
Este título foi inspirado no texto A Vida Não É Útil, de Ailton Krenak, uma das lideranças mais importantes dos povos originários do Brasil. Nele, o autor afirma:
“(…) a vida não tem utilidade nenhuma. A vida é fruição … e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária (…)” (Krenak, 2020, p. 108)
“Escapar dessa captura, experimentar uma existência que não se rendeu ao sentido utilitário da vida, cria um lugar de silêncio interior.” (Krenak, 2020, p. 112)
A velhice é uma etapa da vida que naturalmente seguiremos, se não morrermos antes de alcançá-la. No entanto, tendemos a empobrecer essa experiência ao atribuir-lhe um valor simplesmente utilitário. E assim, limitamos a compreensão do processo de tornar-se idoso pelo que se produz, ao invés de nos abrirmos para a experiência singular do próprio envelhecimento.
Esse reducionismo utilitarista torna-se ainda mais problemático quando repetimos na velhice a mesma lógica de produtividade que orientou outras fases da vida. Afinal, nessa etapa, perdemos progressivamente o vigor físico e confrontamos, de modo mais direto, a proximidade da morte, o que dificulta encontrar sentido em uma existência medida apenas pela utilidade.
Contudo, enxergar a velhice para além da utilidade não significa defender a inatividade. Pelo contrário: como bem ilustra o relato de um homem de 80 anos apresentado no livro A arte de envelhecer: “o mundo é interessante demais para nos permitirmos ficar sentados nas margens, como observadores passivos” (NULAND, 2007, p. 119).
E, manter contato com este mundo interessante enquanto envelhecemos, requer que a vida seja percebida como fruição, como afirma Krenak. E, o apego ao senso de utilidade pode fazer com que a vida na velhice seja sentida como uma privação, podendo resultar em frustração e medo.
Para refletir sobre isso, e sobre o silêncio interior que, segundo Krenak, acessamos quando não nos rendemos ao sentido utilitário da vida, recorro aos seguintes trechos do texto As etapas da vida humana, de Carl Gustav Jung, psiquiatra e fundador da psicologia analítica, conforme segue:
“O homem que envelhece deveria saber que sua vida não está em ascensão nem em expansão (…) para o homem que envelhece é um dever e uma necessidade dedicar atenção séria ao seu próprio si mesmo.” (Jung, 2013, p.355)
Ou seja, em linguagem próxima a de Krenak, o envelhecimento requer que nos dediquemos a acessar esse silêncio interior. E Jung afirma que:
“Quem se protege contra o que é novo e estranho e regride ao passado está na mesma situação neurótica daquele que se identifica com o novo e foge do passado. (…) Em princípio os dois fazem a mesma coisa: mantém a própria consciência dentro de seus estritos limites, em vez de fazê-lo explodir na tensão dos opostos e construir um estado de consciência mais ampla e mais elevada.” (Jung, 2013, p.349 e 350)
A velhice constitui uma experiência nova para quem a atravessa. Simone de Beauvoir, na obra A velhice, afirma que temos dificuldade de assumir a velhice, pois a consideramos uma espécie estranha, uma outra pessoa. Temos dificuldade de lidar com o que não conhecemos, e quando nos protegemos ao conhecer esta “espécie estranha” que vemos refletida no espelho ou pelos olhos dos outros, nos distanciamos de nós mesmos e da natureza teleológica da vida.
Importante estabelecermos uma relação vital com esta fase da vida, para não ficarmos preso ao passado, frustrando-nos por tentar repetir mecanicamente ou paralisados, identificados com a morte que é o destino inquestionável desta fase da vida. Precisamos nos dedicar a este reconhecimento do envelhecimento que é tão particular de cada um, refletindo parte de uma vida que pode ter negado a velhice como futuro. A velhice é uma fase da vida a ser plenamente vivida, tal como as anteriores.
O que foi apresentado até aqui pode ser representado pelo encontro, narrado no livro A Arte de Envelhecer, do autor, Nuland, com Miriam, uma mulher com cerca de 80 anos que se entregou ao processo de compreender a si própria frente ao desafio de envelhecer e de acompanhar o processo de morte do marido. Miriam cita um poema de Alice Walker chamado “Graça”, que contém a seguinte frase: “descubro que estou feliz por estar dentro olhando para fora” (NULAND, 2007, p. 86). Miriam tem consciência de que se aproxima da própria morte, mas mantém a fruição da vida, ocupando o presente com o que faz sentido para ela quando olha de dentro para fora.
E para encerrar, segue abaixo uma reflexão de Simone de Beauvoir acerca do velho como parte da sociedade:
“(…) o sentido ou o não sentido do que se reveste a velhice no seio de uma sociedade coloca toda essa sociedade em questão uma vez que através dela, desvenda-se o sentido ou o não sentido de qualquer vida anterior.” (BEAUVOIR, 2024, p. 20)
Se não nos reconhecermos naquele outro que vemos como velho, nos alienamos da nossa própria condição humana. E quando essa alienação é coletiva, desenvolvemos uma sociedade que é hostil ao velho, e consequentemente ao próprio futuro. O resultado é que chegamos despreparados à velhice, dentro de uma sociedade que igualmente não está preparada para acolhê-la.
Precisamos corajosamente praticar o encontro com o silencio interior, reconhecendo nossa condição humana e nos afetando pelos outros. Krenak escreve que é dessa afetação pelos outros que pode sair uma outra compreensão sobre a vida na Terra (2020, p. 104).
Através do afeto quebramos padrões sociais individualistas e utilitários e passamos a ver o outro e a nós mesmos para além de uma classificação etária, étnica, racial, e vemos o humano.
Referências bibliográficas
BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Tradução de Maria Helena Franco Martins. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2024.
JUNG, C. G. As etapas da vida humana. In: JUNG, C. G. A natureza da psique.O. C. 8/2. Petrópolis: Vozes, 2013.
KRENAK, Ailton. A vida não é útil. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
NULAND, Sherwin B. A arte de envelhecer. Tradução de Claudia Martinelli Gama. 1. ed. São Paulo: Editora Objetiva, 2007.
Imagem: Governo do Estado de São Paulo (Wikemedia Commons)
