Estudos Sobre Morte e Pós-morte

A morte em “A Desumanização” de Valter Hugo Mãe

A morte gera um sentimento complexo, devastador e impiedoso, que coloca o indivíduo à frente de um abismo, sem esperança e sem consolo, porque “cada morte é a perda de um mundo – uma perda definitiva, irreversível e irreparável. A ausência desse mundo é que jamais acabará – sendo, a partir de agora, eterna” (BAUMAN, 2006).

O luto, por sua vez, trata da forma como o ser humano irá lidar com essa perda e se constituir a partir dela, de acordo com o modo que esse evento é processado por cada um. Envolve uma sucessão de quadros clínicos que se mesclam e sobrepõem uns aos outros. É o custo do vínculo, do amor, do comprometimento, do que perdemos.

Valter Hugo Mãe falará sobre o luto e a morte em seu romance “A Desumanização” (MÃE, 2014). Temas dolorosos e de difícil processamento serão tratados com a sensibilidade, poesia e beleza que são peculiares ao autor, utilizando como pano de fundo a paisagem inóspita e indomável da Islândia, com seus grandes fiordes, vales esculpidos pelas geleiras, penhascos à beira-mar, charnecas, vulcões, frio desértico e um interior praticamente desabitado: metáfora perfeita e inigualável para tal afeto.

Contará a história de Halldora, conhecida como Halla, uma menina de 11 anos, que mora em um vilarejo na Islândia – com duas dezenas de casas habitadas, mais a igreja –, e sua busca em compreender e acomodar os sentimentos que surgem diante da morte de sua irmã gêmea, Sigridur, porque sem a Sigridur, tudo perdera o conteúdo. Estava oco. Como se ela fosse o dentro de tudo.

Entre seu pai, derrotado pela tristeza e inerte na sua dor, e sua mãe ferida de morte e desnorteada diante do sofrimento profundo, selvagem e infinito que a toma após a morte da filha – ambos submersos nos próprios sentimentos –, Halla seguirá esquecida, negligenciada e, agora, com a árdua tarefa de prosseguir “com duas almas a salvar ao céu” imposta pela mãe, que não lhe perdoaria qualquer falha. Confundirá, então, a sua individualidade com a da sua irmã gêmea que morreu, como se as duas fossem uma só, eram crianças-espelho. Uma era reflexo da outra. E, com a morte, tudo se dividiu na metade.

Após o enterro, as pessoas do vilarejo dirão que Sigridur havia sido plantada. E Halla, na sua ingenuidade de criança cheia de imaginação, acredita candidamente que realmente haviam plantado Sigridur para que germinasse de novo. Com isso, então, haveria de nascer outra vez, igual a uma semente atirada à terra, brotar em uma árvore de músculos, com ramos de ossos e flores de unhas. Ao mesmo tempo, à noite ficava a imaginar a terra e a água da chuva no corpo da irmã com frio, sem luz e sem poder se mexer, se encolher, se aconchegar, porque os mortos ficavam tal como haviam sido deixados.

Mas a fantasia termina quando Halla percebe, aterrorizada, que a “criança plantada” não poderia voltar, porque a terra estava infestada de bichos que devorariam o seu corpo e, assim, ela morria mais e mais a cada instante. Quando nem seu pai consegue dissipar o seu medo, começa a se sentir violentamente só e cada vez mais isolada, em uma localidade igualmente isolada. Nesse momento, desejou permanecer eternamente criança, ser sempre igual ao que fora a irmã, pois era o único modo de continuarem gêmeas e não se tornarem desconhecidas.

As pessoas do vilarejo começaram a dizer as “irmãs mortas”, a mais morta e a menos morta. E Halla, obrigada a andar cheia de almas, era um fantasma que causava medo nas pessoas, as quais não sabiam se viraria santa ou demônio: os santos aparecem e os demônios assombram.

A mãe de Halla, por sua vez, a rejeitava contínua e impensadamente, chegando a dizer ao pai que, em alguns casos de morte entre gêmeos, o sobrevivo ia morrendo num certo suicídio, desistindo de cada gesto, desejando morrer. Mas Halla não queria morrer, queria apenas ficar quieta porque “a morte é um exagero. Leva demasiado. Deixa muito pouco.

O luto da mãe de Halla é patológico e doentio, seu sofrimento tão insuportável que ela corta a si própria, chega a fazer um círculo em volta do mamilo com uma lâmina, como se tentasse retirar o próprio coração, procurando fazer com que a dor do ferimento sufocasse a dor da alma. E, como não conseguia, passa a despedaçar os animais, as ovelhas da família, para expiação louca dessa dor. É o processo de seu definhamento, caminhando também para a morte, ao passo que era mais fácil se culpar e se punir pela perda de sua filha. Com isso, não conseguia conviver com a filha viva (LIMA, 2018)

Sua presença fazia a mãe lembrar o tempo todo a filha morta, a filha perdida que não conseguira salvar, e culpava a sobrevivente por ainda existir, afirmando que deveria morrer, ir ter com a irmã. Halla entende os sentimentos da mãe: como não me multiplico, sou uma metade insuportável que (a mãe) prefere não reconhecer.

E Halla também se culpava por existir e continuar viva enquanto sua irmã estava morta, embora a certeza de não querer morrer persistisse, assim como a vontade de fugir, do jeito que ensinara Sigridur. Mas a mãe não permitia e ameaçava: se fugires, mato-te. Vai estar sempre ao pé da minha mão. O único longe para ti será a morte. Perto da sua irmã.

Halla, então, passa a fugir da mãe, tinha medo que lhe cortasse para ver o seu coração e, ao recorrer ao pai argumentando que a mãe a odiava e que isso a deixava triste e ofendida, obtinha dele frases de significados duvidosos, demonstrando que queria dela uma força admirável cujo único sustento seria sua tenra idade, deixando-a à própria sorte.

Uma noite em que o pai saiu no barco e Halla foi se deitar atordoada, com a cabeça pesada, dormiu mais do que o normal e, ao acordar, a mãe havia extirpado um mamilo de um de seus seios, pois era preciso sacrificar o coração. Não sentir e não temer. Ter medo era um egoísmo insuportável

Halla gritou de dor, chamou a mãe de louca, de má, diabo, queria arrancar Sigridur da terra e juntas irem embora, para se salvarem. Quando o pai chegou, bateu com força a mão no rosto da mãe, que se pôs a choramingar baixinho e, por ternura, os três se abraçaram e se ajoelharam, todos na mesma tristeza. Não havia palavra para explicar. Algumas coisas, como Deus, existiam sem nome.

A partir de então, Halla entende a importância de se calar e conclui: quando falo, o que faço é perto de não fazer nada e, no entanto, cria-nos a sensação de fazer tanto. Como se falando pudéssemos fazer tudo. O que digo é só bom porque pode ser dito, mas não se põe de parede para a casa ou de barco para a fuga. Não podemos navegar em uma palavra. Não podemos ir embora. Falar é ficar. Se falo é porque ainda não fui. Ainda aqui estou. Preciso de me calar, pai. Preciso de aprender a calar-me. Quero muito fugir.

Halla, então, permite se aproximar de Einar, um rapaz mais velho, com algum transtorno mental, fruto de experiências marcantes e considerado tolo por todos, vivendo de favor na igreja do vilarejo e que costumava maltratar as irmãs gêmeas, tentando com elas algumas espertezas. Mas, num instante súbito de consciência, respeito e compaixão, Einar pergunta se Halla andava calada pela tristeza, fazendo a menina comover-se às lágrimas. E, ainda, ao confessar ter ciência do próprio passado, que lhe fizeram muito mal e quase sabia quem havia sido, mas que não conseguia se lembrar de tudo, Halla percebe que ele era consciente de ser tolo e sabia-o com toda a mágoa que isso traria. Nesse momento passa a imaginá-lo como alguém magoado, como alguém que sente dor. E Einar termina dizendo não tem que estar sozinha. Só sentir. Sentir sim. Estar não. Até não te sentires mais sozinha.

Assim se estabelece um vínculo afetivo entre essas duas criaturas solitárias, rejeitadas, negligenciadas, que se reconhecem nos sentimentos tão semelhantes, tão universais. Subiam juntos “até a criança plantada”, tomavam banho nas águas quentes e se socorriam na beleza dos livros do pai de Halla e daqueles que existiam na igreja, pensando que a pintura era um milagre, que os livros eram um milagre, que, diante da grandeza do mundo, todos valiam praticamente nada. E entenderam que: Os livros eram ladrões, roubavam-nos do que acontecia. Mas também eram generosos: ofereciam-nos o que não acontecia.

Halla acaba ficando grávida de Einar e lhe diz que nada a prenderia, que precisava fugir, como se pedisse que ele não gostasse demais dela e nem exigisse que ela gostasse demais dele. Em seguida, começa a pensar que esse filho seria uma coisa boa, a deixaria menos morta, que sua família terminaria e teria início uma nova família, que ocuparia todo o vazio deixado por Sigridur. Já Einar tinha esperanças de que Halla se libertasse, que optasse pela vida e nela brotasse a ideia de irem embora dali. E a mãe de Halla, de repente, decide que essa gravidez era uma tentativa de ressurreição de Sigridur, que a irmã estava em Halla e que, quando a criança nascesse, a vida voltaria a ser o que era antes. Sentia-se curada, que era um milagre para que tudo pudesse seguir com normalidade. Uma morte que não era nada.

Halla perde o filho e sua mãe volta ao que nunca deixou de ser e diz: vou gostar de te ver morta como um bicho também. Junto com Einar, leva a criança envolta em panos brancos até a boca de Deus (fiorde imenso, profundo e temido ante a violência com que era invadido pelo mar), o chama de Hilmar e o encaminha para fora do mundo fazendo-o voar na escuridão do precipício sem fim até se libertar, e declara: Não aceitava mais ser criança. As crianças não sepultam filhos. Quem sepulta um filho não tem idade. Está para lá das idades, para lá dos tempos, tem uma posse do mundo que independe de todas as limitações. A intensidade de quem sepulta um filho é semelhante à das forças inaugurais ou terminais. Pode fazer e desfazer tudo.

Com a fácil concordância dos pais e licença da tristeza, Halla vai morar com Einar, mas sente-se mandada embora de sua casa, atirada à rua sem remorso e, ao ver a porta aberta, parece ver a porta fechada a qualquer regresso. Olhou para a casa como se a deixasse absolutamente vazia. Sentiu que Sigridur era o passado, como se a tivesse abandonado, e pensa: A morte não dá direito a nada. É a supressão de toda a dignidade.

Tem então início sua vida com Einar, morando na igreja, de caridade e sob o olhar temeroso das pessoas, que não queriam ver e nem se aproximar deles: era sofrimento demasiado, exposto demasiadamente.

Ambos prosseguem a vida e entendem que, se pronunciassem o nome do filho, ainda o teriam inteiro, ele ainda estaria presente. Que nunca se perde por inteiro um filho. Ele resta sempre como algo com infinita possibilidade de se evocar. É só dizer filho e ele é sempre agora. Nunca regressa ao tempo em que não existia.

Halla começa a reconhecer que gostava de Einar, que até gostava muito e, por um instante, quase se deixava levar pela boa ideia de partilhar a vida, quase se perdoava, redimindo-se lentamente. Em seguida, colocava-se a pensar que nada melhorava, a dor não desaparecia – apenas recuava para, depois, voltar com violência ainda maior – e, então, culpava-se novamente, por ter pensado na possibilidade de ser feliz, de ter tido um momento de alheamento. A vontade de fugir permanecia.

Todo esse sofrimento faz com que Halla vá amadurecendo no decorrer da história, mudando alguns de seus conceitos e, também, vendo os aspectos de sua vida de outra forma, que talvez a tristeza fosse um modo de envelhecer.

Os poucos livros que tinha e Einar, mais querido e, na mesma proporção, mais dependente, não bastavam à Halla. Não compreendia por que a lucidez que amadurecia nela não surgia em Einar. E, então, o segredo de Einar, a tragédia que o fez ficar com o entendimento embaraçado é revelado, despertando no rapaz o desejo de matar aqueles que lhe fizeram tanto mal. Jurava que, após ter matado, esqueceria, porque, uma vez esquecido, estará efetivamente morto. E se seu coração falhar e lembrar, ele arrancará o coração para, depois de seco, servir de trapo para limpar coisas estúpidas, coisas vulgares. Não servirá para mais nada.

Decidem fugir, mas Halla teria que ir na frente e esperar que Einar fizesse o que pretendia. Mas Halla não quer esse destino para Einar: não o quer preso, não o quer culpado, não o quer buscando mais medo e o convence a aguardar, primeiro, deixa-la ver a casa do pai, levar os livros dele, precisava de meia-hora antes de Einar sair para fazer o que pretendia. Ele sorriu: iam fugir.

Assim Halla, acreditando estar exercendo o seu direito de reclamar a sua participação na maldade tão oficial de mundo, vinga Einar. Ela era gêmea da morte. E foge sozinha para as extensas montanhas interditadas pelo inverno, como um animal selvagem, avulso, vagando sem propósito. Olha para o mundo como palavras e assim os fantasmas recuam. Não tinha medo das raposas, pois sentia-se igual a elas.

Não soube mais de Einar, mas percebe que, absolutamente, o amava. E tinha certeza de ser amada. E conclui: Teria a vida inteira para lidar com esse sentimento. Sabia que me perdoaria. Pensei: Quem não sabe perdoar, só sabe coisas pequenas.

“A desumanização” mostra a extrema dificuldade do ser humano em se comunicar, expressar suas emoções e sentimentos, gerando uma barreira intransponível, origem do sofrimento, do afastamento, das mútuas agressões, brutas ou silenciosas, mas com o mesmo e cruel efeito.

O luto não é um estado, mas um processo que se desenvolverá de acordo com os fatores internos (estrutura psíquica, tipo de vínculo, histórico de perda) e externos (circunstâncias da perda, rede de apoio, crenças culturais e religiosas) a que está submetido, e o ser humano não se basta, precisa do outro.

No caso da família retratada na “Desumanização”, mesmo que não se despreze a falta de estrutura psíquica dos pais, os fatores externos foram decisivos na situação instaurada: desconhecimento da razão da morte da menina, inexistência de rede de apoio – era um vilarejo em que as pessoas calavam muito mais do que se poderia esperar, acostumadas a calar, como por exemplo, Einar que era o segredo de todos –, ausência de um prior na igreja para realização de missas, que se reduziam a meros encontros. E a cultura era a magnitude da paisagem e a resignação em aceitar as dificuldades e agressividade da natureza: a boca de Deus, aquela fundura nas rochas toda infinita e terminante, que transcendia-nos. Era chamada de Boca de Deus porque o povo não a conhecia. E Deus é desconhecido. Cada coisa que se nos revelasse tornava-se humana. Apenas o que transcendia podia ser Deus.

E, ainda, o não escutar o outro, não enxergar o outro, gerando desagregação e solidão, como explicado na teoria da “Ética e infinito” de Emmanuel Levinàs, o rosto do outro é sagrado, porque representa um apelo, se apresenta em sua nudez, frágil e vulnerável, suscetível de exposição a todas as violências. Me coloca em situação de responsabilidade em face do outro. (STERNSCHEIN, 2021) Quando um rosto te olha, e enquanto te olha, cria-se uma demanda existencial. Ouvir e responder à demanda significa existir. A existência nada mais é que a resposta que se dá à demanda do rosto do outro. Por isso, a existência é somente ética, existe em relação ao outro existir. Ser sensível à existência do outro.

Na família de Halla, ninguém olhava o rosto do outro, não acolhia a fragilidade, a vulnerabilidade do outro: todos estavam miseravelmente sós com as feridas da própria alma. Byung-Chul Han, em Morte e Alteridade, (HAN, 2020) define a ferida aberta na alma do enlutado, citando Canetti, ao dizer: Quem se abriu à experiência da morte demasiado cedo não pode nunca mais se fechar a ela, uma ferida que se torna como um pulmão pelo qual se respira.

E, conclui: Também o trabalho de luto obstinado, que tenta costurar violentamente aquela ferida atingida pela morte, estreita o espaço de respiração. A ferida dolorosa permanece uma contrafigura imediata daquele sujeito que trabalha, por sua vez, sem respirar na aparência da invulnerabilidade (…) A serenidade como despertar para a mortalidade remodela, reanima o eu, abre-o para aquilo que não é o eu. Cria amabilidade. Não se nutre da ferida. Também se deixará a ferida para trás de si, terá de encerrá-la atrás de si, pois ela ainda traz luto.

Por fim, “A Desumanização” apresenta claramente a contradição que forma o ser humano, a transformação através da dor, a necessidade de assumir acima de qualquer vínculo a própria individualidade, o que se é e o que se quer ser.

Com efeito, Valter Hugo Mãe, em uma entrevista concedida ao canal português RTP 2, explica que o nome da obra foi dado em razão da obsessão frustrante, da necessidade de reduzir os índices da sensibilidade para conseguirmos seguir sendo gente. É como se, para continuarmos sendo humanos, precisássemos ser menos humanos.

Referências

Imagem: divulgação Submarino Viagens

Sobre o autor

Maria Cristina Navarra

Advogada pela PUC-SP, graduada em História pela FFLCH da USP, mestranda em Ciência da Religião PUC-SP e pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Morte e Pós-Morte do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ