Eu vi, eu vi a miséria de meu povo no Egito e ouvi o clamor que lhe arrancam seus opressores; sim, conheço suas aflições. 8Desci para libertá-lo das mãos dos egípcios e levá-lo daquela terra para uma terra boa e espaçosa, terra onde corre leite e mel (…). (Êxodo 3,7-8).
Adentrar um Santuário é fazer a experiência de peregrino. Ser peregrino é habitar o insondável terreno de quem parte em busca de um tesouro capaz de dar sentido à existência. Essa condição de busca é uma das características mais originárias do instinto humano, à qual se junta o desejo pelo transcendente. Via de regra, partir em peregrinação é encontrar-se com o divino.
Em terras brasileiras, especialmente no Santuário Nacional de Aparecida, o peregrino encontra a “terra prometida”, como um “novo Moisés”. Ao pisar naquela terra santa, o buscador, avistando a fachada norte da Basílica (Figura 1), é tomado daquela atitude filosófica conhecida como thaumázein, que significa espanto, maravilhamento. Para os filósofos gregos Platão e Aristóteles, o thaumázein conduz ao despertar da reflexão, ou ao filosofar. Antes, o thaumázein conduz o ser humano à dis-posição, dimensão afetiva que convoca a um apelo, à dimensão do páthos, entendido como afeto e paixão. Não obstante essa qualificação, páthos sugere paskhein, com significado de deixar-se levar, deixar-se con-vocar.[1]
Na fachada norte, além de passagens fundantes da fé relatadas no livro do Gênesis, o peregrino poderá maravilhar-se, especialmente, com o episódio da sarça ardente, narrado em Êxodo 3,1-12 e representado em um dos mosaicos executados pelo padre jesuíta Marko Ivan Rupnik, o Centro Aletti e o Amacom. Eis o relato bíblico:
1Moisés era pastor do rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote de Madiã. Um dia, levou o rebanho deserto adentro e chegou ao Horeb, a montanha de Deus. 2Ali apareceu-lhe o anjo de Javé numa chama de fogo, do meio de uma sarça. Ele olhava: a sarça ardia sem se consumir. 3Moisés pensou: “Vou dar uma volta para ver este grande espetáculo: como é que a sarça não se consome”. 4Vendo Javé que Moisés se voltava para observar, chamou-o do meio da sarça, dizendo: “Moisés, Moisés!”. Respondeu ele: “Eis-me aqui”. 5Deus lhe disse: “Não te aproximes daqui! Tira as sandálias dos pés, porque o lugar onde estás é uma terra santa”. E acrescentou: 6“Eu sou o Deus de teu pai: o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”. Moisés cobriu o rosto, temendo olhar para Deus. 7Javé disse ainda: “Eu vi, eu vi a miséria de meu povo no Egito e ouvi o clamor que lhe arrancam seus opressores; sim, conheço suas aflições. 8Desci para libertá-lo das mãos dos egípcios e levá-lo daquela terra para uma terra boa e espaçosa, terra onde corre leite e mel, para o lugar onde habitam o cananeu, o heteu, o amorreu, o ferezeu, o heveu e o jebuseu. 9O clamor dos israelitas chegou até mim; e vi também a opressão com que os egípcios os oprimem. 10Agora, pois, vai! Eu te envio ao faraó para que tires do Egito meu povo, os israelitas”. 11Moisés disse a Deus: “Quem sou eu para ir ao faraó e tirar do Egito os israelitas?”. 12Deus lhe disse: “Eu estarei contigo; e este será para ti o sinal de que sou eu que te envio: quando tiveres tirado o povo do Egito, adorarás a Deus nesta montanha”.[2]
Ao contemplar o mosaico com a representação da sarça ardente (Figura 2), o peregrino atento tem a oportunidade de, como sugere o conceito filosófico paskhein, deixar-se levar, deixar-se con-vocar. É conduzido à contemplação mística, ao cerramento dos olhos da carne, ao despertar dos sentidos interiores e ao mergulho profundo no mistério do Verbo, que conduz a história humana. Nesse momento, como Moisés, o peregrino é convidado a tirar as sandálias (Ex 3,5).
Na visão da sarça ardente, pela luz refletida nos olhos de Moisés, inicia-se uma jornada de recriação do mundo. Com a queda dos primeiros pais, Adão e Eva, o ser humano perdeu o olhar luminoso, aquele em que a luz vem de dentro. Com o advento de Cristo, a humanidade logrou a oportunidade de recriar essa capacidade original do olhar luminoso. Na crucificação de Jesus, com a entrega de seu espírito ao Pai, o véu do Templo se rasgou e o olhar se iluminou para a verdade que subjaz toda a realidade, esta é Cristo. No desnudamento de Cristo desnudou-se a realidade inteira para a verdade.
O olhar luminoso e a abertura dos sentidos interiores transfigura o mundo para a verdade revelada em Cristo e que é Cristo, isto é, o amor misericordioso de Deus em sua plenitude de revelação. Mergulhar nessa realidade, assim como adentrar no Santuário de Deus, exige uma profunda educação do olhar para a beleza, que é a face de Cristo. Na visão da sarça ardente, lida no relato bíblico, o ser humano tem a certeza de que não mais precisa temer a Deus. Na atitude de Moisés, ao retirar as sandálias, o ser humano encontra novo abrigo longe da opressão e da aflição. Na presença de Deus, longe da escravidão dos afetos e dos sentidos, o ser humano, ao modo da acolhida de Moisés, pode restaurar a harmonia e a comunhão com Deus, perdidas no jardim do Éden.
O peregrino, em sua experiência contemplativa de maravilhamento dos sentidos e afetos, é conduzido do jardim à cidade – Jerusalém Celeste – e da queda à restauração do mundo. Moisés faz novamente, como Adão, a experiência do criado, da natureza como lar no qual habita Deus (sarça) e na qual pode morar o homem (montanha/terra prometida). O encontro do primeiro com a desobediência (queda) dá lugar ao encontro do segundo com a alteridade, o outro (a voz que chama). O grande Outro agora não acusa, mas chama ao diálogo. Na sarça, o peregrino contempla a divino-humanidade, a unidade da tríade Deus-Cosmo-Homem, integral e saudável, que toca a existência humana, a carne, na qual se concretiza o processo contínuo de filiação, de ser com o outro.
O símbolo da sarça ardente, retratado belamente no mosaico, revela uma face: a de Cristo. No centro da sarça ardente contempla-se a face de Cristo, encarnação do Verbo, gerado pelo Pai no seio da Virgem Maria, ventre humano (Figura 3). Assim, afirma Rupnik:
Os padres da Igreja sempre reconheceram na sarça ardente a Mãe e Virgem Maria de Nazaré[3], porque se trata da convergência absoluta de duas ações, a de Deus e a do homem. Um age e o outro acolhe, e acolhendo se transfigura. A Virgem, permanecendo virgem, se torna mãe. Ao entrar nela, Deus não consome a humanidade, mas o seu Filho nasce como verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Isso marca a transformação total do culto, porque aí o culto não consiste simplesmente em uma ação nossa voltada a Deus, mas é a acolhida de uma ação que Deus desenvolve na humanidade enquanto humanidade de Cristo. Cristo nunca mais será sem humanidade, nunca mais será sem corpo e nós para sempre seremos filhos de Deus em Cristo Jesus.[4]
Enfim, educar o afeto na contemplação da sarça ardente, é transformar o individualismo em comunhão e abrir-se à existência espiritual que, segundo Rupnik, é “viver no outro, viver em Cristo e Cristo em nós”, desconstruindo a ideia de monocamada e assumindo que “tudo deixa entrever um outro rosto, ouvir uma outra voz, perceber o gesto de um outro”.[5]
Figura 1 – Visão da Basílica com os mosaicos da fachada norte. [7]
Figura 2 – Moisés em frente a sarça ardente.
Figura 3 – Visão da sarça ardente.
[1] Cf. HEIDEGGER, M. O que é a Filosofia? In Heidegger, Os Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultura, 2000.
[2] Disponível em: https://www.a12.com/biblia/. Acesso em 24 de maio de 2022.
[3] “O arbusto ardente revelou a imagem da Vossa imaculada natividade. Por isso, hoje nós Vos pedimos: extingui a fornalha das tentações acesa em nós, para podermos exaltar-Vos sem cessar, ó Mãe de Deus. (Octoico, tom 1, Ode 9 nas matinas de domingo)” e “Ó Virgem gloriosa! Moisés, com os seus olhos proféticos, viu em Vós um mistério, a sarça ardente que não se consumia, pois o fogo da Divindade, ó Puríssima, não queimou o Vosso ventre. Por isso, Vos pedimos, ó Mãe de nosso Deus: rogai ao mundo a paz e grande misericórdia. (Octoico, tom 1, estrofes posteriores nas Vésperas de segunda-feira).” (Cf. https://fasbam.edu.br/2021/04/07/o-simbolismo-e-o-significado-do-icone-da-sarca-ardente-da-mae-de-deus/. Acesso em 24 de maio de 2022).
[4] RUPNIK, Marko Ivan. Êxodo: caminho para a libertação. Aparecida: Santuário, 2022, p. 57. A isso acrescenta-se que: “embora São Clemente de Alexandria considerasse a sarça ardente como uma imagem de Cristo, lembrando a coroa de espinhos que foi feita para Jesus, havia muitos outros teólogos que viram a sarça ardente como um símbolo da Theotokos que é “sempre virgem, antes, durante e depois do nascimento de Jesus Cristo”. Foi ela quem conseguiu conter a natureza ígnea de Deus, o Filho, sem ser consumida: foi assim que São Gregório de Nissa e São João Crisóstomo interpretaram essa passagem.” (Cf. https://fasbam.edu.br/2021/04/07/o-simbolismo-e-o-significado-do-icone-da-sarca-ardente-da-mae-de-deus/. Acesso em 24 de maio de 2022).
[5] RUPNIK, Marko Ivan. Segundo o Espírito: a teologia espiritual no caminho com a Igreja do Papa Francisco. Brasília: Edições CNBB, 2019, p. 131.
[6] Esta imagem e as demais citadas neste texto estão disponíveis em: https://www.centroaletti.com/opere/santuario-di-nostra-signora-di-aparecida-2021/. Acesso em 24 de maio de 2022.
Imagem: detalhe de Man in Blue (Picasso, 1902)