A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade

A reverência ao jovem e a imaturidade adulta

O passado ficando para trás

De fins do século XIX até hoje, desenrolam-se propostas para denegar os valores e a contribuição cultural dos adultos para o desenvolvimento de crianças e jovens.

Ao longo do século XX, radicalizam-se visões negativas sobre a idade adulta e o sentido de seu legado cultural; os valores dos adultos passam a ser vistos como retrógrados. Ainda nos anos de 1940, pouco estudada por psicólogos, sociólogos, educadores e produtores de políticas públicas, a figura do adulto chegou a ser apresentada pela antropóloga Margaret Mead como “fora de contato com padrões atuais de comportamento”, chegando-se a afirmar que o padrão seria o do “comportamento de adolescentes”(FUREDI, 2021, p. 63). 

Naquele momento, enquanto se exaltam atributos de vitalidade, irresponsabilidade e liberdade da juventude, a idade adulta passa a representar o “fim dos bons tempos da vida”. No período da Guerra Fria, com a expansão da “cultura pop”, o ideário de juventude sai de círculos acadêmicos e culturais mais restritos e alcança popularidade em todo o Ocidente. Músicas como “Forever Young”, da banda Alphaville, ganham a mente e o coração de jovens em todo o mundo, tornando-se retrato do momento de sobrevaloração dos atributos da juventude. Num movimento nostálgico, como se à época da juventude tudo fosse melhor, um trecho da canção é revelador:

É tão difícil envelhecer sem um motivo
Eu não quero perecer como um cavalo moribundo
A juventude é como diamantes ao sol
E diamantes são eternos

Com o advento do capitalismo pós-industrial, ocorre a expansão da industrialização, o crescimento dos mercados de trabalho (incluindo aí a participação da mulher) e o aumento da expectativa de vida nas áreas mais industrializadas – derivado das melhorias médico-sanitárias. Tudo isso em um contexto de aceleração das trocas de informações, mercadorias e tecnologias. É um momento de rápida obsolescência de ideias, de produtos de comportamentos, de formas de produzir e de tecnologias. Para acompanhar essa “New Era” seriam ainda necessárias mudanças na maneira de socialização dos mais jovens, segundo a visão de intelectuais e educadores progressistas.

Nesse clima, em que a figura adolescente passa a ser estudada e reverenciada pela intelligentsia, emergem contornos não tão nítidos para as relações intergeracionais. Em um mundo de mudanças aceleradas, o modelo de adulto – enquanto transmissor de uma herança geracional – começa a “derreter” em nome da aclamação de uma maior flexibilidade dos jovens para assimilar novas ideias, demandadas por esse tempo novo. É o tempo de pensar nas relações de produção, de socialização mais geral e de buscar maior aceitação das diferenças (era um período de fortes ondas migratórias, sobretudo pelas crises geradas pelas duas grandes guerras e, subsequentemente, pelas lutas de libertação afro-asiática). É igualmente um momento de valorização da paz entre os povos e de maior liberdade nas relações de sociabilidade, como forma própria dessas mudanças.

No mesmo contexto adultos são taxados de autoritários por tentarem transmitir seus antigos valores aos jovens. A fundamentação lógica para tais ataques era de que eles foram crianças educadas de modo repressivo e, por isso, tendiam a se comportar de maneira autoritária. São igualmente repudiados em seu status moral pelos próprios intelectuais da época. Enfim, são tidos como inabilitados para liderarem os mais novos em um novo mundo, de novos ideais que se configurava. Esse novo tempo só poderia ser levado adiante com a “saída de cena” da figura adulta, com seus valores e costumes arcaicos, e com a aceitação do caráter salvacionista da idade jovem – idade esta que traria dentro de si a semente de sua própria maturação. Tudo isso uma vez que “crescer” – tendo em vista as desvantagens já citadas – havia deixado de ser uma realidade possível para o pleno desabrochar dos atributos da infância e juventude, como um projeto de maturação.

A pergunta “quem somos?”, ganhou status de dúvida subjacente a toda crise de identidade que se instala no período subsequente à 1ª Guerra Mundial. Ao lado disso, a ideia de mudança constante em todas as estruturas da sociedade deságua em uma crise indentitária generalizada. As mazelas consequentes de dois conflitos mundiais também contribuíram para isso. Era preciso aprender com os erros cometidos pelos líderes de grandes nações, com as milhões de mortes, com as crises econômicas geradas e, enfim, era preciso a dissolução de crenças e de valores do passado que levaram a tais adversidades.

As consequências dos conflitos, junto às mudanças produtivas decorridas, põem em xeque antigos valores, de modo definitivo. A crença forte era de que não se poderia errar novamente da mesma forma. Eleita como vilã principal, a cultura tradicional foi contestada, ao lado dos modelos políticos totalitários emergentes durante os conflitos: rejeitar buscar no passado elementos normativos e valores passou a significar uma forma de resistência à cultura autoritária até então vigente. Um clima de suspeita em relação ao papel dos adultos na transmissão de valores para os mais jovens tomou de assalto o mundo ocidental. A ideia de descontinuidade em relação ao passado ganha força nos meios acadêmicos e sociais. Em 1950, Talcoot Parsons, em resposta ao sociólogo David Riesman – que havia dito que pais e professores haviam abdicado da autoridade adulta – salienta que não era uma situação de abdicação de responsabilidades, mas sim que existia, naquele momento, “um novo e iluminado caminho de preparação do jovem para altos níveis de independência, competência e responsabilidade” (FUREDI, 2021, p. 99).

Nota-se nessa fala a presença de elementos de caráter existenciais importantes, que permitem pensar o senso de descontinuidade e de crise identitária. Nela, por derivação, o jovem pode ser visto como um ser descompromissado com o mundo anterior a ele; preparando-se para se livrar das amarras do passado, com o olhar voltado para um futuro em constante mudança, no qual seria competente para viver responsavelmente.

A Crise de identidade dos mais jovens

Diante das incertezas e dúvidas sobre os caminhos a seguir, nada mais era dado como certo. Quem somos, uns em relação aos outros? Quem somos diante de um mundo em processo acelerado de mudanças? São perguntas que até hoje permanecem plausíveis, de difícil e conflituosa resolução.

Essa crise de posicionamento da vida adulta na sociedade e diante dos mais novos – que é a crise da identidade adulta – atinge em cheio as novas gerações. Quando o jovem vai buscar referências indentitárias em grupos sociais significativos para ele, como a família, a escola, o clube ou a própria cultura, ele tende a pousar sobre modelos indentitários preexistentes. Isso para que com eles possa se relacionar, aceitando, discordando ou mesmo se rebelando contra normas e valores estabelecidos socialmente. Todavia, nesse momento, a nova geração pode encontrar um vazio moral, subjacente à crise identitária da vida adulta; depara-se com adultos que não sabem quais valores realmente devem ser assumidos em sua relação com os mais novos. São adultos esvaziados de liderança moral. Hoje, por essa razão, muitos jovens estão propensos a enxergar os adultos como seres crescidos biologicamente, mas ainda brincando de ser criança, como um “lifestyle”.

Não que se pretenda a desvalorização da juventude em si. Contudo, ela também deve ser entendida como como etapa importante no processo de maturação do indivíduo. E, nesse momento, o adulto desempenha um papel central.

Ser jovem é ser idealista por natureza. Com pouca experiência acumulada de vida, nessa etapa ele não tem a visão em perspectiva mais ampla da realidade e da complexidade das relações que envolvem as diversas dimensões da existência. Diante do exposto, os jovens tratam o mundo num plano de ideias puras, ou, “estão livres para elaborar planos ideais” (WINNICOTT, 2021, p. 196), sem muita comprovação prática sobre o que pensam e dizem. Nesse movimento saudável, rumo ao crescimento, eles ainda “tateiam” o mundo. Realizam integrações parciais e momentâneas consigo mesmos, com as outras pessoas e com os grupos sociais. Nesse sentido, esta é uma etapa em que o “si mesmo” – expressão aqui usada sob o ponto de vista que Winnicott imprime ao termo – se apresenta protegido, pois isolado. Desse modo, Elsa Oliveira Dias atenta ao hábito deles estarem sempre em grupo. Assim ela explana:

O fenômeno dos grupos na adolescência é o de uma coleção de indivíduos isolados que tentam formar um agregado em torno de algum interesse ou preocupação em comum. Estando o si mesmo pessoal recuado e protegido (DIAS, 2017, p. 265).

Com a moral rígida, fundada naquilo que ele sente como falso ou verdadeiro, rechaçando a moral socialmente estabelecida, o jovem é intransigente em relação àquilo em que acredita, precisando de “suporte firme e confiabilidade “, diz Elsa (2017, p. 266). Assim, ele precisa ser confrontado, sobretudo por aqueles que compõem a estrutura parental e têm mais conhecimento e experiência de vida que ele. Nesse confronto, deve acontecer a transmissão de valores – que também se transmitem por meio de exemplos. Confrontos e exemplos, enquanto produto de dizeres e de práticas de pessoas amadurecidas, que são aquelas que possuem a responsabilidade de dar continuidade à transmissão dos caros valores que receberam, sem a necessidade de apelarem ao autoritarismo como maneira de se relacionar com o jovem. Valores que contribuíram para trazer as últimas gerações até aqui em boas condições de sobrevivência. E que, com essa herança, o jovem possa se integrar por completo (num movimento quase sempre conflituoso), tomando-a para si como referência a ser experienciada no enfrentamento de um mundo novo que se apresenta.

Referências

DIAS, E. O. Estágios da dependência e da independência relativas. Em: A Teoria do Amadurecimento de D. W. Winnicott. 4ª edição. São Paulo: DWW Editorial, 2017.

FUREDI, F. The Cultural Contraditions of Adulthood. In: 100 Years of Identity Crisis: Culture War Over Socialization. 1ª edição. Berlin: De Gruyter, 2021.

_________   Identity, Socialization and Its Tenuous Link with the Past. In: 100 Years of Identity Crisis: Culture War Over Socialization. 1ª edição. Berlin: De Gruyter, 2021.

WINNICOTT, D. W. (1896-1971). A imaturidade do adolescente. In: Tudo começa em Casa. Trad. Paulo Cezar Sandler. 5ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

Imagem: Quadrophenia (The Who) / divulgação

Sobre o autor

Evaristo Ragazini

Geógrafo, com mestrado em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF-Niterói). Pesquisador do Grupo A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo /PUC-SP – LABÔ.