
No livro “A Desumanização,” o autor Valter Hugo Mãe (2017), conta a história da personagem Halla, uma menina de onze anos que a partir da morte de sua irmã gêmea, passa por vários desafios em meio ao processo de luto. Neste contexto, Halla vive os conflitos que emergem de sua perda, mas também os aspectos relacionados ao seu processo de desenvolvimento, assim como os entrelaçamentos gerados pelo luto vivenciado por sua família.
Halla procura dar sentido à sua experiência de perda, apoiada nas fantasias que constrói sobre a morte da irmã Sigridur e o que espera de sua própria vida. As lendas, conteúdos imaginários e simbólicos das pessoas que a cercam também fazem parte de sua busca por compreensão.
A personagem tenta dar significado e construir um sentido para morte de Sigridur e se pergunta se sua irmã renascerá como uma semente plantada que pode germinar. Halla também questiona se a alma da irmã agora habita nela e assim, carregaria em seu corpo duas almas. Assim, Halla diz:
Disseram-me que talvez a criança morta tivesse prosseguido no meu corpo. Prosseguia viva por qualquer forma. E eu acreditei candidamente que, de verdade, a plantaram para que germinasse de novo. Poderia ser que brotasse dali uma rara árvore para nosso canto abandonado dos fiordes. Poderia ser que desse flor. Que desse fruto. (MÃE, 2017, p.17)
Estes temas abordados pelo autor não são distantes da realidade vivenciada no luto. As fantasias que emergem a partir de uma perda significativa são reações comuns ao processo de luto, tentativas de compreensão e construção de significado para uma condição de grande dor e transformação de vida.
Para Jung (1991), a possibilidade de simbolizar surge de uma necessidade e fala também da riqueza do inconsciente em trazer para a consciência conteúdos que podem ir ao encontro daquilo que é desconhecido, produzir imagens que ofereçam conexões e sentido para o que ainda não se tem resposta.
As fantasias são processos humanos naturais e, como afirma Jung, (1976), uma atividade criadora. Com isto, ele evidencia a importância da fantasia e indaga: “Mas terá existido jamais algo de grandioso que não fosse antes fantasia?” (JUNG, 1976, p. 88). Fantasias são conteúdos que buscam responder à realidade, construções psíquicas de diálogo com a experiência.
A psique cria diariamente a realidade. Só encontro uma expressão para designar essa atividade: a fantasia. A fantasia tanto é sentir como pensar, tanto é intuitiva como perceptiva. […] É, sobretudo, a atividade criadora que procura uma resposta para todas as indagações contestáveis, a mãe de todas as possibilidades […]. (JUNG, 1976, p.80-81)
A partir de suas vivências o ser humano tem a possibilidade de simbolizar e produzir significado para aquilo que é da ordem da experiência, o que não está categorizado e ordenado, o que não existia antes e passa a existir como experiência dada. Como seres simbólicos, é possível construir significados para as diferentes vivências. O símbolo, como produtor de muitos sentidos, oferece um campo fértil para a compreensão dos conteúdos a serem elaborados.
Desta forma, os conteúdos presentes na imaginação e fantasias de Halla não são alheios à realidade, mas conversam com esta. “Achei que a minha irmã podia brotar numa árvore de músculos, com ramos de ossos a deitar flores de unhas. Milhares de unhas que talvez seguissem o pouco de sol.” (MÃE, 2017, p.17)
No campo simbólico, o renascimento é um conteúdo presente em mitos e religiões e, neste aspecto, o inconsciente também pode trazer à tona diversos elementos em uma composição e construção de narrativas, as quais são singulares em cada sujeito. Tais conteúdos são abordados pelo autor na imaginação de Halla.
Halla diz: “Éramos gêmeas. Crianças espelho. Tudo em meu redor se dividiu por metade com a morte.” (MÃE, 2017, p.17) Halla entendia que seu mundo não era mais o mesmo com a morte de Sigridur, tudo estava diferente. “Andava a ver o vazio das coisas. Porque, sem a Sigridur, tudo perdera o conteúdo. Estava oco. Como se ela fosse o dentro de tudo.” (MÃE, 2017, p.50) Mesmo no sofrimento, existe uma busca de entendimento e significado para esta experiência de dor, a produção simbólica é uma tentativa de elaboração e acomodação da perda, favorecendo a aceitação e compreensão desta nova dinâmica de vida sem o ente querido.
Halla imaginava como estaria sua irmã e se imaginava também em tal condição. Fantasiava a irmã dentro de seu próprio corpo. Seus pensamentos interrogavam sobre o que se passava com Sigridur após sua morte.
Ao deitar-me naquela noite, lentamente senti o formigueiro da terra na pele e o molhado alagando tudo. Comecei a ouvir o ruído em surdina dos passos das ovelhas. Assim, o expliquei, assustada. Disseram-me que talvez a criança morta tivesse prosseguido no meu corpo. (MÃE, 2017, p.17)
O símbolo quando trazido à consciência pode ser analisado e produzir novos sentidos, atualizando a vida do indivíduo, podendo reinterpretar situações ou sentimentos, produzindo outros olhares, ou mesmo elaborando sensações que não têm nome ou lugar, mas que pela construção simbólica ganham interpretações e significado.
Esta produção de símbolos é possível, pois a imagem simbólica é a forma com que o inconsciente se comunica com a consciência. Os símbolos não são signos de interpretação fixa, mas carregam um campo simbólico produtor de muitos sentidos, o qual permite um canal aberto do inconsciente para a consciência conduzindo o processo de integração da consciência com o inconsciente.
Jung formulou sua teoria, apontando para a riqueza do inconsciente e para a vida simbólica do indivíduo. Jung (1991) via o aspecto criativo do inconsciente entendendo que suas manifestações apontavam para uma finalidade, uma necessidade de integração à consciência de seus conteúdos visando o processo de individuação.
Desta forma, vemos que a vida psíquica é simbólica e podemos perceber esta expressão e riqueza imagética nas fantasias e também nos ritos de passagem, os quais têm grande importância no processo de elaboração da perda.
Halla queria parar o tempo, não queria crescer, pois sentia que aos poucos ela se diferenciava e se distanciava de Sigridur e com isto, a morte também se fazia mais presente como realidade. “Pensei que a minha irmã morria mais e mais a cada instante. Era uma criança bonsai.” (MÃE, 2017, p.20)
Gostava que pudesse aparar o meu corpo também. Ficar eternamente criança por vontade, nem que desse muito trabalho. Ser sempre assim, igual ao que fora a minha irmã. O único modo de continuarmos gêmeas. Sabes, pai, se eu crescer e não crescer a Sigridur vamos ficar desconhecidas. Faz de mim um bonsai. (MÃE, 2017, p.20)
A produção do símbolo é fundamental para saúde mental do indivíduo e seu processo de desenvolvimento. Stein (2006) aponta sobre a capacidade humana de criar analogias e metáforas, sendo esta qualidade que possibilita a transformação da energia psíquica. A criação de analogias e metáforas como uma capacidade inata, permite ao ser humano fantasiar estando acordado e amplificar símbolos que aparecem em seus sonhos, criar outros sentidos e significados a partir de uma experiência.
A necessidade de produzir significado para a morte nos faz também construir fantasias, possibilidades para o surgimento de símbolos importantes para a significação da experiência. Poder produzir outros sentidos para a morte se torna possível pela amplificação destes símbolos, realizando conexões aliadas à transformação, ao fortalecimento e continuidade da vida.
Para Grandesso (2011) a metáfora é a possibilidade de estabelecer conexões e associações, ampliando ou mesmo deslocando um sentido, um significado, as metáforas e analogias podem agir como facilitadoras deste processo.
Neste sentido, usando de poesia, o pai de Halla explica sobre a beleza das coisas e como elas passam a existir e a ter sentido quando compartilhamos sobre elas, sendo o que pensamos também uma realidade quando expressamos nosso olhar para o outro. Halla também encontrava consolo nas palavras, nas poesias e livros. “Os livros. Eram os livros. Diziam-me coisas bonitas e eu sentia que a beleza passava a ser um direito.” (MÃE, 2017, p.56)
Perguntei-lhe se dizermos o nome da Sigridur era manter-lhe a beleza, como manter-lhe a vida. Ele respondeu que sim. Eu tive vontade de dizer o nome da minha irmã em voz alta. […] Estava subitamente viva. Ainda que as palavras fossem objetos magrinhos, mais magrinhos do que eu. Era como se a minha irmã nos assomasse à boca. Quase inteira. Abríamos a boca e ela está lá. […]. (MÃE, 2017, p. 40)
Entretanto, as questões que Halla constrói sobre a morte de Sigridur e seu processo de elaboração, por vezes, não encontram ressonância e acolhimento na família também enlutada.
A minha mãe, por seu lado, perdera o modo de se apaziguar. Rejeitava cada coisa. Era rigorosa, não desculpava ninguém e não se desculpava. Estava em guerra. Não sabia nada, na verdade, punha as mãos às cegas no mundo. Como se estivesse viva num mundo morto. (MÃE, 2017, p.39)
Neste momento de desamparo Halla encontra um amigo com quem consegue conversar sobre seus pensamentos e dúvidas. Neste encontro, ambos conseguem falar sobre suas dores e estabelecer uma relação de apoio, sustento necessário para ampliação e maior fluidez em seu processo de elaboração. Em um diálogo eles dizem:
O tempo também se conta pelos desgostos. Explicava isso. Respondi: se fosse assim, eu teria cem anos. Estaria muito velhinha. E tu, perguntei. Ele disse que estaria com mil anos e que saberia os segredos de todos os mistérios. (MÃE, 2017, p.54)
O processo de troca pode favorecer a construção de laços afetivos, a expressão e a adaptação a uma rotina sem o ente querido, de modo a potencializar a vida e a acomodação desta transformação. No entanto, a fantasia e a emergência dos símbolos por si só não garantem a elaboração, sendo necessário também um movimento de conexão e ampliação destes conteúdos.
Halla se preocupava com o destino de Sigridur, o tempo passa e ela faz uma observação: “Depois, ganhava a certeza de que a minha irmã fora deitada à terra como um resto qualquer.” Nesta expressão de inconformidade, Halla questiona o rito realizado com sua irmã, pois colocá-la na terra sem a possibilidade de brotar como semente não lhe faz sentido.
Os sentimentos relacionados ao luto não são lineares, mas complexos em uma teia de conexões que incluem a busca de compreensão sobre o ocorrido. Neste sentido, os conteúdos relacionados à perda, mesmo contendo suas dimensões simbólicas, podem permanecer em maior intensidade na dor, no medo, na mágoa, no rancor, podendo haver poucas possibilidades de ampliação desta realidade simbólica, dificultando a adaptação à perda.
Esta é uma realidade para as fantasias de culpa e responsabilidade sobre a morte do ente querido, comuns em processos de luto, os quais quando não ampliados e elaborados, podem trazer mais intensidade à dor da perda.
Para isso, é importante que tanto as fantasias, como os símbolos e práticas significativas voltadas para a perda não paralisem em si mesmas, mas possam continuar em um caminho de construção de significado e elaboração.
Referências Bibliográficas
GRANDESSO, M. A. Sobre a reconstrução do significado: uma análise epistemológica e hermenêutica da prática clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011.
JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. Rio de Janeiro: Vozes, 1976.
JUNG, C. G. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1991.
MÃE, V. H. A desumanização. São Paulo: Biblioteca Azul, 2017.
STEIN, M. Jung: o mapa da alma. São Paulo: Cultrix, 2006.
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