Estudos Sobre Morte e Pós-morte

O inseto e o moribundo: Tolstói, Kafka e a morte em Byung-Chul Han

A literatura tem a característica marcante de traduzir emoções e dilemas para os quais muitas vezes a escrita filosófica não basta; é um ponto que tende a se mostrar verdadeiro a cada nova leitura que surge. Dependendo do tema de pesquisa, esta sensibilidade literária para as questões que nos afetam enquanto humanidade se ressalta ainda mais. E, convenhamos, poucos temas nos tocaram tanto ao longo dos tempos quanto a morte.

Alguns escritos trazem a morte já em seu título, como um carro de frente em um cortejo fúnebre: é o caso de “A morte de Ivan Ilitch”, novela de Lev Tolstói (publicada em 1886) que será referenciada adiante. Tendo como base a filosofia de Byung-Chul Han em “Morte e alteridade” – livro presente na bibliografia de nosso grupo de pesquisa Estudos sobre Morte e Pós-morte –, a intenção deste texto é traçar paralelos entre a narrativa de Tolstói e outro clássico da literatura mundial: “A Metamorfose”, de Franz Kafka (publicado em 1915). Entre as profundas crises existenciais de Tolstói e a estranheza do surrealismo de Kafka, creio que podemos perceber diversas semelhanças entre as obras.

Logo em seu parágrafo inicial, Kafka já permite diversas interpretações e paralelos a partir de seu texto: “certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” Este despertar de uma vida sem sentido causado por uma transformação fora do controle do personagem se tornou famoso em Kafka, mas também encontra ecos no texto de Tolstói: afinal, a crise de Ivan Ilitch está pautada na consciência que este toma a respeito da frivolidade de sua vida – justamente quando um ferimento, a princípio simples, o faz adoecer.

Enquanto a transformação de Samsa faz com que ele se torne um enorme inseto e aos poucos perca sua consciência humana, a metamorfose de Ilitch é de outra natureza: Ivan Ilitch agora é um moribundo, perdendo vida e saúde até eventualmente tornar-se um homem morto – processo que também pressupõe isolamento e perda de consciência, especialmente do ponto de vista filosófico.

Analisando a novela de Tolstói a partir do pensamento de Heidegger, Byung-Chul Han (2020) aponta que Ivan Ilitch se torna um prisioneiro de si mesmo na morte: além da agonia e dos limites impostos por seu corpo agonizante, em sua mente, Ilitch não encontra mais o caminho para o outro; a extrema solidão do moribundo é reforçada por não conseguir irromper para fora de si mesmo. Em paralelo, um isolamento semelhante acontece em Kafka: cada vez mais afundado em sua condição de inseto repugnante, Gregor Samsa perde sua capacidade de se conectar com o exterior enquanto sua própria humanidade se deteriora.

Estes temas de aprisionamento no próprio corpo surgem também em outro livro estudado em nosso grupo: trata-se de “Uma questão de vida e morte”, escrito por Irvin e Marilyn Yalom. Em determinada passagem, Marilyn – já debilitada por um mieloma que eventualmente a mataria – diz para seu esposo Irvin:

Irv, não esqueça que estou vivendo com dor e sofrimento há dez meses. Eu já disse várias vezes que não posso mais suportar a ideia de viver assim. Dou as boas-vindas à morte, dou boas-vindas a estar livre da dor e da náusea e deste cérebro de quimio e desta fadiga contínua e desta sensação terrível. Por favor, me entenda: confie em mim, tenho certeza de que se você tivesse vivido todos esses meses na minha condição, você se sentiria da mesma maneira. Só estou viva por sua causa. Estou arrasada com a ideia de deixá-lo. Mas, Irv, está na hora. Por favor, você tem que me deixar ir. (YALOM e YALOM, p. 107)

Partindo desses pontos, podemos notar que o processo de morrer é descrito como exaustivo e tremendamente solitário. Ao mesmo tempo, a morte de uma pessoa não ocorre em um vácuo: o luto e a reação dos sobreviventes à morte também constituem parte importante do morrer. E, tanto na literatura quanto na filosofia, os textos aqui analisados trazem perspectivas instigantes a este respeito.

De acordo com Byung-Chul Han, “a morte de Ivan Ilitch desencadeia nos vivos, antes de tudo, uma satisfação oculta que, porém, não se deixa reduzir à especulação sobre o ganho” (HAN, 2020). Esta satisfação oculta em vista da morte do outro designa a figura do sobrevivente, demarcando um espaço entre o “eu” (que sobrevive) e o “outro” (que morre). Não se trata de um “ninguém”, ou de um “outro” hipotético: quem morre aqui é Ivan Ilitch, e os sobreviventes pensam nas consequências de sua morte como funcionário público – que vão desde as possíveis promoções no serviço até o pensamento de “o outro morreu, mas eu não”.

Cabe aqui uma consideração sobre a experiência da morte: Heidegger considera a morte indelegável, assim como a vida; e estabelece diferenças entre “morrer” e “falecer” (HAN, 2020). “Falecer” é um processo físico inevitável, que causa temor; trata-se do cessar das atividades dor órgãos. “Morrer”, por sua vez, é um processo mais complexo e metafísico, relacionado à busca por sentido e à ideia de perda de si mesmo; este morrer é o verdadeiro causador da angústia, e é o conceito que permeia toda a novela de Tolstói.

Dado este caráter indelegável, a análise heideggeriana da morte preza pelo uso heroico da angústia (HAN, 2020) – que Ivan Ilitch atinge ao fim do livro, onde pode-se considerar que sua morte de fato lhe “pertence”. Esta indelegabilidade significa também que a morte só de fato “existe” na morte de si mesmo; a morte do outro é uma sombra pálida da nossa própria morte, que ainda não existe – pois ainda não aconteceu. Assim, teme-se a morte do outro porque ela significa, em algum grau, a perda de si mesmo, nos relembra de nossa própria impermanência. Como um memento mori, o morto nos lembra que não morremos ainda – e isto gera fortes reações, inclusive a negação da morte e do agonizante.

Nos textos de que tratamos, nota-se que ambos os personagens principais estão em um processo de transformação, transitando em seus respectivos limiares (vida-morte em Tolstói; humano-animal em Kafka). E curiosamente percebe-se uma semelhança no tratamento que os núcleos familiares dão aos protagonistas de acordo com suas respectivas condições: em ambas as novelas, a família se afasta, cheia de repulsa, e muitas vezes entra em negação sobre o que está acontecendo, cabendo a uma pessoa fazer o papel de cuidador principal (Gerassim no caso de Ivan Ilitch, e a irmã no caso de Gregor Samsa – apesar das ações destes cuidadores serem diferentes nas respectivas histórias).

Tanto Ilitch quanto Samsa se tornam proscritos em suas próprias casas, e o restante da família busca seguir a vida (a princípio com dificuldade financeira, no caso dos Samsa, mas com eventuais melhoras). Contudo, estas verdades interditas se recusam a silenciar: seja nos gritos de agonia de Ilitch, seja na forma artrópode de Samsa se esgueirando pela sala enquanto a irmã toca violino, estas transformações exigem reconhecimento à sua própria maneira – como se dissessem “olhe para mim”; o que, em termos heideggerianos de morte, significa também “olhe para si”.

Ainda sobre os paralelos entre as novelas, a agonia de Ivan Ilitch é tratada como uma condição monstruosa pelo restante da família, como uma negação dos valores de “leveza e decência” que praticou ao longo da vida e se repetem durante todo o livro. A transformação de Ilitch em uma criatura agonizante é uma metamorfose por si só, e sua impotência se assemelha aos sofrimentos de Gregor Samsa. Ambos os personagens têm dificuldade de reconhecer a si mesmos nestas metamorfoses, e começam a questionar as vidas que levaram até aquele ponto – Ilitch pensando em sua vida de juiz, frívola e preocupada com o status; Samsa conjecturando sobre seu trabalho de caixeiro-viajante e sua relação com a família.

Por fim, ambos os personagens terminam suas histórias da mesma forma: mortos. Esta última transição funciona como uma conclusão do estado de metamorfose em que se encontravam; e logo os núcleos familiares também transitam para suas novas vidas sem estes personagens – mais leves, inclusive, sem precisarem se preocupar mais com as realidades incômodas que viveram durante as transformações da trama: o moribundo que grita por três dias seguidos, o inseto que insiste em rastejar.

Esses clássicos da literatura são extremamente férteis, permitindo uma imensa gama de análises; esta foi apenas uma tentativa de conectar as narrativas através de um fio filosófico específico. Há uma certa beleza em saber que as possibilidades da literatura nunca se esgotam, e que certos temas – como a morte e as transformações da vida humana – sempre nos tocaram de alguma forma. Assim, podemos enxergar a literatura como um testemunho da humanidade em elaborar nossas questões; uma biblioteca de nossos próprios sonhos intranquilos.

Referências

HAN, Byung-Chul. Morte e alteridade. Tradução de Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2020.

KAFKA, Franz. A Metamorfose. Tradução de Luiz A. de Araújo. Jandira: Principis, 2019.

TOLSTÓI, Lev. A morte de Ivan Ilitch. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2006. YALOM, Irvin D.; YALOM, Marilyn. Uma questão de vida e morte: amor, perda e o que realmente importa no final. Tradução de Fernanda Mello. São Paulo: Planeta, 2021.

Imagem: acervo histórico e divulgação

Sobre o autor

Giovanna Venturini

Mestranda em Direito e Inovação na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pós- graduanda em Direito Penal & Criminologia no Introcrim. Bacharela em Direito pela UFJF. Pesquisadora do grupo Pólis – Estudos Clássicos (UFJF) e do grupo Estudos sobre Morte e Pós-morte do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.