ou da prática (pragmatismo). O argumento de que um tipo de entendimento é o fundamento de outros tipos pressupõe a verdade do que se propõe a provar. A investigação histórica constrói conhecimento a partir do que conclui ser evidência. Não fornece conhecimento de uma realidade dada, pré-modal. Se passados históricos são construções intelectuais, não há nenhum acesso a esses passados, exceto por meio de investigação histórica.
[i] Nesta tradução, optou-se por manter o modelo de referências no formato fornecido pelo autor no artigo original.
[ii] Termo alemão para “Ciências Naturais”.
[iii] Termo alemão para “Humanidades”.
[iv] Expressão francesa para “viajando” ou “em viagem”.
[v] Expressão de origem grega que remete a “arte”.
[vi] Expressão aristotélica que consiste na ideia de uma sabedoria prática, uma forma de virtude em relação à conduta ética.
[vii] O autor faz referência ao artigo de Maurits de Jongh, intitulado “Public goods in Michael Oakeshott’s ‘world of pragmata’”, publicado em dezembro de 2019, após a publicação da versão deste verbete objeto da tradução. Daí o uso da expressão “forthcoming”, traduzida como “a ser publicado”.
[viii] O conceito de “caráter ideal” nesse sentido se refere a algo próximo da terminologia weberiana de “tipo ideal”, um ideal normativo que serve de modelo para a compreensão conceitual, mas que não se concretiza de forma total na realidade.
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